sábado, 9 de dezembro de 2017

A propósito de uma eleição honrosa


A seriedade intelectual de Francisco Assis desde sempre se impôs, julgo, num país de sensibilidades esfuziantes, expressas quer em manifestações de ruído e reclamação, facilitados pelos slogans ou canções alusivas, quer pela crítica humorística, ou de sátira mordaz que a imprensa escrita favorece. Francisco Assis não pertence a nenhum dos formatos, a sua hombridade e craveira intelectual concedendo-lhe autoridade para julgar com segurança e firmeza, sem artifícios de subjectividade discursiva. Quando apresenta Mário Centeno, é certo que o faz com suspense, começando com um livro que lera, sobre o trabalho, de alguém desconhecido, para posteriormente o identificar com esse homem de quem se fala, Mário Centeno.
Também o grupo da “Quadratura do Círculo” falara dele, Jorge Coelho com os arroubos que dum modo geral faz ao governo PS, congratulando-se pelo que diz serem benéficos os resultados obtidos pela geringonça, jamais reconhecendo a eficácia da política anterior de Passos Coelho, que se esforça por rebaixar como tendo sido uma política de humilhação ao estrangeiro, contrariamente à de António Costa, de altivez segura pela aliança esquerdina do seu apoio, e, segundo ele, vitoriosa, apesar do défice em crescendo, que, de resto, ignora, no seu arrebatamento laudatório. Lobo Xavier naturalmente que também reconhece o valor de Mário Centeno, sem embandeirar em arco, contudo, pela escolha europeia, considerando o fraco trabalho do presidente anterior, Dijsselbloem, e minimizando tal cargo, como o de “uma presidência de porra nenhuma”. Já Pacheco Pereira pôs a tónica numa Europa caótica, de perplexidade relativamente aos Estados Unidos, uma Europa em crise financeira, que não mais se revê no velho ideal de ajuda financeira aos povos mais carenciados, e portanto, uma Europa a desprezar, à boa maneira da esquerda, julgo eu, desinteressada de pagamento do débito, já falando – ouvi hoje - em nova abordagem mais branda, a longo prazo, de ressarcimento da dívida, convicção, de resto, há muito adquirida por essa esquerda, de uma relação de escoamento monetário puramente unívoco, de lá para cá, que parece ser também o ideal de Pacheco Pereira.
Mas, retomando o texto de Francisco Assis, de uma cordura de análise sem quebras, que não se abstém de citar o erro, reponho o parágrafo final, disso expressivo: «A geringonça aparenta caminhar rapidamente para um estado agónico, a direita, paradoxalmente, presta quotidianas provas da sua estreiteza doutrinária e política em vez de se afirmar e o Presidente da República sobressai, mesmo quando cede a uma tentação populista que as circunstâncias lhe não exigem. Ou eu estou muito enganado ou este é o tempo certo para uma clarificação na vida política portuguesa. Creio que António Costa ainda vai a tempo de evitar o pântano.»

