quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Onde é que eu já ouvi isto?



Foi no meu estágio cá, quando vim recambiada duma das colónias. Eu dera sempre razoável conta de mim, como professora, as explicações que aí dava de línguas e literaturas portuguesa e francesa, faziam que melhor associasse as escolas literárias, em cujos autores me aventurava com cada vez mais empenhamento, que já os tempos do liceu e da faculdade possibilitavam, frequentadora assídua que era das respectivas bibliotecas.
Dediquei-me no estágio, com afinco, a entender as novas metodologias que marginalizavam bastante o professor, na insistência sobre essas baboseiras do “aprender a aprender”, objectivo primordial do ensino, ou do “todos os saberes se equivalem” que destacavam a participação do aluno em perguntas da sua “criatividade”, segundo se pretendia - as mais das vezes da sua inanidade na minha opinião reaccionária, empenhada, acima de tudo, em difundir as luzes do meu saber, parco que fosse, mas passível de colher, mais esclarecidamente, as respostas àquilo que me impunham os programas das disciplinas – de português e francês especificamente – na convicção de que os alunos melhor poderiam ser motivados para uma participação de reflexão e autenticidade com os esclarecimentos adequados, a criatividade ou o engenho só podendo provir do “honesto estudo” e não do blablabla oco, se não impertinente. Fui maltratada no estágio, a nota de curso reduzida em força, mas não desisti, por ter uma vasta família a meu cargo, e necessitava a todo o custo de reiniciar uma carreira sob a garantia de um Estado que, sem esse estágio, me reduziria a uma condição de maior precariedade económica.
Em apoio dos sábios argumentos de NUNO CRATO, sobre a vacuidade dessas propostas pedagógicas, que já vão parecendo cediças, afinal, ou definitivamente destruidoras do bom senso, se não cada vez mais impulsionadoras do “saber safar-se por conta do padrinho” – eu diria antipedagógicas e aviltantes da racionalidade humana - não quero deixar de exemplificar uma dessas aulas vazias, onde se destacava a “modéstia” (nada humilde) da professora, quase sempre silenciosa e apagada – apesar da sua localização fronteira, de pé, no estrado que ainda não fora retirado, e que mais a elevava, impondo-se no seu prestígio de orientadora - tal como a Lenkazinha do programa do Fernando Mendes, discreta mas extremamente sedutora, mesmo sem estrado, e consciente do seu glamour.
Trata-se de um texto de “Anuário – Memórias Soltas” (1999):
«Leitura Silenciosa»
Aula de Francês do 2º Complementar diurno – ex-sétimo ano do liceu, actual décimo primeiro do Ensino Secundário – lecionada pela orientadora de estágio, para esclarecimento dos seis professores em estágio, sentados ao fundo, a tomar notas. Ano de 1976. A orientadora veio de saco cheio – quatro ou cinco dicionários unilingues de francês, que distribuiu por quatro ou cinco alunos na turma.
Trata-se de uma aula de leitura de obra integral - “Lettres de mon Moulin” – do Alphonse Daudet, que também já estudara nos meus tempos de liceu, pois as conquistas do 25 de Abril ainda não atingiram os sectores do ensino quanto às leituras integrais e de resto esta obra é muito bela e não merece ser posta de lado.
Aula de leitura silenciosa, interrompida de quando em quando por um braço no ar e uma tímida interpelação de aluno mais consciencioso, emperrado num qualquer vocábulo menos conhecido.
Logo pára a leitura silenciosa e se erguem as cabeças, para, imediatamente, um dos alunos manipuladores do dicionário rebuscar, neste, o sentido do termo desconhecido, transcrito logo a seguir no quadro pela professora, inocentemente esquecida dos alunos que já teriam ultrapassado o vocábulo e dos que o não teriam ainda atingido.
De novo as cabeças baixam sobre a obra em estudo, de novo todas sobem na sequência de mais um braço erguido numa interrupção de ignorância vocabular, desta feita colmatada por outro manejador do dicionário, e seguida da transcrição no quadro pela professora, indiferente aos ritmos de leitura.
Os dicionários vão passando de mão em mão, para que todos – ou a maioria – tenham a oportunidade de aprender a usá-lo, e de se enriquecerem assim na prática dos manejos.
Os seis estagiários acompanham interessados o movimento oscilatório das cabeças - ora de descida, após a escrita no quadro, ora de subida, após a erguida de um braço - analisam o grau de concentração pelo silêncio de obediência e respeito às estratégias propostas – leitura silenciosa, aprendizagem de consulta do dicionário.
Trata-se do conto da cabrinha Blanquette que não sobreviveu à sua travessura de fuga estouvada do bom trato caseiro para a liberdade da montanha, apesar da luta valente com o lobo mau.
A contingência da falta de elasticidade do tempo não permite que a leitura do conto chegue ao fim – aliás não se chegou a testar se algum aluno avesso a leituras, quer nacionais quer estrangeiras, não tenha passado do seu princípio.
Com efeito, as próprias linhas gerais do conto não puderam ser decifradas nesta aula devido, à mesma contingência temporal, mas com boa vontade, há sempre uma aula seguinte. Nesta, o que contou principalmente foram os movimentos oscilatórios das cabeças para baixo e para cima na sequência das dinâmicas já apontadas, e a consulta dos dicionários que, como alunos de responsabilidade etária, calculava que já dominariam, mas não tenho bem a certeza e a orientadora de estágio também não a devia ter, pois veio de saco cheio de dicionários para os ensinar. Porém isso não foi necessário.
Senti muita frustração, pois achava que fora uma aula perdida, mas a orientadora ficou satisfeita com ela, como referiu em reunião posterior, pontuando a questão da humildade docente, a não saliência do professor, o espírito de fraternidade e companheirismo apenas orientador nas dúvidas, com a colaboração – se possível – dos alunos, como, neste caso, dos manipuladores dos dicionários.
Senti muita surpresa, pois achava que os alunos não podiam ter dúvidas daquilo que, à partida, desconheciam, e que, por conseguinte, se deveria transmitir antes de se poder colher, como nas searas. Mas essa posição só comprova a minha ignorância de estratégias e a minha ausência de humildade e de companheirismo, para mais com vocação preferencial para o fenómeno agrícola, implícita na minha anterior figura de retórica.
O professor posto ao nível dos seus alunos, eis a grande conquista na educação no pós-25 de abril. Para isso se retiraram das salas de aulas a maioria dos estrados, para que aquele não tenha intenções desniveladoras, estratégia que, de resto, já o rei Artur aplicara mas que nem mesmo Cristo, temos de reconhecer, conhecia ainda nas suas ceias de pão e vinho.
A humildade, a modéstia, sempre foram virtudes muito bonitas, até decretadas na doutrina cristã, e fora das salas de aula não há muita ocasião de as comprovarmos, mesmo na plena democracia em que vivemos. Por isso devem aí ser difundidas, quanto mais não seja para prestígio da classe docente que ascenderá, deste modo, à categoria beatificante de mártir dos novos tempos, pois os alunos não se eximirão a aproveitar bem o seu estatuto de igualdade social com o seu professor, para o tratarem em camaradagem livre de preconceito.
