quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Futurologia. Passadismo. Subjectividade.


Ânsias que se pretendem isentas, em aviso premonitório de José Pacheco Pereira, mas que deixam escapar algo dos seus interesses de estabilidade governativa no apoio incondicional a este governo, para este se precaver e tomar atenção aos seus avisos de camaradagem musculada pela sapiência.
Um artigo de reconhecimento do valor de uma pessoa e de um jornal, o de São José Almeida, que não se coíbe de reconhecer méritos a quem entende que os tem, com a marca da subjectividade natural e simples, porque resulta de um pensamento ético e grato.
Afinal, tão subjectivo o primeiro como o segundo, embora aquele disfarce mais a sua ansiedade na pretensão da racionalidade analítica, que não convence ninguém. Nem, de resto, é esse o seu objectivo. Afastado Passos Coelho, o seu “Inimigo Público”, reconhecendo quanto os dois candidatos do PSD não farão mossa, Pacheco Pereira, está sossegado quanto ao futuro do seu PS, mas pretende pôr as cartas na mesa da sua erudição futurológica, para manter a sua aura de clarividência analítica. O texto de São José Almeida tem outra ética – a do reconhecimento do valor de um seu herói e do seu papel no jornal que ele financiou, com a distanciamento necessário – jornal a que ela pertence e que admira, sem pejo de o afirmar. Afinal, com a objectividade do seu rigor descritivo.

1º TEXTO: O que pode avariar a “geringonça”
(José Pacheco Pereira, in Público, 02/12/2017)
A proximidade com as eleições de 2019. À medida que se aproximam as eleições legislativas de 2019, os riscos de desagregação do acordo que mantém o Governo minoritário do PS aumentam significativamente. O principal factor é o adiamento de qualquer perspectiva de futuro para a chamada “geringonça”, sem nenhuma das partes ter uma ideia clara do que vai fazer, nem do contexto em que se vão realizar as eleições. Uma coisa pode, no entanto, dizer-se: a causa próxima do acordo PS-BE-PCP foi impedir que um governo PAF pudesse existir e continuar a política dos anos do “ajustamento”. A recusa por parte da esquerda do PSD e do CDS deu-lhe o cimento que permitiu até agora manter, apesar de todas as dificuldades, a unidade necessária para passar os documentos vitais para garantir o Governo PS.
Caso houvesse a convicção, com elevado grau de certeza (como se estava a consolidar até à crise dos incêndios), de que o PSD e o CDS não estavam em condições de tão cedo voltarem ao poder, isso fragilizava a “geringonça” porque alimentava as ambições competitivas de cada um dos seus partidos sem grandes riscos. Mas o efeito contrário também existe: sempre que o PSD e, em menor grau, o CDS podem parecer como beneficiários das dificuldades do Governo PS, aí a recusa da direita funciona de novo como cimento da esquerda.
O Orçamento de 2018 já será de enorme risco, em particular se todos os parceiros estiverem convencidos de que, ou têm ganho de causa em ir às eleições sem qualquer entendimento prévio, ou que, com entendimento ou sem ele, podem manter suficiente margem de manobra para renegociar, caso o PS não tenha a maioria absoluta ou mesmo torne de novo a não ser o primeiro partido.
Em todos estes casos, cada dia que passa sem haver qualquer ideia do que possa acontecer em 2019 — que ganha em ser pensado antes e não em cima da data, ou forçado por circunstâncias que serão sempre negativas, ou até por uma queda do Governo por falta de apoio parlamentar em legislação que o Governo e o Presidente entendam ser relevante —, o enfraquecimento da “geringonça” acentuar-se-á. A referência ao Presidente tem tanto mais sentido quanto este pode provocar a dissolução da Assembleia, se entender que o Governo deixou de ter o apoio parlamentar necessário. E, se o Presidente até agora acentuou o factor de estabilidade governativa como uma marca que queria associada à sua Presidência, no seu discurso a seguir aos incêndios e prévio à moção de censura do CDS sugeriu pela primeira vez que em momentos críticos o Governo precisava de legitimação parlamentar clara.
