sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Judeus, um povo errante


Também os tivemos cá, e bem espertos, alguns, dos tais que a Santa Inquisição perseguia. É problema antigo, que já a Bíblia refere, esse da diáspora, com Pedro encarregado de lançar a Primeira Pedra de uma igreja Cristã, e Paulo a difundir a Boa Nova… Mas os Judeus seguiram outros trâmites, nunca se adaptaram bem, inteligentes que eram. E na Segunda Guerra foram vítimas de horrores. Mereceram o seu espaço, o seu Israel, a sua Tora. Merecem a sua Jerusalém. Diogo Queirós de Andrade receia as consequências do gesto atrevido de Trump, Paulo Tunhas aceita-o bem e fala de hipocrisia da camada da esquerda, que condena a democracia, José Milhazes reaviva histórias – russas - de Judeus, a incitar novamente aos ódios causados talvez por invejas ocidentais. Mas que Trump foi atrevido e arrogante, isso também  me parece. Oxalá não haja consequências de maior.
1- EDITORIAL:   Trump enterrou a paz no Médio Oriente
DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE     Público, 7 de Dezembro de 2017
O argumento da capital partilhada seria algo que poderia forçar a vivência conjunta, essencial para o reconhecimento mútuo entre dois vizinhos inimigos que se conhecem demasiado mal.
Donald Trump não quer a paz no Médio Oriente. O anúncio de que vai definitivamente mudar a embaixada dos EUA de Telavive para Jerusalém equivale ao reconhecimento da capital de Israel. Com este passo arruinou décadas de esforços diplomáticos americanos no Médio Oriente e assumiu o fervor por um dos lados em disputa, enterrando qualquer possibilidade de ser visto como credível pelo outro. Ao fazer a vontade aos israelitas, condenou a possibilidade de ser levado a sério pelos árabes, criando mais rancor e um novo vazio numas negociações que já estavam em coma.
Pior, ao anunciar unilateralmente esta mudança, inventa uma duplicidade na estrutura de poder israelita: os EUA serão os únicos a colocar a embaixada em Jerusalém e a reconhecê-la como capital do Estado, todos os outros países deverão manter a presença diplomática em Telavive — porque continuam a considerar a parte leste de Jerusalém como capital de um futuro estado palestiniano.
O argumento da capital partilhada seria algo que poderia forçar a vivência conjunta, essencial para o reconhecimento mútuo entre dois vizinhos inimigos que se conhecem demasiado mal. Os acordos de Oslo previam a possibilidade de futura partilha da capital, mas este movimento unilateral americano torna mais difícil esta possibilidade.
Com o gesto acabou por unir as oposições palestinianas tradicionalmente desavindas que concordam em pouco. Desta vez, o anúncio americano teve unânimes condenações da Fatah e do Hamas, bem como da generalidade das nações muçulmanas. Isto vai retirar os palestinianos da mesa negocial durante meses, talvez anos. Até porque ninguém, a não ser os americanos, tinham peso e credibilidade suficiente para forçar um entendimento entre as partes — a União Europeia não tem sido suficientemente coesa para o fazer e terá outras prioridades na mesa diplomática.
Para mais, fazer esta cedência ao Governo israelita de Netanyahu é passar um grande cheque de simpatia a um executivo que tem feito tudo para matar a paz — os israelitas passaram os últimos anos a expandir colonatos, a reduzir a liberdade dos palestinianos e a apostar em dividir o bloco árabe na questão da paz. Será também nisso que está a apostar Trump, ao forçar uma união entre Israel e a Arábia Saudita contra o Irão — prejudicando definitivamente a paz com a Palestina, que pelos vistos não interessa minimamente à Casa Branca.
Jerusalém
Paulo Tunhas    OBSERVADOR, 7/12/17
A decisão de Trump sobre Jerusalém rompe com a hipocrisia vigente quando se fala do Médio Oriente, que tudo na aparência igualiza para na verdade sistematicamente condenar Israel desde o princípio.