Nem sempre isso sucede, porém. Creio que depende um pouco do magnetismo do professor.
Nesta aula, pelo menos, não sucedeu, que a professora não admite leviandades e com a leitura silenciosa não deu mesmo oportunidade a quaisquer veleidades de rebeldia ou mesmo às tosses da época hibernal, manietados como ficaram os alunos ao livro que tinham na carteira e aos movimentos oscilatórios das suas cabeças, sob o olhar coruscantemente sorridente da professora, imóvel aquando das cabeças para baixo, mais flexível, conquanto discretamente, aquando das cabeças para cima, para designação do consultor lexical e para transcrição pessoal no quadro – talvez para não pôr em causa o desconhecimento possível da escrita de outros alunos colaboradores, o que provocaria uma inoportuna perturbação na disciplina e na demonstração.
Contudo, acho que assim daria uma prova de mais cabal humildade e isso não aconteceu porque a sua figura, elegantemente enigmática e sempre de pé e fronteira, é que se destacou durante a aula, quer enquanto designava os leitores dos dicionários, sempre sentados, quer enquanto escrevia no quadro os significados que aqueles afanosamente tentavam ali pescar.
Continuo perturbada, passados todos estes vinte anos, sem saber como proceder nestes casos.
Pode-se ‘aprender a aprender’ sem aprender coisa alguma?
NUNO CRATO                   OBSERVADOR, 27/2/2018
A partir de experiências clássicas desenvolvidas nas últimas décadas, a psicologia cognitiva concluiu que as capacidades não podem ser adquiridas independentemente das matérias concretas estudadas.
Por ocasião do seu doutoramento honoris causa na Universidade de Lisboa, António Guterres fez um discurso que teve grande eco na imprensa. Mas entre aquilo que foi destacado nas notícias e nos títulos apareceram afirmações sobre educação que julgo deverem ser lidas com algum sentido crítico. Disse, por exemplo, que “o que fundamentalmente hoje interessa nas universidades e no sistema educativo não é tanto o tipo de coisas que aí se aprende, mas a possibilidade de aí se aprender a aprender”.
Será que isto se pode dizer, e de forma tão geral? Na realidade, o “tipo de coisas que se aprendem” tem a sua importância. Muita importância!
Gostaria algum de nós de ser tratado por um médico que, na universidade, tivesse aprendido Literatura Germânica, não tivesse prestado grande atenção à Anatomia nem à Histologia, mas que tivesse sido fantástico a “aprender a aprender”? Gostaria algum de nós de andar num avião mantido por uma equipa de mecânicos que, na sua escola de formação técnica, tivessem estudado Anatomia Patológica, nada sobre motores nem sobre aeronáutica, mas que fossem extraordinários a “aprender a aprender”?
Exagero? Pensemos na mensagem que, no limite, se está a transmitir aos estudantes: aprendam a aprender, não interessa tanto o que aprendem. Não parece uma mensagem feliz.
Mais à frente, Guterres afirmou que tem netas com menos de dez anos e disse que “o seu êxito dependerá essencialmente das oportunidades de educação que vão ter, da capacidade que lhes derem para serem capazes de se adaptar à mudança, de desenvolver novas formas de intervenção na sociedade, novas atividades profissionais.”
Julgo que todos estamos de acordo. Mas em seguida acrescentou: “seguramente, os conteúdos concretos que vão ter na escola vão estar completamente ultrapassados quando exercerem as suas atividades profissionais ou outras formas de intervenção na sociedade.”
Ser-me-á permitido discordar? Façamos então um pequeno exercício mental: pensemos no que aprendemos na escola (no meu caso há várias décadas…), ou pensemos no que hoje se aprende: aritmética, geometria, história de Portugal, história mundial, português, inglês, geografia, ciências, etc., etc. De tudo isto, qual é a fração que será ultrapassada? 99%? 50%? 10%? Eu arriscaria dizer que, mesmo que 50% estivessem ultrapassados, valeria a pena ter estudado para saber os outros 50%. Mas arrisco mais: direi que talvez apenas 1% do conhecimento que adquirimos na escola estará ultrapassado; “completamente ultrapassado”, talvez nem metade disso.
Repito: não devemos passar nenhuma mensagem de desprezo pelos “conteúdos concretos”.
Vou citar Larry Sanger, fundador da Wikipedia, certamente alguém à frente do seu tempo: “as capacidades específicas necessárias para o mundo do trabalho eram, e em larga medida continuam a ser, aprendidas no próprio emprego. Então vejamos, o que terá sido para mim mais útil aprender em 1985, quando tinha 17 anos: todos os processos e truques do WordPerfect [processador de texto então em voga] e do BASIC [linguagem de programação muito usada na altura] ou a História dos Estados Unidos? Não há que haver dúvidas: o que aprendi sobre história mantém-se aproximadamente o mesmo, sujeito a algumas correções; as competências de WordPerfect e de BASIC deixaram de ser necessárias”.
A conclusão é simples: há matérias – “conteúdos concretos” – que perduram. E quanto mais universais e mais antigas mais deverão perdurar. Ou seja, quando eu tiver a sorte de ter netos, que espero vir a ter, vou dizer-lhes “aprendam matemática, aprendam história, aprendam geografia, aprendam literatura, aprendam línguas, pois esses conteúdos concretos não vão estar ultrapassados quando exercerem as vossas atividades profissionais ou outras formas de intervenção na sociedade”.
Mas o problema é muito mais vasto. Prometo a mim mesmo uma outra crónica para breve. Adianto apenas dois resultados científicos sobre a aprendizagem.
Primeiro. Não existe capacidade sem conhecimento específico, ou seja, as ditas “competências gerais” são essencialmente uma invenção. Por exemplo, para a leitura crítica de um texto é essencial ter um vocabulário rico, conhecer o tema discutido – política? história? ciência? arte? – e beneficiar de conhecimento de textos semelhantes ou sobre temas semelhantes. Como diz o educador norte-americano E. D. Hirsch, “a capacidade de leitura, de comunicação, de leitura crítica e tudo o mais são intrinsecamente conhecimento específico. Mais ainda: se tivermos conhecimento do tema em causa e nos faltar apenas a proficiência técnica, teremos mesmo assim um desempenho melhor (na análise do texto e na sua crítica) do que alguém proficiente, mas a quem falte o conhecimento relevante.”
Segundo. A partir de uma série de experiências clássicas iniciadas nos anos 40 do século passado e desenvolvidas nas últimas décadas, a psicologia cognitiva concluiu que as capacidades não podem ser adquiridas independentemente das matérias concretas estudadas. O pensamento crítico, o “aprender a aprender”, a capacidade de análise lógica, não existem independentemente dos “conteúdos concretos”. Como explica o cientista cognitivo Daniel T. Willingham, “o pensamento crítico (tal como o pensamento científico e outro pensamento específico) não é uma capacidade. Não há um conjunto de capacidades de pensamento crítico que possam ser adquiridas e utilizadas independentemente da sua aplicação.”
Conclusão: ‘aprender a aprender’ em vez de aprender, é o caminho direto para nada aprender, nem sequer ‘aprender a aprender’.