A avaliação do PS de que pode ganhar sozinho as eleições de 2019Até à crise dos incêndios, havia muita gente no PS — e não estou certo de que se possa incluir António Costa nesse grupo — que estava convencida que o PS poderia ter com facilidade uma maioria absoluta sozinho. Por isso, não fazia sentido qualquer acordo pré-eleitoral com o PCP e o BE, na presunção de que estes estivessem disponíveis para o fazer. A atitude é em grande parte clubista: se se pode ter tudo, por que razão é que se parte para umas eleições já com o poder dividido por qualquer acordo? Se as coisas não corressem bem haveria sempre possibilidade de reeditar uma forma qualquer de acordo, como o que existe actualmente. Esses socialistas são típicos do hardcore dos partidos, em que a identidade partidária está acima de tudo, e são pouco dados a subtilezas políticas. No final, seguem as direcções partidárias e, por isso, a sua ambição de um PS sozinho pode transformar-se na mais modesta do “PS no poder”, sem dificuldades.
Há, porém, outro grupo de socialistas, com ligações a António José Seguro, que pensa que é mesmo contraproducente para o PS ter um acordo dessa natureza. Este mesmo grupo nunca verdadeiramente aceitou o mérito da “geringonça” e prefere que um PS minoritário faça um acordo com o PSD ou o CDS do que com o PCP e o BE.
Seja como for, a actual crise gerada pela sensação de que o Governo está a perder o pé, de que o Presidente se comporta de uma forma mais hostil, e de que a situação mais favorável para o partido e o Governo em termos económicos e sociais já está no passado, levou a uma significativa perda das expectativas mais optimistas para as eleições de 2019 e reduziu o potencial de crise da “geringonça” pelo excesso de optimismo.
A política “europeia” que o PS segue é um factor de instabilidade. Embora este seja um dos aspectos mais importantes da instabilidade estrutural que está sempre por baixo do Governo PS e, por extensão, da “geringonça”, merece uma discussão à parte.
A ideia de que o PCP perde com o acordo com o PS. Não sei até que ponto tem qualquer fundamento no interior do partido a ideia muito comum na comunicação social de que o PCP estaria convencido de que foi o acordo com o PS que teria levado aos maus resultados autárquicos, e que por isso o PCP estava muito mais reivindicativo e mesmo hostil com o Governo do PS para “segurar” a sua base. Se tem, ela é claramente errada, porque é difícil imaginar que qualquer militante do PCP ache que tem menos salários, pensões e direitos, por estar o PS no poder com o apoio do PCP do que se estivesse um governo do PAF. Ou sequer que pense que uma independência absoluta do PCP de qualquer acordo permitiria um ambiente reivindicativo mais favorável e, acima de tudo, que desse resultados. Não há razão nenhuma para se pensar que um eleitor comunista votasse no PS (e foi para o PS que se deslocaram os votos) por causa do acordo da “geringonça”.
Não foi o acordo com o PS que prejudicou o PCP nas autárquicas, foram erros do próprio partido, de linguagem, de pessoas, de preguiça e rotina onde se ganha há muito, e de política geral, que explicam os maus resultados do PCP. A “geringonça” ainda é neste momento um dos melhores “activos” do PCP.
A tentação do BE de ser um PS radical. Enquanto o PCP pode ser duro com o PS, o BE é antipático e faz tudo o que pode ser um irritante para a estabilidade política da “geringonça”. A política de reivindicar como seu tudo o que é adquirido de medidas positivas no âmbito governativo é muito injusta para com o PS e com o PCP, e muitas vezes está longe de ser verdadeira. Mas este tipo de competição com o PS tem razão de ser, dado que o BE lhe está muito mais próximo. A ala esquerda do PS comunica em quase tudo com o BE — temas, reivindicações, denúncias, e vice-versa. O resultado é que o BE queria ser o PS radical e isso torna-o mais competitivo num terreno comum, e leva-o a declarações menos tratáveis. O PCP não tem um problema de confusão de identidade com o PS, o BE tem e, num certo grau, o PS também o tem com o BE. Esta proximidade gera maior competição.