Sendo, na aparência, um dos poucos portugueses que não é cidadão dos Estados Unidos da América, pouco falo de Donald Trump. No máximo, com as raríssimas pessoas com quem falo de política, o que me vem à cabeça é dizer que, com a excepção de Donald Trump, tudo conspira para me fazer simpatizar com Donald Trump. Não é um raciocínio muito elaborado, mas confesso que ao ler notícias em jornais onde, a partir de uma fotografia de Trump com os atacadores do sapato direito desapertados, se elaboram desenvolvidas doutrinas sobre a sua política nacional e internacional, é aquilo de que sou capaz.
No entanto, o seu reconhecimento ontem de Jerusalém como capital de Israel, no seguimento de uma decisão do Congresso americano datada de 1995, levou-me a sentir com ele um acordo que antes nunca experimentei inteiro. Porque, na malsã atmosfera de hipocrisia política em que se vive, o gesto não é despiciendo e manifesta, contrariamente ao que por aí imediatamente se escreveu, alguma sensatez. Traz problemas? Traz, sem dúvida. Mas representa a possibilidade de um novo início das coisas, que rompa com a hipocrisia vigente quando se fala do Médio Oriente, que tudo na aparência igualiza para na verdade sistematicamente condenar Israel desde o princípio. Não digo que a hipocrisia não seja por vezes necessária em política (e, de resto, nas relações humanas em geral) e não tenha, em certas situações, bons frutos. Acontece que neste caso preciso nenhuma necessidade a guia e os frutos são maus.
Em 2003, publiquei conjuntamente com Fernando Gil um livro intitulado Impasses, seguido de Coisas vistas, coisas ouvidas, por Danièle Cohn. O livro lidava com a reacção ocidental ao 11 de Setembro e ao terrorismo islâmico, incluindo um capítulo sobre a segunda guerra do Golfo. Antecipando tudo o que se dirá e escreverá por estes dias acerca de Israel, fui reler algumas páginas então escritas. Reproduzo aqui uma passagem do livro. Dada a sua extensão, decidi omitir as referências ao que então era a opinião comum do muito que se publicava. Guardo apenas uma que é particularmente ilustrativa. Miguel Sousa Tavares explicava por essa altura que Israel é “a maior ameaça à paz mundial”, continuando: “Se algum dia o planeta implodir, vai ficar a devê-lo a Israel e à dependência política do establishment americano relativamente ao lobby israelita dos Estados Unidos”. Israel, note-se, é “a maior ameaça à paz mundial”. O que se segue, entre aspas, é o que no livro é dito em relação a essa doutrina comum, com que teremos de voltar a conviver em breve, sobre Israel. Limitei-me, tirando pequenos detalhes, a alterar o texto num ponto: duas afirmações citadas vêm agora com os seus autores devidamente identificados. (Quando escrevemos o livro, Fernando Gil e eu optámos por não referir directamente os autores, porque o que nos interessava era estabelecer o quadro geral de uma atitude dominante na opinião publicada no que respeitava ao pós-11 de Setembro.)
“A questão de Israel é infinita. Os pontos serão portanto aqui selectivos. O ódio a Israel não foi sempre, muito pelo contrário, uma característica da Esquerda. Ele acompanha-se da descoberta, nessa mesma Esquerda, de uma paixão, a que nada historicamente a obrigava, pelo terrorismo. Israel é uma sociedade democrática (segundo qualquer um dos critérios ao nosso dispor: critérios que remontam ao exemplo do exercício da sociedade ateniense no século V a. C.), rodeada de sociedades que, segundo esses mesmos e exactíssimos critérios, não são, nem de perto nem de longe, democráticas.
“O ódio a Israel relaciona-se com uma tendência relativamente recente de uma parte substancial da Esquerda a, em linguagem e em acto, abandonar os patamares da democracia. O ódio a Israel – e, diga-se por fim, a palavra ódio não é exagerada – tem a ver com o desprezo crescente que essa mesma parte da Esquerda ostenta pelos regimes do Ocidente e pelas democracias representativas (“socialmente fascistas”, nas palavras do Prof. Boaventura Sousa Santos). Israel é objecto do desprezo que só timidamente – e por vez ou outra mais atrevidamente – se enuncia em relação à democracia em geral.
