Ânsias
que se pretendem isentas, em aviso premonitório de José Pacheco Pereira,
mas que deixam escapar algo dos seus interesses de estabilidade governativa no
apoio incondicional a este governo, para este se precaver e tomar atenção aos seus avisos de camaradagem musculada pela sapiência.
Um
artigo de reconhecimento do valor de uma pessoa e de um jornal, o de São
José Almeida, que não se coíbe de reconhecer méritos a quem entende que os
tem, com a marca da subjectividade natural e simples, porque resulta de um
pensamento ético e grato.
Afinal,
tão subjectivo o primeiro como o segundo, embora aquele disfarce mais a sua
ansiedade na pretensão da racionalidade analítica, que não convence ninguém.
Nem, de resto, é esse o seu objectivo. Afastado Passos Coelho, o seu “Inimigo Público”,
reconhecendo quanto os dois candidatos do PSD não farão mossa, Pacheco Pereira,
está sossegado quanto ao futuro do seu PS, mas pretende pôr as cartas na mesa
da sua erudição futurológica, para manter a sua aura de clarividência
analítica. O texto de São José Almeida tem outra ética – a do
reconhecimento do valor de um seu herói e do seu papel no jornal que ele
financiou, com a distanciamento necessário – jornal a que ela pertence e que
admira, sem pejo de o afirmar. Afinal, com a objectividade do seu rigor descritivo.
1º TEXTO: O que pode avariar a “geringonça”
(José Pacheco Pereira, in Público, 02/12/2017)
A proximidade com as eleições de 2019. À
medida que se aproximam as eleições legislativas de 2019, os riscos de
desagregação do acordo que mantém o Governo minoritário do PS aumentam
significativamente. O principal factor é o adiamento de qualquer
perspectiva de futuro para a chamada “geringonça”, sem nenhuma das partes ter
uma ideia clara do que vai fazer, nem do contexto em que se vão realizar as
eleições. Uma coisa pode, no entanto, dizer-se: a causa próxima do
acordo PS-BE-PCP foi impedir que um governo PAF pudesse existir e continuar a
política dos anos do “ajustamento”. A recusa por parte da esquerda do PSD e do
CDS deu-lhe o cimento que permitiu até agora manter, apesar de todas as
dificuldades, a unidade necessária para passar os documentos vitais para
garantir o Governo PS.
Caso houvesse a convicção,
com elevado grau de certeza (como se estava a consolidar até à crise dos
incêndios), de que o PSD e o CDS não estavam em condições de tão cedo voltarem
ao poder, isso fragilizava a “geringonça” porque alimentava as ambições
competitivas de cada um dos seus partidos sem grandes riscos. Mas o efeito
contrário também existe: sempre que o PSD e, em menor grau, o CDS podem parecer
como beneficiários das dificuldades do Governo PS, aí a recusa da direita
funciona de novo como cimento da esquerda.
O Orçamento de 2018 já
será de enorme risco, em particular se todos os parceiros
estiverem convencidos de que, ou têm ganho de causa em ir às eleições sem
qualquer entendimento prévio, ou que, com entendimento ou sem ele, podem manter
suficiente margem de manobra para renegociar, caso o PS não tenha a maioria
absoluta ou mesmo torne de novo a não ser o primeiro partido.
Em todos estes casos,
cada dia que passa sem haver qualquer ideia do que possa acontecer em 2019 —
que ganha em ser pensado antes e não em cima da data, ou forçado por
circunstâncias que serão sempre negativas, ou até por uma queda do Governo por
falta de apoio parlamentar em legislação que o Governo e o Presidente entendam
ser relevante —, o enfraquecimento da “geringonça” acentuar-se-á. A
referência ao Presidente tem tanto mais sentido quanto este pode provocar a
dissolução da Assembleia, se entender que o Governo deixou de ter o apoio
parlamentar necessário. E, se o Presidente até agora acentuou o factor de
estabilidade governativa como uma marca que queria associada à sua Presidência,
no seu discurso a seguir aos incêndios e prévio à moção de censura do CDS
sugeriu pela primeira vez que em momentos críticos o Governo precisava de
legitimação parlamentar clara.
