Foi no meu estágio cá, quando vim recambiada duma das colónias. Eu dera
sempre razoável conta de mim, como professora, as explicações que aí dava de línguas
e literaturas portuguesa e francesa, faziam que melhor associasse as escolas
literárias, em cujos autores me aventurava com cada vez mais empenhamento, que
já os tempos do liceu e da faculdade possibilitavam, frequentadora assídua que
era das respectivas bibliotecas.
Dediquei-me no estágio, com afinco, a entender as novas metodologias que
marginalizavam bastante o professor, na insistência sobre essas baboseiras do “aprender
a aprender”, objectivo primordial do ensino, ou do “todos os saberes se
equivalem” que destacavam a participação do aluno em perguntas da sua “criatividade”,
segundo se pretendia - as mais das vezes da sua inanidade na minha opinião
reaccionária, empenhada, acima de tudo, em difundir as luzes do meu saber, parco
que fosse, mas passível de colher, mais esclarecidamente, as respostas àquilo
que me impunham os programas das disciplinas – de português e francês
especificamente – na convicção de que os alunos melhor poderiam ser motivados
para uma participação de reflexão e autenticidade com os esclarecimentos
adequados, a criatividade ou o engenho só podendo provir do “honesto estudo” e
não do blablabla oco, se não impertinente. Fui maltratada no estágio, a nota de
curso reduzida em força, mas não desisti, por ter uma vasta família a meu
cargo, e necessitava a todo o custo de reiniciar uma carreira sob a garantia de
um Estado que, sem esse estágio, me reduziria a uma condição de maior precariedade
económica.
Em apoio dos sábios argumentos de NUNO CRATO, sobre a vacuidade dessas
propostas pedagógicas, que já vão parecendo cediças, afinal, ou definitivamente
destruidoras do bom senso, se não cada vez mais impulsionadoras do “saber safar-se
por conta do padrinho” – eu diria antipedagógicas e aviltantes da racionalidade
humana - não quero deixar de exemplificar uma dessas aulas vazias, onde se
destacava a “modéstia” (nada humilde) da professora, quase sempre silenciosa e
apagada – apesar da sua localização fronteira, de pé, no estrado que ainda não
fora retirado, e que mais a elevava, impondo-se no seu prestígio de orientadora
- tal como a Lenkazinha do programa do Fernando Mendes, discreta mas
extremamente sedutora, mesmo sem estrado, e consciente do seu glamour.
Trata-se de um texto de “Anuário – Memórias Soltas” (1999):
«Leitura Silenciosa»
Aula de Francês do 2º Complementar diurno – ex-sétimo ano do liceu,
actual décimo primeiro do Ensino Secundário – lecionada pela orientadora de
estágio, para esclarecimento dos seis professores em estágio, sentados ao
fundo, a tomar notas. Ano de 1976. A orientadora veio de saco cheio – quatro ou
cinco dicionários unilingues de francês, que distribuiu por quatro ou cinco
alunos na turma.
Trata-se de uma aula de leitura de obra integral - “Lettres de mon
Moulin” – do Alphonse Daudet, que também já estudara nos meus tempos de liceu, pois
as conquistas do 25 de Abril ainda não atingiram os sectores do ensino quanto
às leituras integrais e de resto esta obra é muito bela e não merece ser posta
de lado.
Aula de leitura silenciosa, interrompida de quando em quando por um
braço no ar e uma tímida interpelação de aluno mais consciencioso, emperrado
num qualquer vocábulo menos conhecido.
Logo pára a leitura silenciosa e se erguem as cabeças, para,
imediatamente, um dos alunos manipuladores do dicionário rebuscar, neste, o
sentido do termo desconhecido, transcrito logo a seguir no quadro pela
professora, inocentemente esquecida dos alunos que já teriam ultrapassado o
vocábulo e dos que o não teriam ainda atingido.
De novo as cabeças baixam sobre a obra em estudo, de novo todas sobem na
sequência de mais um braço erguido numa interrupção de ignorância vocabular,
desta feita colmatada por outro manejador do dicionário, e seguida da
transcrição no quadro pela professora, indiferente aos ritmos de leitura.