ALGUNS COMENTÁRIOS “PRÓ”
João Junqueira
Sou politicamente de esquerda, mas os meus parabéns ao Nuno Crato. Dizia Einstein que só no dicionário é que o Sucesso vem antes do Trabalho. Infelizmente agora toda a gente quer aprender brincando. Perguntem aos melhores alunos de cada ano no Ensino Secundário e aos melhores profissionais em cada área se aprenderam brincando ou trabalhando. Aprender brincando é uma utopia, é como ser campeão olímpico brincando. Tontos...
Amora Bruegas
Bom artigo, com substrato..., pena que as cabeças do facilitismo, da bandalheira escolar, não irão compreender este texto!
maria costa      à josé maria (que condena NC)
Espírito crítico e reflexão sem conhecimentos básicos? Espírito crítico e reflexão sobre o quê?
É como tirar sumo de um limão seco - não se tira!
João Lemos
Pelo amor da santa! Ninguém aprende matemática sem conhecer os algarismos. Ninguém aprende anatomia sem saber os nomes dos órgãos. A capacidade de o cérebro raciocinar é inata, mas se não puserem lá dados ele vai raciocinar sobre o quê?
Sandra Varela
Além do meu reconhecimento pelo Professor Nuno Crato, tenho também uma admiração imensa pelo Engenheiro António Guterres, que ia dar explicações de matemática grátis a alunos do Bairro da Quinta do Mocho, inseridos num contexto social nem sempre propício a quem valoriza o aprender. Pois, nunca o ouvi gabar-se disso, mas ia, duas vezes por semana, dar aulas aos alunos de 12°, ajudá-los a prepararem-se para os exames. Nesse aspecto também daria, como não poderia deixar de ser, importância às matérias de facto importantes. Um muito obrigada aos dois.


terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Um Bartoom de excelência sobre o AO



O do Público, de 21/2/2018:
1ª vinheta: O barman, por trás do balcão, sujeito sabedor, boca em O no queixo descido de quem informa, três pêlos em tufo partindo do olho esquerdo, coroando a cabeça invisível, o olho enorme, a pupila assestada sobre o freguês de boné, cujo olho direito também transparece, camisa e calça de riscado, sentado no primeiro dos três bancos assinalados, o dorso arqueado dos desgastes da vida, os braços cruzados sobre o balcão, a caneca de cerveja ao lado, a transbordar, em frente-a-frente atento, a boca reduzida a um ponto. A informação do barman:
HOJE COMEMORA-SE O DIA DA LÍNGUA MATERNA
2ª vinheta: o mesmo quadro, 2ª informação:
 AMANHÃ ASSINALA-SE O DIA DA VÍTIMA DO CRIME
3ª vinheta: Alteração ligeira, no quadro: a boca do barman fechada no ponto mudo, a do freguês aberta no seu pequeno O de estranheza interrogativa. A questão do freguês:
DIAS CONSECUTIVOS. É CURIOSO. HÁ ALGUMA LIGAÇÃO ENTRE OS DOIS?
4ª vinheta: Retoma o O da boca do barman que responde em força, surgem três dedos da sua mão direita, o indicador espetado, sobre os dois seguintes fechados, em aviso decisivo:
ASSIM DE REPENTE, VEIO-ME À CABEÇA O ACORDO ORTOGRÁFICO.
Dir-se-ia que o crime compensa, em face da agudeza drástica da caricatura, embora o fito seja de o impedir. 
Mas a inteligência dos que comandam não é afectada por tão pouco.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Pedro Afonso, bom escalpelizador social


