domingo, 3 de dezembro de 2017

Modelos de servidores e de servos


Um homem sempre indignado que os analisa e nos reduz por isso à categoria de terceiro-mundismo, na retoma analítica de notícias não exemplares: Alberto Gonçalves. Um homem também inteligente e culto que prefere ironizar em jeito de metáfora elegante sobre idênticas coisas, embora desligado de intuitos distinguidores, analista sem grandes ilusões sobre uns e outros, em jeito de Pôncio Pilatos imaculado: António Barreto. Na esteira da indignação do primeiro, eu ressalvo Passos Coelho, na tristeza pela sua fuga irreparável, e pela descrença nas novas marionetas no tablado sectário de um partido em que seguidores seus não arriscaram para o substituírem e para impor asseio ao país, cônscios de que o não saberiam. E regresso aos tempos de Coimbra e duma voz a disfarçar agonias, na saudade por tempos em que se desconhecia – eu desconhecia -  os efeitos tão desconcertantes e envergonhadores da poluição humana. Mas ressalva-se a beleza das fotos de António Barreto e as suas informações de outras vidas. Além do fado de Luís Góis.
A barca da minha vida
Anda perdida no mar
Ficou para sempre cativa
Nas ondas do teu olhar.

Quando eu morrer a cantar
Na minha capa velhinha
Irei ao céu ter contigo
Nas asas duma andorinha.
Uma semana no Terceiro Mundo
Alberto Gonçalves                  DN, 2/12/2017
Felizmente o dr. Rio dá uma ajuda: a comissão de honra e a lista de apoios declarados, repletos do pior entulho oligárquico que o partido produziu em décadas, são quase um manifesto favorável ao rival.
Domingo
Quarenta anos após o 25 de Novembro de 1975, que nos apresentou a um regime ligeiramente similar às democracias civilizadas, um golpe de sentido inverso subverteu os resultados eleitorais e convidou dois partidos comunistas a partilhar o poder. Em quase toda a parte, a ascensão de forças totalitárias é um alarme e uma aflição. Em lugares exóticos, é motivo de celebrações: a 26 de Novembro de 2017, o governo achou que a concessão do país à prepotência material e à indigência mental merecia um “evento” especial e o “evento”, uma sessão de perguntas ao primeiro-ministro a cargo de “espontâneos”, aconteceu.
Como é natural, a comemoração de uma fraude, ou de dois anos de sucessivas fraudes, merecia ser assinalada através de nova fraude. O controlo dos “media” ainda não é o suficiente para esconder que os “espontâneos” eram, afinal, figurantes contratados, as perguntas eram gentilmente combinadas e as respostas, de facto temerárias incursões do dr. Costa pela língua portuguesa, eram uma encenação pelintra. Um vídeo, publicado no Observador, exibiu as actividades dos senhores ministros durante o circo: remover cera dos ouvidos, dormir, tirar macacos do nariz, brincar com o telemóvel, comer os macacos.
Foi, em suma, um espectáculo de propaganda típico da Bolívia com que muitos sonham. E foi, dentro do subgénero Propaganda Boliviana, um espectáculo bonito. A única dúvida é perceber quem saiu mais dignificado do mesmo. Talvez o governo, generoso a ponto de esbanjar a réstia de vergonha que nunca demonstrou possuir. Ou os figurantes, gente tão feliz e honrada que se vende a intrujões por trocos e merenda. Ou as televisões, que ávidas de informar transmitiram a farsa depois de a farsa ser exposta. Ou Portugal em peso, que podia estar a imitar nações a sério e está nisto.
Terça-feira
O dr. Centeno, especialista em fazer aos macacos do nariz aquilo que, nas horas vagas, faz aos rendimentos dos cidadãos que não trabalham para o Estado, é candidato a liderar uma coisa chamada Eurogrupo. O dr. Centeno concorre contra criaturas do Luxemburgo, da Eslováquia e da Letónia. Por sorte, e engenho, a vitória do dr. Centeno parece assegurada, talvez porque a nossa dívida pública é incomensuravelmente superior à dos pobres rivais, talvez porque alguém tem de ir lá parar.