Os dicionários vão passando de mão em mão, para que todos – ou a maioria
– tenham a oportunidade de aprender a usá-lo, e de se enriquecerem assim na
prática dos manejos.
Os seis estagiários acompanham interessados o movimento oscilatório das
cabeças - ora de descida, após a escrita no quadro, ora de subida, após a
erguida de um braço - analisam o grau de concentração pelo silêncio de
obediência e respeito às estratégias propostas – leitura silenciosa,
aprendizagem de consulta do dicionário.
Trata-se do conto da cabrinha Blanquette que não sobreviveu à sua
travessura de fuga estouvada do bom trato caseiro para a liberdade da montanha,
apesar da luta valente com o lobo mau.
A contingência da falta de elasticidade do tempo não permite que a
leitura do conto chegue ao fim – aliás não se chegou a testar se algum aluno
avesso a leituras, quer nacionais quer estrangeiras, não tenha passado do seu
princípio.
Com efeito, as próprias linhas gerais do conto não puderam ser
decifradas nesta aula devido, à mesma contingência temporal, mas com boa
vontade, há sempre uma aula seguinte. Nesta, o que contou principalmente foram
os movimentos oscilatórios das cabeças para baixo e para cima na sequência das
dinâmicas já apontadas, e a consulta dos dicionários que, como alunos de
responsabilidade etária, calculava que já dominariam, mas não tenho bem a
certeza e a orientadora de estágio também não a devia ter, pois veio de saco
cheio de dicionários para os ensinar. Porém isso não foi necessário.
Senti muita frustração, pois achava que fora uma aula perdida, mas a
orientadora ficou satisfeita com ela, como referiu em reunião posterior,
pontuando a questão da humildade docente, a não saliência do professor, o
espírito de fraternidade e companheirismo apenas orientador nas dúvidas, com a
colaboração – se possível – dos alunos, como, neste caso, dos manipuladores dos
dicionários.
Senti muita surpresa, pois achava que os alunos não podiam ter dúvidas daquilo
que, à partida, desconheciam, e que, por conseguinte, se deveria transmitir
antes de se poder colher, como nas searas. Mas essa posição só comprova a minha
ignorância de estratégias e a minha ausência de humildade e de companheirismo,
para mais com vocação preferencial para o fenómeno agrícola, implícita na minha
anterior figura de retórica.
O professor posto ao nível dos seus alunos, eis a grande conquista na
educação no pós-25 de abril. Para isso se retiraram das salas de aulas a
maioria dos estrados, para que aquele não tenha intenções desniveladoras,
estratégia que, de resto, já o rei Artur aplicara mas que nem mesmo Cristo,
temos de reconhecer, conhecia ainda nas suas ceias de pão e
vinho.
A humildade, a modéstia, sempre foram virtudes muito bonitas, até
decretadas na doutrina cristã, e fora das salas de aula não há muita ocasião de
as comprovarmos, mesmo na plena democracia em que vivemos. Por isso devem aí
ser difundidas, quanto mais não seja para prestígio da classe docente que
ascenderá, deste modo, à categoria beatificante de mártir dos novos tempos,
pois os alunos não se eximirão a aproveitar bem o seu estatuto de igualdade
social com o seu professor, para o tratarem em camaradagem livre de
preconceito.
Nem sempre isso sucede, porém. Creio que depende um pouco do magnetismo
do professor.
Nesta aula, pelo menos, não sucedeu, que a professora não admite
leviandades e com a leitura silenciosa não deu mesmo oportunidade a quaisquer
veleidades de rebeldia ou mesmo às tosses da época hibernal, manietados como
ficaram os alunos ao livro que tinham na carteira e aos movimentos oscilatórios
das suas cabeças, sob o olhar coruscantemente sorridente da professora, imóvel
aquando das cabeças para baixo, mais flexível, conquanto discretamente, aquando
das cabeças para cima, para designação do consultor lexical e para transcrição
pessoal no quadro – talvez para não pôr em causa o desconhecimento possível da
escrita de outros alunos colaboradores, o que provocaria uma inoportuna
perturbação na disciplina e na demonstração.