A avaliação do PS de que pode ganhar sozinho as eleições de 2019. Até
à crise dos incêndios, havia muita gente no PS — e não estou certo de que se
possa incluir António Costa nesse grupo — que estava convencida que o PS
poderia ter com facilidade uma maioria absoluta sozinho. Por isso, não fazia
sentido qualquer acordo pré-eleitoral com o PCP e o BE, na presunção de que
estes estivessem disponíveis para o fazer. A atitude é em grande parte
clubista: se se pode ter tudo, por que razão é que se parte para umas eleições
já com o poder dividido por qualquer acordo? Se as coisas não corressem
bem haveria sempre possibilidade de reeditar uma forma qualquer de acordo, como
o que existe actualmente. Esses socialistas são típicos do hardcore dos partidos, em que a identidade
partidária está acima de tudo, e são pouco dados a subtilezas políticas. No
final, seguem as direcções partidárias e, por isso, a sua ambição de um PS sozinho
pode transformar-se na mais modesta do “PS no poder”, sem dificuldades.
Há, porém, outro grupo
de socialistas, com ligações a António José Seguro, que pensa que é mesmo
contraproducente para o PS ter um acordo dessa natureza. Este mesmo grupo nunca
verdadeiramente aceitou o mérito da “geringonça” e prefere que um PS
minoritário faça um acordo com o PSD ou o CDS do que com o PCP e o BE.
Seja como for, a
actual crise gerada pela sensação de que o Governo está a perder o pé, de que o
Presidente se comporta de uma forma mais hostil, e de que a situação
mais favorável para o partido e o Governo em termos económicos e sociais já
está no passado, levou a uma significativa perda das expectativas mais
optimistas para as eleições de 2019 e reduziu o potencial de crise da
“geringonça” pelo excesso de optimismo.
A política “europeia” que o PS segue é um factor de instabilidade. Embora este seja um dos aspectos
mais importantes da instabilidade estrutural que está sempre por baixo do
Governo PS e, por extensão, da “geringonça”, merece uma discussão à parte.
A ideia de que o PCP perde com o acordo com o PS. Não sei até que ponto tem qualquer
fundamento no interior do partido a ideia muito comum na comunicação social de
que o PCP estaria convencido de que foi o acordo com o PS que teria levado aos
maus resultados autárquicos, e que por isso o PCP estava muito mais
reivindicativo e mesmo hostil com o Governo do PS para “segurar” a sua base. Se
tem, ela é claramente errada, porque é difícil imaginar que qualquer militante
do PCP ache que tem menos salários, pensões e direitos, por estar o PS no poder
com o apoio do PCP do que se estivesse um governo do PAF. Ou sequer que pense
que uma independência absoluta do PCP de qualquer acordo permitiria um ambiente
reivindicativo mais favorável e, acima de tudo, que desse resultados. Não há
razão nenhuma para se pensar que um eleitor comunista votasse no PS (e foi para
o PS que se deslocaram os votos) por causa do acordo da “geringonça”.
Não foi o acordo com o
PS que prejudicou o PCP nas autárquicas, foram erros do próprio partido, de
linguagem, de pessoas, de preguiça e rotina onde se ganha há muito, e de
política geral, que explicam os maus resultados do PCP. A “geringonça”
ainda é neste momento um dos melhores “activos” do PCP.
A tentação do BE de ser um PS radical. Enquanto
o PCP pode ser duro com o PS, o BE é antipático e faz tudo o que pode ser um
irritante para a estabilidade política da “geringonça”. A política de
reivindicar como seu tudo o que é adquirido de medidas positivas no âmbito
governativo é muito injusta para com o PS e com o PCP, e muitas vezes está
longe de ser verdadeira. Mas este tipo de competição com o PS tem razão de ser,
dado que o BE lhe está muito mais próximo. A ala esquerda do PS comunica em
quase tudo com o BE — temas, reivindicações, denúncias, e vice-versa. O
resultado é que o BE queria ser o PS radical e isso torna-o mais competitivo
num terreno comum, e leva-o a declarações menos tratáveis. O PCP não tem um
problema de confusão de identidade com o PS, o BE tem e, num certo grau, o PS
também o tem com o BE. Esta proximidade gera maior competição.