O impacto ainda imprevisível de uma nova liderança no PSD. Não é ainda possível imaginar que impacto possa ter uma nova liderança do PSD nas dificuldades da “geringonça”. Tanto pode ter, como ser irrelevante. Em teoria, um novo líder tem sempre um estado de graça que pode tornar mais eficaz a actuação partidária. Mas a julgar pela actual campanha, não é possível ter grandes expectativas, tanto mais que não existe uma ruptura significativa com o passado dos anos do “ajustamento” e do “ir para além da troika”, nem com os factores de crise profunda que atravessa o PSD. O conflito de personalidades é evidente mas não chega para substituir o debate político urgente de que o PSD precisa mais do que tudo. A ideia absurda de se dizer que a campanha é para escolher o que melhores condições tem para ser primeiro-ministro e, ao mesmo tempo, voltar a campanha para dentro, para além de ser contraditória, esquece que a melhor maneira de mudar é sempre de fora para dentro, é ganhar na sociedade e levar esse ganho para dentro do partido. Mas o estado do PSD hoje não permite haver forças endógenas suficientes capazes de fazer essa transmutação. A “geringonça” por aqui não tem nada a temer.

2º TEXTO: Até sempre, engenheiro Belmiro
Sendo jornalista do PÚBLICO desde a sua fundação, há um lado de Belmiro de Azevedo pelo qual tenho um particular interesse, admiração e gratidão.
São José Almeida
Público, 2 de Dezembro de 2017
Belmiro de Azevedo foi um grande empresário, não só em Portugal. Foi-o à escala global. Construiu o seu percurso e o seu império empresarial sabendo investir e sabendo gerir, dois conceitos que parecem ter caído em desuso num país em que o amiguismo e o tráfico de influências (“cunha”, em linguagem popular) se tornaram as armas para construir carreiras de gestores e empresas, além, claro, para conseguir crédito bancário.
Belmiro de Azevedo era um grande empresário e, como tal, era determinado. Ao ponto de não se calar. Ao ponto de, por diversas vezes, ter lançado comentários violentos, sobre o país ou sobre a classe política. Ao ponto de ter entrado em polémicas com o poder institucional.
Aconteceu há uma década com o Governo de José Sócrates a propósito da compra da Portugal Telecom, em que o Estado usou a golden share para impedir a Sonae de lançar uma OPA sobre esta empresa de comunicações. Mas aconteceu também antes com Cavaco Silva a propósito do Banco Português do Atlântico (BPA). E com António Guterres novamente em relação ao BPA.
Belmiro de Azevedo não se coibia de ser provocador. Um dos exemplos ficou nos anais da história parlamentar, quando foi chamado a uma comissão de inquérito ao suposto favorecimento da Sonae pelo Governo de Guterres pedido pelo PSD de Marcelo Rebelo de Sousa. Fazendo saber que começava a trabalhar cedo, exigiu ser ouvido às 8h da manhã, obrigando os deputados a antecipar a reunião.
Belmiro de Azevedo tinha três características que prezo particularmente. Sabia apostar nos outros, confiava e promovia aqueles em quem via capacidades e mérito. Preparava-se intelectual e tecnicamente, sempre, para enfrentar os riscos dos negócios em que se metia. E, last but not the least, não tinha medo de correr riscos. E correu-os. Belmiro de Azevedo era um homem desassombrado. Mas Belmiro de Azevedo era igualmente um homem simples. Mais: não era deslumbrado. O dinheiro nunca lhe subiu à cabeça. Percebi a sua frugalidade e despojamento quando, em 1999 — naquela que foi a primeira das grandes entrevistas que deu ao PÚBLICO —, acompanhei a Teresa de Sousa e o Pedro Camacho ao Algarve, para o entrevistarmos, estava ele de férias num resort da Sonae. Deliciei-me não só com a frontalidade e até ironia das respostas mas também com a gestualidade e os hábitos de pessoa comum, de pessoa que era o que era, sem armações, sem pseudobetices, sem “ceninhas postiças”. Senti mesmo um prazer íntimo ao ver o à-vontade com que nos recebeu de calções e bebia goles de Água das Pedras pela garrafa.