“Percebe-se. Israel: sociedade democrática responsável por si mesma. Israel: sociedade onde os actos do Governo são fiscalizados e censurados através do voto. Israel: sociedade onde os cidadãos livremente se manifestam contra as decisões políticas do seu Governo. Israel: sociedade onde a vida dos cidadãos é livre, onde, entre outras, as coisas do amor são abertamente discutidas. Israel: sociedade onde o masoquismo “suicida-ideológico” não faz parte dos costumes políticos e onde, como optimamente Alain Finkelkraut escreveu um dia, não se encontra nenhuma disposição para “expiar os horrores da história ocidental”, porque parece aos seus cidadãos – e não se vê como lhes negar autoridade para essa reflexão – “terem sofrido eles próprios mais do que lhes calhava nesse capítulo. Israel (ainda nas palavras de Alain Finkelkraut): “pequena nação: pequena em superfície; pequena em número de cidadãos; pequena no sentido mais profundo em que a sua existência não se encontra automaticamente garantida, em que permanece contestada trinta e cinco anos depois da criação do Estado [Finkelkraut escrevia em 1983]”. Israel: sociedade cuja auto-defesa – os problemas são esses, e não os mais alambicados da “auto-estima” – se joga dia-a-dia, contra terroristas que assassinam cegamente. Israel: voltemos ao princípio – sociedade democrática.
“O ódio a Israel é o ódio recalcado que uma parte do Ocidente vota a si mesmo. Não é acidental que as críticas à democracia e as críticas a Israel se fundam no mesmo gesto. Elas transcendem largamente a preocupação com os sofrimentos que palestinianos ou israelitas experimentam no seu dia-a-dia. De facto, nada disso conta – nada disso tem de contar. O que interessa é a questão da existência, pura e simples, de Israel: é ela que está perpetuamente em causa. Tal como a da democracia.
“O jornalista (Miguel Sousa Tavares) que escreve que Israel é “a maior ameaça à paz mundial”, diz, sem obviamente o dizer com as palavras todas, que a democracia é a maior ameaça à paz mundial. Quando, levado pelo seu alegre raciocínio, conclui: “se algum dia o planeta implodir vai ficar a devê-lo a Israel”, diz (continuando a não se servir das palavras todas) que a democracia é a causa da destruição do mundo. E pode bem ser que venha a ter razão. Esperemos que não, mas pode ser que sim. Em todo o caso, não convinha que falasse como se estivesse a falar defendendo a democracia: o que ele pede é que se abdique de tudo. Não de várias coisas acidentais e secundárias, nem sequer daquilo que poderíamos pensar, com razão ou sem ela, ser o essencial – mas de tudo; nada mais e nada menos do que de tudo. Está, em suma, a pedir uma coisa impossível. Em primeiro lugar, impossível para ele mesmo. Mas não está, sem dúvida, a ser original.”
Citei esta longa passagem – escrita, repito, em 2003 – porque o que vem aí vai ser mais do mesmo. Não é que Israel não seja continuamente demonizada. É-o, de facto, sem interrupção. Não há cantor pop que não se veja policiado pelos profissionais dos “boicotes”. Mas a intensidade aumentará por estes dias. Entre outros por aqueles que, em nome de “negociações de paz” que se perpetuam de modo puramente fantasmático, desejam a todo o custo manter uma ficção que lhes é conveniente: a da possibilidade de um acordo entre quem quer continuar a existir e aqueles que apenas desejam a destruição. O que Trump fez tem pelo menos um mérito: introduzir um novo princípio num estado de coisas onde nenhuma solução verdadeiramente era possível. Pelo menos, com Jerusalém como capital de Israel, as coisas ficam mais claras. O que a médio prazo só pode ser bom.
3- RÚSSIA              A culpa é outra vez dos judeus?
José Milhazes           OBSERVADOR, 30/11/2017
A Igreja Ortodoxa Russa, pela voz de alguns altos dignitários, vem levantar novamente a questão do “assassinato ritual” (uma referência aos judeus) de Nicolau II, último czar russo, da esposa e filhos
Quando regimes autoritários, como é o caso daquele que hoje impera na Rússia, começam a ter problemas com a sua estabilidade interna ou externa, tentam sempre arranjar inimigos dentro e fora do país. No caso do “czar” Vladimir Putin, já necessita de ressuscitar temas e métodos claramente medievais.