Percorrendo a grossa lista de crónicas deste “médico psiquiatra”, tenho pena de não ter acompanhado há mais tempo a sua leitura, pela pertinência com que aborda temas sociais tão relevantes nestes tempos de uma evolução cada vez mais a descambar para a perda da sanidade mental e moral, com os meios televisivos responsáveis pela provocação desordeira e viciosa, como essa dos «reality shows” que ele refere e mais ainda a do acesso à pornografia de que são veículo.
É certo que, numa sociedade de fartura e imoderação como é a nossa – fartura alimentar, exposta nas prateleiras dos múltiplos supermercados, fartura de instrumentos do nosso conforto e vaidades, fartura de “casus belli” e de provocações “tribais” que a mesma televisão difunde – quer se trate de disputas clubísticas, políticas, ou outras de transgressões várias – e que os meios informáticos multiplicam poderosamente, numa abundância cada vez mais alienante, apesar de tanta riqueza informativa que paralelamente veicula, fartura de observação, em suma, num mundo cada vez mais encurtado na sua aproximação visual, que a invenção tecnológica progressivamente possibilita – e a irracionalidade comportamental, a que a ”fartura” liberalizadora igualmente conduz, sem a necessária disciplina mental e moral – tais características de excessos fatalmente desvinculam os humanos da contenção e do bom senso.
Provam-no os textos seguintes de Pedro Afonso, médico psiquiatra que brilhantemente analisa os fenómenos que os respectivos títulos sintetizam: «TELEVISÃO - Reality shows: lamaçais televisivos» e «A adição à pornografia nos adolescentes», e cujas frases cimeiras, que cito, dão uma vísão rápida e sumária da riqueza de todo o seu conteúdo.

«As televisões transformaram-se em predadores de audiências. Já há muito tempo que os limites do respeito pela pessoa humana foram ultrapassados por motivações económicas.»

«A educação sexual tem sido baseada numa visão libertária, à moda dos anos 60, e em procurar diminuir os riscos associados às relações sexuais. Mas a sexualidade humana vai muito mais além disto.»

Reality shows: lamaçais televisivos
PEDRO AFONSO
OBSERVADOR, 3/2/2018

As televisões transformaram-se em predadores de audiências. Já há muito tempo que os limites do respeito pela pessoa humana foram ultrapassados por motivações económicas.
Os reality shows foram introduzidos pela TVI no nosso país em 2000, através da primeira edição do Big Brother. Apesar das audiências terem caído com o tempo, a verdade é que à semelhança de outros países, os canais portugueses continuam a apostar neste tipo de programas, embora com formatos um pouco diferentes. Mais recentemente surgiu uma enorme polémica em torno do programa SuperNanny apresentado pela SIC. Mas afinal quais são os problemas evidenciados por este tipo de programas?
O primeiro problema está associado ao culto do voyeurismo. A curiosidade de saber a intimidade da vida dos outros é uma característica tipicamente humana, embora não seja propriamente uma virtude. A fórmula televisiva inspirada na bisbilhotice da vida privada continua a ser utilizada abundantemente com algum sucesso, e nem os programas de entretenimento escapam a esta tendência. Nos vários canais televisivos somos confrontados com a exposição pública da intimidade de pessoas — frequentemente humildes e ingénuas — que sorriem para a câmara, atraídas pela fama efémera, alimentando deste modo uma produção permanente de lixo televisivo. Este “nudismo biográfico” é servido a granel, como se fosse uma ração diária para os espectadores, numa lógica de mercado: o espectador tem uma necessidade voyeurista e as televisões satisfazem esse hedonismo vicioso, mantendo as audiências.
Dificilmente, através desta fórmula televisiva, ficarão gravadas na nossa memória mensagens importantes. As vidas alheias exibidas através de uma câmara, sem um tratamento jornalístico sério e ponderado, não passam de tédio televisivo. Também nunca serviu como terapia em psiquiatria o consolo obtido pelo conhecimento pormenorizado da desgraça e miséria alheia. O mesmo se poderá dizer relativamente à contemplação da futilidade de algumas dessas existências humanas que são injustificadamente idolatradas neste tipo de programas.
O segundo problema está relacionado com a desinformação. Os meios de comunicação social ­— e a televisão em particular — podem ser utilizados para manipular as pessoas, tratando-as como se fossem mentecaptos. Por exemplo, o SuperNanny falseia a realidade, através de uma visão enviesada e demasiado simplificada. O programa televisivo apresenta-nos uma perspetiva redutora das alterações dos comportamentos das crianças, como se não houvesse a necessidade de um diagnóstico clínico, familiar e social. Estes casos necessitam habitualmente da intervenção de uma equipa multidisciplinar experiente, constituída por pediatras, pedopsiquiatras, psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, professores, etc. É preciso que as pessoas saibam que, perante situações desta natureza, devem recorrer a uma ajuda profissional. O Estado tem várias respostas que podem e devem ser utilizadas.
Convém referir que alguns destes programas têm como participantes profissionais de saúde, que são recrutados numa tentativa de procurar dar uma maior credibilidade a este tipo espetáculos televisivos. Os profissionais de saúde devem resistir à tentação da popularidade fácil e recusar participar em programas televisivos de pacotilha, sempre que estes violem princípios éticos fundamentais. As ordens profissionais (dos médicos e psicólogos) têm um papel pedagógico importante, devem esclarecer a sociedade e, se for necessário, intervir disciplinarmente.
Finalmente, chegamos ao problema da defesa da dignidade humana, que é válida para as crianças e também para os adultos. As televisões transformaram-se em predadores de audiências. Já há muito tempo que os limites do respeito pela pessoa humana foram ultrapassados por motivações económicas. Mas, não há maior crueldade do que a de quem se aproveita das pessoas que sofrem para delas obter lucro ou proveito. Por isso, se não forem impostos limites éticos, estes programas de televisão, que expõem casos concretos de adultos e crianças, num espetáculo circense deplorável, irão espalhar-se como se fosse uma gangrena; como se fossem lamaçais de degradação humana expostos a céu aberto.