Contudo, acho que assim daria uma prova de mais cabal humildade e isso
não aconteceu porque a sua figura, elegantemente enigmática e sempre de pé e
fronteira, é que se destacou durante a aula, quer enquanto designava os
leitores dos dicionários, sempre sentados, quer enquanto escrevia no quadro os
significados que aqueles afanosamente tentavam ali pescar.
Continuo perturbada, passados todos estes vinte anos, sem saber como
proceder nestes casos.
Pode-se ‘aprender a aprender’ sem aprender
coisa alguma?
NUNO CRATO OBSERVADOR, 27/2/2018
A partir de experiências clássicas desenvolvidas nas últimas décadas, a
psicologia cognitiva concluiu que as capacidades não podem ser adquiridas
independentemente das matérias concretas estudadas.
Por ocasião do seu doutoramento honoris causa na Universidade
de Lisboa, António Guterres fez um discurso que teve grande eco na imprensa. Mas entre aquilo que foi destacado nas
notícias e nos títulos apareceram afirmações sobre educação que julgo deverem
ser lidas com algum sentido crítico. Disse, por exemplo, que “o que
fundamentalmente hoje interessa nas universidades e no sistema educativo não é
tanto o tipo de coisas que aí se aprende, mas a possibilidade de aí se aprender
a aprender”.
Será que isto se pode dizer, e de forma tão geral? Na realidade, o “tipo
de coisas que se aprendem” tem a sua importância. Muita importância!
Gostaria algum de nós de ser tratado por um médico que, na universidade,
tivesse aprendido Literatura Germânica, não tivesse prestado grande atenção à
Anatomia nem à Histologia, mas que tivesse sido fantástico a “aprender a
aprender”? Gostaria algum de nós de andar num avião mantido por uma equipa de
mecânicos que, na sua escola de formação técnica, tivessem estudado Anatomia
Patológica, nada sobre motores nem sobre aeronáutica, mas que fossem extraordinários
a “aprender a aprender”?
Exagero? Pensemos na mensagem que, no limite, se está a transmitir aos
estudantes: aprendam a aprender, não interessa tanto o que aprendem. Não parece
uma mensagem feliz.
Mais à frente, Guterres afirmou que tem netas com menos de dez anos e
disse que “o seu êxito dependerá essencialmente das oportunidades de educação
que vão ter, da capacidade que lhes derem para serem capazes de se adaptar à
mudança, de desenvolver novas formas de intervenção na sociedade, novas atividades
profissionais.”
Julgo que todos estamos de acordo. Mas em seguida acrescentou: “seguramente,
os conteúdos concretos que vão ter na escola vão estar completamente
ultrapassados quando exercerem as suas atividades profissionais ou outras
formas de intervenção na sociedade.”
Ser-me-á permitido discordar? Façamos então um pequeno exercício mental:
pensemos no que aprendemos na escola (no meu caso há várias décadas…), ou
pensemos no que hoje se aprende: aritmética, geometria, história de Portugal,
história mundial, português, inglês, geografia, ciências, etc., etc. De tudo
isto, qual é a fração que será ultrapassada? 99%? 50%? 10%? Eu arriscaria dizer
que, mesmo que 50% estivessem ultrapassados, valeria a pena ter estudado para
saber os outros 50%. Mas arrisco mais: direi que talvez apenas 1% do
conhecimento que adquirimos na escola estará ultrapassado; “completamente
ultrapassado”, talvez nem metade disso.
Repito: não devemos passar nenhuma mensagem de
desprezo pelos “conteúdos concretos”.
Vou citar Larry Sanger, fundador da
Wikipedia, certamente
alguém à frente do seu tempo: “as capacidades específicas necessárias para o
mundo do trabalho eram, e em larga medida continuam a ser, aprendidas no
próprio emprego. Então vejamos, o que terá sido para mim mais útil aprender em
1985, quando tinha 17 anos: todos os processos e truques do WordPerfect
[processador de texto então em voga] e do BASIC [linguagem de programação muito
usada na altura] ou a História dos Estados Unidos? Não há que haver dúvidas: o
que aprendi sobre história mantém-se aproximadamente o mesmo, sujeito a algumas
correções; as competências de WordPerfect e de BASIC deixaram de ser
necessárias”.