A Igreja Ortodoxa Russa, pela voz de alguns dos seus altos dignitários, vem levantar novamente a questão do “assassinato ritual” de Nicolau II, último czar russo, da esposa e filhos. Na conferência “Processo do assassinato da família do czar: novas investigações e materiais. Discussão”, Tikhon, bispo de Egorevski, declarou: “Olhamos da forma muito séria para a versão do assassinato ritual. Mais, parte significativa da comissão da Igreja não tem dúvidas de que assim foi”.
Na noite de 16 para 17 de Julho de 1918, revolucionários comunistas, entre os quais havia alguns judeus, fuzilaram 11 pessoas na cidade de Ekaterimburgo, entre as quais estavam sete da família real.
Marina Molodtzova, representante do Comité de Investigação da Rússia, anunciou que “a investigação planeia realizar uma investigação judicial psicológico-histórica para resolver a questão ligada nomeadamente ao carácter possivelmente ritual do assassinato da família do czar”.
É verdade que nem o bispo ortodoxo, que os órgãos de informação russos dizem ser o “confessor” de Putin, nem Marina Molodtzova pronunciaram a palavra “judeus”, mas qualquer cidadão russo minimamente informado compreende que ele se refere a esse povo.
Esta tese não é nova e foi avançada por emigrantes monárquicos russos que fugiram da Rússia depois da revolução comunista de 1917. Nomeadamente, acusaram os assassinos de terem decepado as cabeças das vítimas e enviando-as para o Kremlin como prova de que tinham cumprido a missão. O facto de esse crime ter sido cometido sob a direcção de um bolchevique judeu Iakov Iurovski a mando de outro judeu, o líder comunista Iakov Sverdlov, é apresentado como uma espécie de “ritual cabalístico”.
Investigações forenses e científicas realizadas posteriormente vieram desmentir essa tese. Depois de vários estudos realizados na Rússia e Inglaterra com os restos mortais (incluindo crânios) de várias pessoas encontradas enterradas perto de Ekaterimburgo, o Comité de Investigação da Rússia reafirmou, em 2015, que se tratavam dos restos mortais da última família real russa.
O historiador russo Andrei Zubov considera que essas acusações não têm sentido porque “o Judaísmo não conhece a prática dos assassinatos rituais e os sacrifícios humanos são considerados um crime grave na Torá (livro sagrado dos judeus)”. Além de mais, ele chama a atenção para o facto de os comunistas, “sendo ateus aguerridos, não cometeram, nem podiam cometer assassinatos rituais”.
Porém, a Igreja Ortodoxa Russa, que elevou à categoria de santos Nicolau II e a sua família no meio de grande polémica, continua com dúvidas sobre os resultados da investigação e apoia publicamente, ao mais alto nível, a tese do “assassinato ritual”.
Isto provocou uma reacção imediata das organizações judaicas da Rússia. “O emprego de semelhantes expressões é indigno, não sei o que nelas há mais: ignorância, estupidez ou obscurantismo. Em qualquer dos casos, isso mostra a degradação da sociedade russa e exige uma reacção por parte da Igreja e da direcção do país”, declarou Borukh Gorin, porta-voz da Federação das Comunidades Hebraicas da Rússia.
Alexandre Boroda, presidente dessa organização, vai mais longe e recorda: “as acusações de assassinatos rituais realizados por chefes provocou numerosas vezes a centenas e milhares de vítimas”.
Tendo em conta as perseguições a que os judeus foram sujeitos no Império Russo e na União Soviética, seria de esperar uma reacção clara do Kremlin, mas Vladimir Putin, através do seu porta-voz Dmitri Peskov, lava as mãos como Pilatos, considerando que esta questão não é da competência do Presidente.
“Essa questão não está na nossa ordem de trabalhos”, declarou Peskov.
À medida que se vai aproximando a data das eleições presidenciais russas, marcadas para Março de 2018, a propaganda tenta apresentar o Presidente Putin como o salvador da Rússia e do mundo face aos “inimigos externos e internos”, o que tem levado também o Parlamento a aprovar novas medidas contra os órgãos de comunicação estrangeiros, a pretexto de evitar “ingerências externas” no escrutínio.


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