A adição à pornografia nos adolescentes
PEDRO AFONSO
OBSERVADOR, 25/2/2018
A educação sexual tem sido baseada numa visão libertária, à moda dos anos 60, e em procurar diminuir os riscos associados às relações sexuais. Mas a sexualidade humana vai muito mais além disto.
Recentemente uma professora referiu-me que tinha sido vítima de assédio sexual por parte de um aluno.  Um adolescente, com 14 anos de idade, abordou-a e pediu-lhe para ter sexo. Perante a indignação e a recusa perentória da professora, o rapaz insistiu: «Então, nesse caso, tenha pelo menos dois minutos de sexo comigo».  Não se tratava obviamente da negociação da duração do ato sexual, mas da desadequação do pedido, e da forma estranhamente educada como este foi realizado. Investigado o caso, veio a saber-se que o adolescente consumia pornografia de forma compulsiva, passando largas horas diariamente a ver conteúdos pornográficos. Ao mesmo tempo, o rendimento escolar tinha caído significativamente.
Através da internet e das novas tecnologias, as crianças e os adolescentes têm um acesso muito facilitado e precoce à pornografia. Com a generalização da internet nos dispositivos móveis, a supervisão parental torna-se muito difícil, senão quase impossível.  Atualmente, a primeira exposição à pornografia ocorre em idades cada vez mais jovens e de forma frequentemente involuntária. Este fenómeno é preocupante, dado que uma exposição precoce a este tipo de imagens pode ser traumática, conduz a uma visão distorcida da sexualidade humana, e aumenta o risco para a adição à pornografia em indivíduos suscetíveis.
A realidade mostra-nos que a adição à pornografia existe, atingindo adolescentes, jovens e adultos. Este é um assunto tabu devido ao preconceito e à questão moral associada. Mesmo na psiquiatria, esta é uma matéria raramente debatida e pouco estudada. Porém, independentemente dos aspetos morais, interessa-nos discutir a dimensão relacionada com a saúde mental. Curiosamente, em 2013, a Associação Americana de Psiquiatria reconheceu como provável doença a perturbação de jogos de internet, mas não incluiu a adição à pornografia na internet, apesar destas perturbações terem sintomas e mecanismos fisiopatológicos semelhantes.
Por sua vez, contrastando com esta omissão, a Sociedade Americana de Medicina de Adição, veio clarificar o fenómeno da adição. Na sua definição, a adição é considerada uma doença do cérebro, com base neurobiológica, que afeta os sistemas da recompensa, motivação, memória e circuitos relacionados. Esta sociedade acrescenta ainda que a adição pode estar associada à comida, sexo, álcool e outras drogas.
Estranhamente poucos se interrogam por que razão se promove apenas o tratamento especializado para a adição em jogos de internet e não se incentiva também o tratamento para a adição à pornografia. Não serão ambas adições comportamentais? Isto acontece provavelmente por vergonha e estigma social. Além disso, prevalece uma visão sectária da sexualidade humana, na qual tudo é possível, não existindo lugar para o autocontrolo e domínio dos impulsos sexuais.
Nos últimos tempos, a educação sexual tem sido baseada numa visão libertária — como se ainda estivéssemos nos anos 60 — e numa perspetiva redutora que procura apenas a diminuição de riscos associados às relações sexuais. Mas a sexualidade humana vai muito mais além disto. Importa educar os adolescentes e os jovens para terem responsabilidade, respeito ao outro, e para uma sexualidade madura ligada ao amor.  Ainda hoje me surpreende que tenha sido aprovada no nosso país uma Lei sobre educação sexual na qual não consta uma única vez a palavra “amor”.  Desvalorizar este aspeto é promover uma sexualidade superficial, promíscua e sem pensamento.

Com base em testemunhos pessoais, tem-se observado cada vez mais casos de adição à pornografia nos adolescentes e jovens. Esta adição provoca uma visão perturbada da sexualidade humana, uma redução no rendimento escolar, dificuldades no relacionamento interpessoal, um aumento do risco de comportamentos sexuais agressivos e uma incapacidade para se alcançar uma vivência da sexualidade plena e gratificante. É tempo para se discutir e estudar este assunto, já que não se reduz ao campo da educação, trata-se também de uma matéria de saúde pública que não pode ser ignorada.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Factos e Fotos da nossa fantástica finura


A questão do Iva dos partidos políticos – (além da bela foto das gruas Poderosa e Vigorosa, da sensibilidade artística de António Barreto) - eis o tema da sua crónica de hoje, aconselhando honradamente o pagamento.
 A figura destacada por Paulo Baldaia - Francisco Louçã – substituído o espumar feroz dos seus discursos de líder, pela habilidade de construtor da sombra, mas segura, aos comandos dos convénios da actual governança, secretamente, embora, mas sempre fervilhante e borbulhante afinal, acompanhando a “espuma dos dias”.
É claro que, com breves anuências, a maioria dos comentadores do último, repoltreados no seu novo gozo democraticamente permitido, de raivosos defensores da causa “espumante”, zurzem no pobre Baldaia, em comentários arreganhados de ódio.
Transcrevo apenas o comentário de um “apoiante”, mais esclarecedor da trama urdida por António Costa:

Um negócio lucrativo
ANTÓNIO BARRETO
DN,25/2/18
Volta a questão do IVA dos partidos políticos. Regressa o tema do seu financiamento. Deve ser público ou privado? Com ou sem fiscalização? Este problema criou dificuldades dentro dos partidos e entre a Assembleia e o Presidente da República. A lei vai ao plenário do Parlamento e depois aterra novamente em Belém. Não se sabe se com diferenças relativamente à versão original. Nem se sabe qual será a reacção do Presidente.
A questão tem sido pouco estudada e deficientemente debatida. Na verdade, para alguns, discutir o assunto é pôr em causa a democracia. Isto é: encarar todas as hipóteses, incluindo a de não isentar, significa combater a existência dos partidos, sem os quais não há democracia.
Do outro lado, os preconceitos também são de regra. Os partidos são entidades privadas, geralmente agentes de favoritismo, era só o que faltava o Estado dar-lhes subsídios. Se querem fazer política, que arranjem os seus recursos, o Estado não tem nada que ver com isso.
Não é que no meio esteja a virtude, nem sempre está. Mas estas duas hipóteses formam uma alternativa fatal, um dilema de peste ou lepra.
O financiamento público compreende-se, desde que feito com regras e moralidade. Na verdade, tratando-se de associações privadas, só se admite que uma pequena parte da sua actividade seja financiada pelos contribuintes. Para lá de uns poucos por cento, que sirvam para custear o desempenho de funções institucionais parlamentares, não se vê razão para que o financiamento público seja uma parte essencial das receitas de um partido. Aliás, quando se diz que todas as receitas devem ser públicas, como alguns pretendem, está evidentemente a enganar-se toda a gente: os partidos continuarão a encontrar fontes escondidas, em espécie e em género, o que é pior a emenda do que o soneto. A regra deveria ser a da fiscalização apertada e do castigo severo, não a da exclusividade, logo de seguida não respeitada. A lei proíbe, mas a vida faz, as autoridades deixam correr e a população não sabe ou não se importa!
De qualquer modo, não é legítimo obrigar os cidadãos a pagar as actividades de todos os partidos, concordem ou não com as suas ideias. Um cidadão deve pagar o partido das suas simpatias ao qual dá o voto, mas não aqueles que ele quer afastar do poder. Favorecer ou combater um partido faz-se com voto, dinheiro e militância. Como se sabe, a maior parte dos sócios e militantes quase não pagam quotas ou desembolsam quotas ridiculamente baixas (um ou dois euros por mês...) Isso só é possível porque o contribuinte paga tudo! Não está certo.
Quanto aos impostos, tudo parece mais simples. O IVA, o IMI, o IRC, a Segurança Social, as taxas municipais e do audiovisual e outras de que os partidos se querem libertar devem simplesmente ser pagos. Não se sabe porquê, mas parece que os partidos têm uma existência especial que lhes permitiria ficar isentos de impostos!
A questão é de facto simples. E a democracia não está em causa. Nem a igualdade de direitos. Estão em causa privilégios e direitos de casta mais ou menos inaceitáveis em democracia moderna. Não se conhecem sérios argumentos favoráveis à isenção de taxas e impostos de que beneficiariam os partidos políticos, no exercício das suas actividades, como sejam as campanhas eleitorais, a propaganda e a organização de festas e comícios. Mas há uma pressão de preconceito para que se aceite o princípio da excepcionalidade dos partidos políticos.
Ora, devem pagar como toda a gente. A política é uma actividade altamente lucrativa. Tanto que, se não fosse, ninguém se interessaria por essa profissão. É mais lucrativa do que muitas empresas. Dá emprego ao próprio e aos amigos, familiares e correligionários. Dá sustento aos fiéis e às clientelas. Dá rendimento, nome e influência! Dá poder e reputação. Dá poleiro e fama! Os partidos devem pagar impostos como toda a gente e como as empresas. E o Estado deve financiar pouco, só o que é institucional, não o que é partidário. Mas deve sobretudo fiscalizar.
As minhas fotografias - As gruas abraçadas
As gruas Poderosa e Vigorosa residem nas docas do Poço do Bispo, em Lisboa. Têm mais de trinta anos. Funcionam perfeitamente. Foram construídas em Portugal, pela Mague, empresa que desapareceu na voragem da revolução, do socialismo e do capitalismo. As gruas são especializadas em cargas a granel. Vão de batelão ao largo, carregam e descarregam mercadorias. Têm uma mecânica antiga e interessante. São bonitas e arrasam os guindastes modernos e os pórticos para contentores. Os estivadores, homens sensíveis, deixaram-se há muito seduzir e deram-lhe aqueles maravilhosos nomes, que pintaram no eixo principal. Depois de terminadas as suas tarefas, no Mar da Palha, regressam ao seu poiso, encostadas ao cais, cruzadas uma com a outra. Ao fim de algum tempo, as duas gruas transformam-se em imagem familiar. A sua posição tem algo de afável. Quem sabe se acolhedor, termo aqui inesperado. Há quem diga que, naquela posição, as duas gruas fazem lembrar, estilizados, os corvos de Lisboa! Está tudo certo!

Louçã, o Chairman de Portugal
D.N., 24 DE FEVEREIRO DE 2018
PAULO BALDAIA
A ascensão de Francisco Louçã, proeminente comentador político, ex-líder partidário, a um alto lugar do poder caseiro já merece um ensaio jornalístico. A seu tempo será feito mas, por agora, vale uma análise rápida sobre o que conseguiu o político que abdicou do poder de liderar uma minoria para ter poder sobre a grande maioria de esquerda.
Se o poder executivo está entregue a António Costa, tal só é possível porque em determinado momento da nossa vida coletiva Louçã o ajudou a conquistar. A geringonça teve o ex-líder do Bloco como intermediário. Sem que o PCP percebesse muito bem como tudo estava a ser construído, à nascença Louçã terá determinado que, neste novo poder, se Costa seria o CEO ele teria de ser o chairman.
O grande comentador, sem o mínimo de espaço para a isenção, vai decretando que o PSD já se dá por derrotado e que em Rui Rio há uma "pastelice ideológica". Não é como dirigente partidário que faz comentário mas é o Bloco, em primeiro lugar, e a geringonça, por acréscimo, que procura defender. Está na SIC e na TSF e estará no Expresso. A política feita através de órgãos de comunicação social com grande capacidade de influência. Muito mais poder e muito menos escrutínio numa atividade política em que tem muito mais poder do que alguma vez teve.
O Chairman de Portugal é também professor catedrático no ISEG, conselheiro de Estado de Marcelo Rebelo de Sousa e membro do Conselho Consultivo do Banco de Portugal. O poder de Louçã é a maior garantia que o Bloco de Esquerda pode ter para se manter na crista da onda. Mariana Mortágua, Jorge Costa, Catarina Martins, Pedro Filipe Soares e muitas outras figuras do BE representam a capacidade do partido em se renovar, mas é a Louçã que devem a capacidade de gerir parte do poder que entregaram a António Costa. Esta é a grande mais-valia que o BE tem sobre o PCP. Os bloquistas interessaram-se genuinamente pelo exercício do poder e, pela calada, ganharam o lugar de presidente do Conselho de Administração de Portugal.