Certo é que, como tudo o que cheire a cargo internacional, inclusive os que não possuem nenhum peso ou implicam mérito além da obscuridade periférica e “imparcial”, o país oficial e oficioso derrete-se com façanhas assim. Por algum motivo, convencionou-se que despejar, a título de penduricalho, um compatriota em lugar de “prestígio” é desculpa para cada português entrar em delíquio nacionalista. Mesmo quando o lugar de “prestígio” era desconhecido de toda a gente meia hora antes e o compatriota disputa o cargo com portentos igual e radicalmente anónimos.
Descontado o pasmo dos pategos, não acho mal. Em princípio, aprovo qualquer pretexto para pegar numa “personalidade” indígena e despejá-la bem longe (embora não faça alarde disso, fui um entusiasta do envio do eng. Guterres para os campos de refugiados e para Nova Iorque, não necessariamente por esta ordem). O problema é o cargo em questão ser, ao que consta, cumulativo, pelo que o dr. Centeno manterá as funções caseiras que tantas alegrias proporcionam aos jornalistas da RTP e da TVI. E, ainda que não mantivesse, o dr. Costa seria perfeitamente capaz de o substituir sem subir o nível do titular nem baixar a dívida. Caso o dr. Centeno ganhe, esta é daquelas situações em que mais ninguém ganha.
Quarta-feira
O PSD tem muito menos encanto na hora da despedida de Pedro Passos Coelho. Terminada a vigência desse homem afinal tão decente que se calhar passou por aqui ao engano, o que sobra? Sobra, pelos vistos, o socialismo nem por isso envergonhado de Santana Lopes e de Rui Rio, sobre os quais não é fácil arranjar um argumento que os distinga. Felizmente, o dr. Rio dá uma ajuda: a sua comissão de honra e a sua lista de apoios declarados, repletos do pior entulho oligárquico que o partido produziu em décadas, são quase um manifesto favorável ao rival. Nomes como Ângelo Correia, Manuela Ferreira Leite, Couto dos Santos e Ferreira do Amaral, isto para não falar das paixões assumidas de Pacheco Pereira ou daquele sr. Capucho, são, ou parecem ser, razões sucessivas para um optimista achar que, apesar de tudo, o PSD ficará mais bem servido com o embaraçoso dr. Santana. Mas um realista percebe que o país está desgraçado.
Quinta-feira
Não tenciono elogiar Belmiro de Azevedo. Por um lado, porque não venero ou abomino homens de negócios. Empresários a sério, por oposição aos espécimes que usam o epíteto mas não largam o Estado, agem por interesse próprio e deixam que os efeitos secundários do seu trabalho aconteçam naturalmente e não se prestem a grandes juízos de valor – e assim é que deve ser. Por outro lado, não é preciso elogiar Belmiro de Azevedo na medida em que os partidos comunistas com representação parlamentar já se encarregaram disso. Ao negar, por oposição assumida ou abstenção cobardolas, o voto de pesar na AR, PCP e BE prestaram ao dono da Sonae a maior homenagem possível: é bom que uma pessoa parta entre o amor dos que lhe são próximos, e o ódio dos que lhe são distantes. Ser detestado, até na hora da morte, por uma corja devota de tiranos e tiranias é sinal de que, nas horas da vida, se fez alguma coisa bem feita. Será com certeza o caso.
Um Te Deum laico e republicano
António Barreto               DN, 3/12/17
Te Deum é a designação de um hino que faz parte da Liturgia das Horas da Igreja Católica. É a forma abreviada de Te Deum laudamus, Louvamos-te, ó Deus! O momento apropriado para cantar este hino é o final de Dezembro, quando os fiéis agradecem as benesses recebidas durante o ano decorrido. É também inspiração para músicos que cultivaram o género: Purcell, Charpentier, Mozart, Haydn, Bruckner e outros compuseram, com este título, obras-primas festejadas por crentes e não crentes.
Hoje, as coisas tomam outras formas. Dispensa-se o génio musical. Retira-se o Deus fora de moda. Antecipa-se a cerimónia para o início do novo ano fiscal. Coloca-se em cena o objecto do louvor. Rodeia-se o sujeito de uma corte bem apessoada, que até pode ser um Conselho de Ministros, em vez dos tradicionais querubins. Adjudicam-se os procedimentos a uma agência de imagem. Contrata-se uma universidade “a fim de credibilizar” o exercício, segundo as palavras dos protagonistas.