O impacto ainda imprevisível de uma nova liderança no PSD. Não
é ainda possível imaginar que impacto possa ter uma nova liderança do PSD nas
dificuldades da “geringonça”. Tanto pode ter, como ser irrelevante. Em
teoria, um novo líder tem sempre um estado de graça que pode tornar mais eficaz
a actuação partidária. Mas a julgar pela actual campanha, não é possível ter
grandes expectativas, tanto mais que não existe uma ruptura significativa com o
passado dos anos do “ajustamento” e do “ir para além da troika”, nem com os factores de crise profunda que
atravessa o PSD. O conflito de personalidades é evidente mas não chega para
substituir o debate político urgente de que o PSD precisa mais do que tudo. A
ideia absurda de se dizer que a campanha é para escolher o que melhores
condições tem para ser primeiro-ministro e, ao mesmo tempo, voltar a campanha
para dentro, para além de ser contraditória, esquece que a melhor maneira de
mudar é sempre de fora para dentro, é ganhar na sociedade e levar esse ganho
para dentro do partido. Mas o estado do PSD hoje não permite haver
forças endógenas suficientes capazes de fazer essa transmutação. A “geringonça”
por aqui não tem nada a temer.
2º TEXTO: Até sempre, engenheiro Belmiro
Sendo jornalista do PÚBLICO desde a sua fundação, há um lado de Belmiro
de Azevedo pelo qual tenho um particular interesse, admiração e gratidão.
São José Almeida
Público, 2 de Dezembro de 2017
Belmiro de Azevedo foi
um grande empresário, não só em Portugal. Foi-o à escala global. Construiu
o seu percurso e o seu império empresarial sabendo investir e sabendo gerir,
dois conceitos que parecem ter caído em desuso num país em que o amiguismo e o
tráfico de influências (“cunha”, em linguagem popular) se tornaram as armas
para construir carreiras de gestores e empresas, além, claro, para conseguir
crédito bancário.
Belmiro de Azevedo era
um grande empresário e, como tal, era determinado. Ao ponto de
não se calar. Ao ponto de, por diversas vezes, ter lançado comentários
violentos, sobre o país ou sobre a classe política. Ao ponto de ter entrado em
polémicas com o poder institucional.
Aconteceu há uma década
com o Governo de José Sócrates a propósito da compra da Portugal Telecom, em
que o Estado usou a golden share para impedir a Sonae de lançar uma
OPA sobre esta empresa de comunicações. Mas aconteceu também antes com Cavaco
Silva a propósito do Banco Português do Atlântico (BPA). E com António Guterres
novamente em relação ao BPA.
Belmiro de Azevedo não
se coibia de ser provocador. Um dos exemplos ficou nos anais da
história parlamentar, quando foi chamado a uma comissão de inquérito ao suposto
favorecimento da Sonae pelo Governo de Guterres pedido pelo PSD de Marcelo
Rebelo de Sousa. Fazendo saber que começava a trabalhar cedo, exigiu ser ouvido
às 8h da manhã, obrigando os deputados a antecipar a reunião.
Belmiro de Azevedo tinha
três características que prezo particularmente. Sabia apostar nos
outros, confiava e promovia aqueles em quem via capacidades e mérito.
Preparava-se intelectual e tecnicamente, sempre, para enfrentar os riscos dos
negócios em que se metia. E, last but not the least, não tinha medo de
correr riscos. E correu-os. Belmiro de Azevedo era um homem
desassombrado. Mas Belmiro de Azevedo era igualmente um homem simples. Mais:
não era deslumbrado. O dinheiro nunca lhe subiu à cabeça. Percebi a sua
frugalidade e despojamento quando, em 1999 — naquela que foi a primeira das
grandes entrevistas que deu ao PÚBLICO —, acompanhei a Teresa de Sousa e o
Pedro Camacho ao Algarve, para o entrevistarmos, estava ele de férias num resort da
Sonae. Deliciei-me não só com a frontalidade e até ironia das respostas mas
também com a gestualidade e os hábitos de pessoa comum, de pessoa que era o que
era, sem armações, sem pseudobetices, sem “ceninhas postiças”. Senti mesmo um
prazer íntimo ao ver o à-vontade com que nos recebeu de calções e bebia goles
de Água das Pedras pela garrafa.