Comentário a este texto:
Eduardo Gomes
Neste neo-prec que existe em Portugal nos últimos dois anos, é verdade que Francisco Louçã tem um lugar de realce... e que em nada corresponde à importância do Bloco de Esquerda! Tudo graças a António Costa (o poder, o poder!) e aos media (o fascínio, o fascínio!). O que é verdadeiramente estranho é que, no séc. XXI, e já em 2018... Francisco Louçã tenha tanto realce falando de ideias e políticas requentadas que já demonstraram a sua inviabilidade por todo o séc. XX...


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sábado, 24 de fevereiro de 2018

Faz-se o que se pode


Também já tinha visto o programa referido por Alberto Gonçalves na crónica da sua indignação desta semana – “Um programa 100% reles” – e que logo abandonei, tal como fizera a um outro que apresentava Miguel Esteves Cardoso, sentado num cadeirão, a conversar com um jovem também sentado, debitando, ambos, puerilidades de estarrecer, o do cadeirão a chamar inteligente ao jovem, por uma qualquer futilidade pronunciada em conversa inconsequente e soporífera.
Tem razão, Alberto Gonçalves, na sua iracúndia 100% “inteligente” e orientadora, embora ineficaz. Porque há sempre quem aprecie, há sempre os patriotas e os brincalhões, até os dos nossos carnavais, a imitar os outros carnavais mais a sério de outros países mais criativos ou soalheiros.
Mas não devemos generalizar. Afinal a RTP tem programas que agradam, o do Herman, os DDT, os das descobertas de vozes e génios…
E poderemos sempre fazer zapping. A menos que a nossa intenção seja mesmo a de satirizar, talvez para divertir, talvez para educar… O ponto está em que quiséssemos aprender.

Um programa 100% reles
OBSERVADOR, 24/2/18
Além de um espectáculo pelintra, e veículo promocional de um Estado muito desonesto e pouco democrático, o “100% Português” da RTP é um manifesto reaccionário, com cheirinho à superioridade da “raça”.
O presidente do Sporting, que parece um indivíduo ponderado, instou os fiéis a: a) não lerem jornais desportivos e o “Correio da Manhã”; b) não consumirem televisão nacional; c) não deglutirem rissóis de marisco. A alínea c) é brincadeira (o dr. Costa é que proíbe essas calamidades). Mas a) e b) são aparentemente exigências sérias e, se me permitem, nada difíceis de cumprir. Mesmo não sendo “sportinguista”, nunca comprei um jornal desportivo e só comprei o “Correio da Manhã” meia dúzia de vezes e por discutível vaidade, quando há demasiados anos ali assinei umas crónicas. Aliás, ao que me consta, há muito que quase ninguém paga por esse anacronismo chamado imprensa. Pelo menos entre nós, as publicações em papel têm hoje uma procura comparável à vacina contra a lepra – e, por regra, um interesse semelhante à dita.
Quanto à televisão, a obediência às directivas é ainda mais simples. Quem, com idade inferior a 70 anos e na era do cabo, do Netflix, do DVD, do youTube e do que calha, insiste em ver canais portugueses? Falo por mim, que apenas espreito tais aberrações para me inteirar dos comunicados do presidente do Sporting e das reacções dos especialistas aos comunicados do presidente do Sporting. O resto, calculo, é a tralha grosseira que celebrizou o “audiovisual” caseiro e, dado atravessarmos um Tempo Novo, a descarada propaganda do governo e do país que convém ao governo. O que eu não esperava é que a grosseria e o descaramento chegassem aos níveis espectaculares a que chegaram.
Um destes dias, soube pelo Telmo Azevedo Fernandes, ocasional autor no “Observador” de textos lúcidos e logo excêntricos sobre economia, que a RTP estreou um programa intitulado “Missão: 100% Português”. É extraordinário que, em pleno século XXI (é assim que diz, não é?), a RTP continue a existir. Porém, achei literalmente inacreditável que agora dedique a sua desgraçada existência à divulgação de um patriotismo caro a 1930. E isto a julgar pelo nome, que prometia coisa má. Movido pela curiosidade dos pervertidos, fui ver: a coisa é pior.
O “conceito” de “100% Português”, adaptado de uma empresa holandesa e de autóctones doentes, é simples. E atroz: um moço, convenientemente pateta, aceita viver uns meses sem produtos estrangeiros. As câmaras, os microfones e restante parafernália fabricada em Aljezur registam o resultado para educação das massas.
O segundo episódio, que testemunhei com previsível sofrimento, começa com o moço a preparar o pequeno-almoço, confecionado com fruta guardada ao relento e comido no chão. O moço, que dá saltos, faz caretas e diz “Eia, man!” e “Muita mal”, decide ir à cata de bens patrióticos. A voz “off” (termo alentejano) dita as “regras”: “De agora em diante, o Raminhos (?) vai consumir exclusivamente produtos “made in” (expressão beirã) Portugal identificados através de etiquetas, rótulos e símbolos que atestem a origem nacional”. Mais: “E ainda vai explorar as mais criativas ideias nacionais, com sucesso por cá e além-fronteiras” (supõe-se que em países sem consciência proteccionista).
De súbito acompanhado pelo cançonetista Toy (alcunha minhota), pretexto para “piadas” susceptíveis de inspirar suicídios colectivos, o moço parte em busca de um frigorífico indígena. A bordo de um automóvel concebido em Arruda dos Vinhos, ambos berram: “Eu vou cantar/sou português/e tenho orgulho no meu país”. Adquirido o frigorífico, passa-se à pedagogia directa, onde o moço e Toy interpelam transeuntes com mentiras piedosas (ou cruel estupidez): “É mais barato porque a assistência é portuguesa”. Aos 14 minutos de emissão, e se não for maluquinha de todo, a assistência portuguesa fugiu apavorada de tamanho nojo. Eu tomo um comprimido para a enxaqueca e persisto. Em vão: Toy retoma a cantoria.
Na cena seguinte, o moço senta-se para a “leitura 100% portuguesa” e, investigo a capa, opta por Borges. Estranho, pelo desvio às regras e ao péssimo gosto do programa. Depois percebo que não se trata do escritor argentino (neto de transmontanos, imagine-se): o Borges em questão é um “humorista” que se passeia de boina basca e que, sem querer, fornece a analogia perfeita para o penoso exercício. Abdicar, em nome da irracionalidade tribal, de produtos importados é, na vastíssima maioria das circunstâncias, ficar reduzido à fancaria que sobra, se sobra. E é abdicar da capacidade de escolha. E dos benefícios da concorrência. E das vantagens de habitarmos um mundo imensamente maior que nós. E do progresso em geral.
Além de um espectáculo pelintra, e veículo promocional de um Estado muito desonesto e pouco democrático, “100% Português” é um manifesto reaccionário, com cheirinho à superioridade da “raça”, aos prazeres da xenofobia e a feiras de fumeiro. Numa palavra, é reles. Em meia dúzia de palavras, é um sintoma da miséria a que descemos ver a “economia de substituição” – ou o atraso de vida – louvada no horário “nobre” do Inverno de 2018. Na campa, Salazar deve contorcer-se de gozo. Como Jerónimo de Sousa no museu.