Como é normal, sendo jornalista do PÚBLICO desde a sua fundação e tendo entrado nesta redacção em Setembro de 1989 como estagiária — ainda o jornal ia começar a treinar os “números zero” —, há um lado de Belmiro de Azevedo pelo qual tenho um particular interesse, admiração e gratidão: a forma como soube perceber o projecto jornalístico que lhe foi apresentado no final dos anos 80 do século passado por Vicente Jorge Silva, Augusto Seabra, Jorge Wemans, José Manuel Fernandes e Nuno Pacheco.
Fê-lo com desprendimento, com distanciamento, com frieza de cálculo de gestão e com visão estratégica. Percebeu que podia revolucionar a comunicação social em Portugal e arriscou. Fez um jornal que marcou e marca o panorama da comunicação social portuguesa.
É certo que o PÚBLICO foi um investimento financeiro que raramente deu lucro. É certo que várias vezes Belmiro de Azevedo deu um murro na mesa. Chegou a dar um prazo de vida ao jornal. Mais de uma vez, o PÚBLICO sofreu convulsões, cortes e constrangimentos por razões financeiras. O que me parece legítimo como acto de gestão do ponto de vista do empresário, já que, sendo também um investimento, não era nem deve ser para perder dinheiro, ou pelo menos não perder muito.
Creio, contudo, que Belmiro de Azevedo sempre aceitou perder dinheiro com o jornal porque sabia que o PÚBLICO era e é muito mais do que isso. É um projecto que tem uma função social. É um agente de uma sociedade democrática. E creio estar certa quando penso que Belmiro de Azevedo sempre se orgulhou de fundar e de ser dono do PÚBLICO.
É preciso dizer, porém, que Belmiro de Azevedo nunca se serviu do jornal. Não interferiu na linha editorial nem no trabalho da redacção. E manteve sempre a devida distância. Visitou duas vezes a redacção, uma no início, outra quando o jornal se mudou, em 2013, para as actuais instalações em Lisboa. E, dentro dos constrangimentos financeiros a que esteve e está sujeito, o PÚBLICO sempre viveu em total liberdade e independência editoriais.
O espírito de liberdade, a marca-d’água do PÚBLICO, permitiu à redacção manter viva a chama do jornalismo independente. Uma liberdade que foi e é acompanhada, quase sempre, mesmo em momentos de crise interna, por um clima de informalidade e de frontalidade só possível numa redacção livre. Há uma história do início do jornal que demonstra de forma quase caricatural este espírito aberto. Nas instalações da Quinta do Lambert, em Lisboa, o jornal adoptou dois cães vadios: o Sonae, que depois ganhou uma namorada, a Belmira. Acredito que Belmiro de Azevedo, se soube, terá achado graça.
Quando, no início de 1990, fazíamos mais um “número zero”, a editora da Política, Áurea Sampaio, mandou-me ao aeroporto de Lisboa para pedir um comentário de Alberto João Jardim sobre um assunto que se perdeu na minha memória. O que não esqueci nunca foi a cena em si. Apresentei-me como jornalista do PÚBLICO e fiz a pergunta. O presidente do Governo da Madeira respondeu-me: “Não falo a jornais do continente.”
Na minha ingenuidade de então e desconhecendo ainda o léxico de Jardim, achei que ele estava a dizer que não falava ao PÚBLICO porque era o jornal do supermercado Continente. Até porque, à época do lançamento do PÚBLICO, era comum ouvirem-se comentários jocosos sobre o jornal ser de um homem conhecido pela sua cadeia de supermercados. Ouvi mesmo por várias vezes o comentário de ser paga pelo “lucro da venda de alfaces e de amendoins”.
Sempre foi motivo de orgulho, para mim, ser paga com dinheiro “da venda de alfaces e de amendoins”. É bom saber que não sou paga pelo lucro de negócios escusos, de investimentos em offshores ou que as pessoas suspeitem até de que a origem do financiamento do PÚBLICO esteja ligada a cartéis de droga.
Por isso, e por tudo o resto que o PÚBLICO representou e representa, tenho um enorme orgulho e uma imensa honra de trabalhar há quase 30 anos para Belmiro de Azevedo e para a sua Sonae. Obrigada, senhor engenheiro.


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