Seleccionaram-se umas dezenas de figurantes por amostra calibrada, a quem se pagam deslocações, bebidas, um snack e um per diem de ajudas de custo (150 euros, segundo testemunhos). Solicita-se a um sacerdote que se ocupe do ritual. Os figurantes agem como se de um coro grego se tratasse, mas em intervenções sucessivas, não em coral clássico. Às perguntas inteligentes dos figurantes, o solista responde com desenvoltura. A fim de mostrar o espírito de equipa, vários membros da corte são chamados a participar.
Vozes incómodas fizeram reparos. Foi-lhes dito de imediato que “no ano passado também houve”. A quem referisse que já é a segunda vez que isto se faz, foi esclarecido que o anterior governo também tinha feito algo de parecido na televisão. Aos que estranharam a inclinação dos socialistas, de Costa e de Sócrates, para a propaganda, foi garantido que as direitas, Cavaco Silva, Santana Lopes e Passos Coelho, também o faziam.
É preciso má vontade para comparar esta liturgia honesta à propaganda das direitas! Na verdade, enquanto estas tudo fazem para enganar os cidadãos, as esquerdas apenas se limitam a ouvir o povo, escutar as pessoas, tentar perceber o seu pensamento e entender os anseios profundos da população. Só com muita má-fé se pode imaginar que este governo queira fazer qualquer coisa que não seja uma genuína e honrada tentativa de ouvir e de sentir o pulsar dos portugueses, as suas críticas e as suas sugestões!
Aqueles vinte ministros não eram os patrões dos funcionários presentes no coro litúrgico e em nada intimidavam os que, livremente, pretendiam fazer perguntas: eram coadjuvantes competentes, prontos a ouvir e a esclarecer. Aquela universidade e aqueles académicos eram dedicados à ciência e à cultura, não estavam ali para obter reconhecimento e fama junto de quem decide os orçamentos. Aquela agência de imagem desempenhou as suas funções de modo isento e com profissionalismo.
O que ali se passou não foi medíocre. Não foi armadilha nem manipulação. Não foi a transformação da informação em publicidade empacotada. A quermesse de Aveiro é boa e genuína. É uma encenação patriótica e plural. A melhor prova de que é coisa boa reside no facto de, no ano anterior, se ter feito igual. E de dois anos antes, na televisão, organizada pelo governo da direita de Passos Coelho, ter havido coisa parecida!
Os cidadãos que ali se deslocaram prestaram um serviço ao país, dispuseram-se a representar os restantes portugueses que não puderam estar todos presentes, deram ao governo dados autênticos, entre eleições, sobre o estado da nação. Fizeram-no de modo mais verdadeiro do que as sondagens que não permitem esta consulta de proximidade. Melhor do que o focus group a seguir aos incêndios, este grupo é uma auscultação em comunhão. É próprio de um governo para as pessoas, não para os números.

As minhas fotografias   ANTÓNIO BARRETO

Par de namorados, com telemóvel, na Cidade Proibida, Pequim Em poucas semanas de visita à China, das quais uma na capital, foi este o único par de namorados que vi exibindo na rua um gesto de ternura, partilhada aliás com o telemóvel que era seguramente um objecto de interessada comunhão. Ao que parece, os chineses não gostam de liberdades excessivas, do Google e de manifestações de sentimentos na rua! Talvez a Cidade Proibida tenha inspirado estes dois jovens… O palácio que ocupa esta cidade tem seis séculos de existência. Já esteve degradado várias vezes, mas sempre recupera e renasce. É o maior palácio do mundo, uma verdadeira cidade! Consta que tem 9999 divisões, mas parece que a prova nunca foi feita! Era daqui que o imperador governava a China, o império e, julgava ele, o mundo.

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