OPINIÃO
O tempo certo
Ou eu estou muito enganado ou este é o tempo certo para uma clarificação na vida política portuguesa. Creio que António Costa ainda vai a tempo de evitar o pântano.
Francisco Assis
Público, 7 de Dezembro de 2017
Há uns anos chegou-me às mãos um livro editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos intitulado O trabalho: uma visão de mercado, da autoria de um economista de que nunca até então ouvira falar. Li a referida obra de rompante e de tal modo a tive em consideração que de imediato procurei obter informação sobre o seu autor. Tratava-se de um distintíssimo quadro do Banco de Portugal, dotado de sólida formação académica, com passagem por Harvard e reconhecido brilhantismo científico. Não satisfeito com a informação recolhida, procurei inquirir acerca das suas orientações doutrinárias, quer no plano político, quer no âmbito das teorias económicas. As respostas que obtive revelaram-se algo contraditórias: havia quem o identificasse com uma corrente de inspiração claramente liberal, tal como havia quem lhe reconhecesse algumas inclinações propensas a um certo criticismo face ao liberalismo puro e duro. Formulei intimamente a convicção de estar perante um espírito livre, inteiramente desvinculado de qualquer tipo de culto dogmático.
Quando António Costa o convidou — e estou a referir-me como é já óbvio a Mário Centeno - para dirigir o grupo de trabalho encarregado da elaboração do programa económico a apresentar pelo PS nas eleições Legislativas de 2015, suspirei de alívio. O resultado final do labor prosseguido por tal grupo dificilmente poderia ter sido melhor. Nestas mesmas páginas tive oportunidade de saudar a clarividência, a inteligência e o carácter politicamente inovador da proposta finalmente apresentada. Foi aliás por essa razão que participei activamente na última campanha política do PS, apesar das reservas publicamente enunciadas acerca de algumas das orientações assumidas pela direcção nacional do partido.
É sabido que me opus frontalmente à solução política em vigor, a qual com o tempo foi adquirindo a designação um pouco infantil de “geringonça”. Apesar dessa oposição, que não só não escondi como reiteradamente assumi, sempre projectei alguma confiança na opção europeísta de António Costa e na fidelidade intelectual de Mário Centeno às suas convicções mais profundas. É certo que isso não era suficiente para aderir a uma fórmula político-parlamentar que, demasiado dominada por insanáveis contradições estruturais, não está em condições de levar a cabo qualquer tipo de acção política verdadeiramente inovadora e reformista. Uma coisa é, porém, certa: nem a chamada geringonça, nem António Costa, nem Mário Centeno tiveram o condão de me desiludir. A geringonça consumiu-se e exauriu-se num programa assaz ligeiro de reversões e devoluções, António Costa confirmou as suas convicções pró-europeístas e Mário Centeno garantiu o integral cumprimento dos compromissos assumidos pelo nosso país no âmbito europeu.
A eleição do ministro das Finanças português para a presidência do Eurogrupo constitui por isso mesmo um facto político do maior significado. É certo — e nisso têm razão alguns dos mais inteligentes protagonistas e analistas políticos oriundos do espaço ideológico situados à esquerda do PS — que tal acontecimento não vai alterar por si só, no imediato, as grandes linhas de orientação da política económica, monetária e orçamental prevalecente no espaço europeu. Nisso esses sectores políticos portugueses revelam maior seriedade e objectividade analítica do que aqueles que se apressaram a declarar que a eleição de Centeno significava a exportação de um suposto modelo alternativo de governação de Portugal para a Europa. Entre a inteligência demasiado céptica de Daniel Oliveira e o excessivo voluntarismo do porta-voz do PS, João Galamba, não há dúvida de que a razão assiste indiscutivelmente ao primeiro. Só que - e esta pequena diferença não é desprovida de importância - o reconhecimento por parte do Partido Popular Europeu de que a Presidência do Eurogrupo deveria ser atribuída a um socialista, por um lado, e a inteligência, a preparação técnica e a consciência crítica de Mário Centeno, por outro, não serão certamente factores despiciendos na forma como vai exercer as funções que agora lhe foram cometidas. Por isso mesmo entramos numa nova fase da nossa vida política nacional. A extrema-esquerda e a direita dão sinais de uma profunda desorientação. O próprio sector mais esquerdista do PS parece ter desistido da inteligência, refugiando-se exclusivamente no domínio da propaganda. Se João Galamba, que é de longe o mais inteligente e o mais preparado dos representantes desse sector, recorre a um expediente tão medíocre como aquele que referi anteriormente, o que dizer dos demais?
A geringonça aparenta caminhar rapidamente para um estado agónico, a direita, paradoxalmente, presta quotidianas provas da sua estreiteza doutrinária e política em vez de se afirmar e o Presidente da República sobressai, mesmo quando cede a uma tentação populista que as circunstâncias lhe não exigem. Ou eu estou muito enganado ou este é o tempo certo para uma clarificação na vida política portuguesa. Creio que António Costa ainda vai a tempo de evitar o pântano.


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