A conclusão é simples: há matérias – “conteúdos concretos” – que
perduram. E quanto mais universais e mais antigas mais deverão perdurar. Ou
seja, quando eu tiver a sorte de ter netos, que espero vir a ter, vou
dizer-lhes “aprendam matemática, aprendam história, aprendam geografia,
aprendam literatura, aprendam línguas, pois esses conteúdos concretos não vão
estar ultrapassados quando exercerem as vossas atividades profissionais ou
outras formas de intervenção na sociedade”.
Mas o problema é muito mais vasto. Prometo a mim mesmo uma outra crónica
para breve. Adianto apenas dois resultados científicos sobre a aprendizagem.
Primeiro. Não existe capacidade sem conhecimento específico, ou seja, as
ditas “competências gerais” são essencialmente uma invenção. Por exemplo, para a leitura crítica de um
texto é essencial ter um vocabulário rico, conhecer o tema discutido –
política? história? ciência? arte? – e beneficiar de conhecimento de textos
semelhantes ou sobre temas semelhantes. Como diz o educador norte-americano E.
D. Hirsch, “a
capacidade de leitura, de comunicação, de leitura crítica e tudo o mais são
intrinsecamente conhecimento específico. Mais ainda: se tivermos conhecimento
do tema em causa e nos faltar apenas a proficiência técnica, teremos mesmo
assim um desempenho melhor (na análise do texto e na sua crítica) do que alguém
proficiente, mas a quem falte o conhecimento relevante.”
Segundo. A partir de uma série de experiências clássicas iniciadas nos
anos 40 do século passado e desenvolvidas nas últimas décadas, a psicologia
cognitiva concluiu que as capacidades não podem ser adquiridas
independentemente das matérias concretas estudadas. O pensamento crítico, o “aprender a aprender”,
a capacidade de análise lógica, não existem independentemente dos “conteúdos
concretos”. Como
explica o cientista cognitivo Daniel T.
Willingham, “o
pensamento crítico (tal como o pensamento científico e outro pensamento
específico) não é uma capacidade. Não há um conjunto de capacidades de
pensamento crítico que possam ser adquiridas e utilizadas independentemente da
sua aplicação.”
Conclusão: ‘aprender a aprender’ em vez de aprender, é o caminho direto
para nada aprender, nem sequer ‘aprender a aprender’.
ALGUNS COMENTÁRIOS
“PRÓ”
João Junqueira
Sou politicamente de esquerda, mas os meus parabéns ao Nuno Crato. Dizia
Einstein que só no dicionário é que o Sucesso vem antes do Trabalho.
Infelizmente agora toda a gente quer aprender brincando. Perguntem aos melhores
alunos de cada ano no Ensino Secundário e aos melhores profissionais em cada
área se aprenderam brincando ou trabalhando. Aprender brincando é uma utopia, é
como ser campeão olímpico brincando. Tontos...
Amora Bruegas
Bom artigo, com substrato..., pena que as cabeças
do facilitismo, da bandalheira escolar, não irão compreender este texto!
Espírito crítico e reflexão sem conhecimentos básicos? Espírito crítico e reflexão sobre o quê?
É como tirar sumo de um limão seco - não se tira!
João Lemos
Pelo amor da santa! Ninguém aprende matemática sem conhecer os algarismos. Ninguém aprende
anatomia sem saber os nomes dos órgãos. A capacidade de o cérebro raciocinar é
inata, mas se não puserem lá dados ele vai raciocinar sobre o quê?
Sandra Varela
Além do meu reconhecimento pelo Professor Nuno Crato, tenho também uma
admiração imensa pelo Engenheiro António Guterres, que ia dar explicações de
matemática grátis a alunos do Bairro da Quinta do Mocho, inseridos num contexto
social nem sempre propício a quem valoriza o aprender. Pois, nunca o ouvi
gabar-se disso, mas ia, duas vezes por semana, dar aulas aos alunos de 12°,
ajudá-los a prepararem-se para os exames. Nesse aspecto também daria, como não
poderia deixar de ser, importância às matérias de facto importantes. Um muito
obrigada aos dois.