Como é normal, sendo
jornalista do PÚBLICO desde a sua fundação e tendo entrado nesta redacção em
Setembro de 1989 como estagiária — ainda o jornal ia começar a treinar os
“números zero” —, há um lado de Belmiro de Azevedo pelo qual tenho um
particular interesse, admiração e gratidão: a forma como soube perceber o
projecto jornalístico que lhe foi apresentado no final dos anos 80 do século
passado por Vicente Jorge Silva, Augusto Seabra, Jorge Wemans, José Manuel
Fernandes e Nuno Pacheco.
Fê-lo com
desprendimento, com distanciamento, com frieza de cálculo de gestão e com visão
estratégica. Percebeu que podia revolucionar a comunicação social em Portugal e
arriscou. Fez um jornal que marcou e marca o panorama da comunicação social
portuguesa.
É certo que o PÚBLICO
foi um investimento financeiro que raramente deu lucro. É certo que várias
vezes Belmiro de Azevedo deu um murro na mesa. Chegou a dar um prazo de vida ao
jornal. Mais de uma vez, o PÚBLICO sofreu convulsões, cortes e constrangimentos
por razões financeiras. O que me parece legítimo como acto de gestão do ponto
de vista do empresário, já que, sendo também um investimento, não era nem
deve ser para perder dinheiro, ou pelo menos não perder muito.
Creio, contudo, que
Belmiro de Azevedo sempre aceitou perder dinheiro com o jornal porque sabia que
o PÚBLICO era e é muito mais do que isso. É um projecto que tem
uma função social. É um agente de uma sociedade democrática. E creio estar
certa quando penso que Belmiro de Azevedo sempre se orgulhou de fundar e de ser
dono do PÚBLICO.
É preciso dizer, porém,
que Belmiro de Azevedo nunca se serviu do jornal. Não interferiu na
linha editorial nem no trabalho da redacção. E manteve sempre a devida
distância. Visitou duas vezes a redacção, uma no início, outra quando o jornal
se mudou, em 2013, para as actuais instalações em Lisboa. E, dentro dos
constrangimentos financeiros a que esteve e está sujeito, o PÚBLICO sempre
viveu em total liberdade e independência editoriais.
O espírito de liberdade,
a marca-d’água do PÚBLICO, permitiu à redacção manter viva a chama do
jornalismo independente. Uma liberdade que foi e é acompanhada,
quase sempre, mesmo em momentos de crise interna, por um clima de informalidade
e de frontalidade só possível numa redacção livre. Há uma história do início do
jornal que demonstra de forma quase caricatural este espírito aberto. Nas
instalações da Quinta do Lambert, em Lisboa, o jornal adoptou dois cães vadios:
o Sonae, que depois ganhou uma namorada, a Belmira. Acredito que
Belmiro de Azevedo, se soube, terá achado graça.
Quando, no início de 1990,
fazíamos mais um “número zero”, a editora da Política, Áurea Sampaio, mandou-me
ao aeroporto de Lisboa para pedir um comentário de Alberto João Jardim
sobre um assunto que se perdeu na minha memória. O que não esqueci nunca foi a
cena em si. Apresentei-me como jornalista do PÚBLICO e fiz a pergunta. O
presidente do Governo da Madeira respondeu-me: “Não falo a jornais do
continente.”
Na minha ingenuidade de
então e desconhecendo ainda o léxico de Jardim, achei que ele estava a dizer
que não falava ao PÚBLICO porque era o jornal do supermercado Continente. Até
porque, à época do lançamento do PÚBLICO, era comum ouvirem-se comentários
jocosos sobre o jornal ser de um homem conhecido pela sua cadeia de
supermercados. Ouvi mesmo por várias vezes o comentário de ser paga pelo “lucro
da venda de alfaces e de amendoins”.
Sempre foi motivo de
orgulho, para mim, ser paga com dinheiro “da venda de alfaces e de amendoins”.
É bom saber que não sou paga pelo lucro de negócios escusos, de investimentos
em offshores ou que as pessoas suspeitem até de que a origem do
financiamento do PÚBLICO esteja ligada a cartéis de droga.
Por isso, e por tudo o
resto que o PÚBLICO representou e representa, tenho um enorme orgulho e uma
imensa honra de trabalhar há quase 30 anos para Belmiro de Azevedo e para a sua
Sonae. Obrigada, senhor engenheiro.
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