Em abono do rigor, esclareço que, no momento em que o moço pegou no Borges da boina, a electricidade dele foi abaixo. E a minha paciência também. Enquanto o moço presumivelmente pesquisava turbinas criadas em Gondomar num telemóvel criado em Portimão, considerei-me satisfeito (salvo seja) e desliguei o televisor (projectado na Buraca). Suportei perto de vinte minutos, a duração média que o corpo humano resiste à fogueira, o único suplício comparável. Se o nacionalismo é de facto o último refúgio dos canalhas, consola não ser uma invenção portuguesa. Já a lobotomia é. E nota-se.

As provas da nossa harmonia de pensamento


O texto de Miguel de Sousa Tavares – “Lista exaustiva das ideias espectaculares de Rui Rio” – prova decididamente que todos os homens são iguais, sem o melindroso senão de que uns são mais iguais que outros. Afinal, todos leram pela mesma cartilha, com a convicção – e a comoção - de que o catecismo dessa cartilha é que está a dar, todo dedicado a nós, povo da vila morena, no nosso lindo país de homens incendiários e poluidores de praias e de rios, e de clima amenamente castigador da Terra. Que importa, pois, que todos os dirigentes ou mesmo dirigíveis, sejam a favor das acções virtuosas que têm o homem e a mulher na meta da sua virtude socioideológica? A verdade é que os blocos esquerdinos fizeram escola na defesa dos sacrificados e agora todos os imitam, pelo menos nas tiradas sociais, mesmo que seja à custa de dinheiros com que outros povos nos desenrascam.
É certo que ainda se vêem homens e mulheres à esquina do Pingo Doce – refiro-me ao da Parede, onde alternam, com a sua traquitana de vestes e abrigos enxovalhados – não sei se dormiram lá, na esquina, – ora um mendigo, ora uma mendiga com aparência indiferente ao mundo, e esses não são referidos pelos governantes, apoiantes ou candidatos a governantes da lista que JMT apresenta, jovem arguto e despachado no seu descrever.
No tempo de Cesário Verde, os mendigos manetas e sórdidos, ou mesmo o professor de Latim de Cesário, arrastavam-se por outras bandas, por exemplo, nas esquinas, mas não de Pingos Doces, o que seria anacrónico referir, como se comprova em “O Sentimento dum Ocidental”: «E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso, Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso, Meu velho professor nas aulas de Latim!”, e demonstra uma certa imutabilidade na via da nossa mendicidade, que essa não faz parte do nosso Estado social, pois não está contida nas propostas de gestão dos tais governantes, apoiantes e candidatos, apesar da promessa de “lutar contra a pobreza”, mas, definitivamente, só a mais disfarçada - o que nos rebaixa bastante na questão social. Felizmente, estamos habituados.

OPINIÃO
Lista exaustiva das ideias espectaculares de Rui Rio
Destas 22 propostas, quantas poderiam ser subscritas pelo PS de António Costa? Vinte e duas.
22 de Fevereiro de 2018
Ontem dediquei-me a analisar em detalhe o discurso programático de Rui Rio no encerramento do congresso do PSD. Eis a lista exaustiva daquilo que ele propôs ao país: lutar contra a pobreza; combater a fraca natalidade; apoiar a terceira idade; combater a desertificação do interior; promover a sustentabilidade da Segurança Social; promover a solidariedade intergeracional; defender os princípios do Estado social (e a sua “dimensão humana”); combater a deterioração do Serviço Nacional de Saúde; implementar cuidados hospitalares domiciliários; reforçar a rede nacional de cuidados integrados e de cuidados paliativos; garantir um SNS sustentável e moderno; melhorar as escolas e as condições de ensino e aprendizagem; promover a ascensão social; apostar numa política para a infância que promova a igualdade de oportunidades; alargar o acesso ao ensino superior; apostar numa sociedade do conhecimento e inovação; apostar numa economia mais competitiva; insistir na ligação das empresas às universidades; levar a cabo políticas públicas promotoras do investimento, da poupança, do emprego de qualidade e capazes de induzir o crescimento económico; proporcionar aos portugueses um nível de vida idêntico ao da média da União Europeia; descentralizar (a “longo e médio prazo”); olhar para as franjas mais abandonadas do interior.
Destas 22 propostas, quantas poderiam ser subscritas pelo PS de António Costa? Vinte e duas. Quantas poderiam ser subscritas pelo CDS de Assunção Cristas? Vinte e duas. Quantas poderiam ser subscritas pelo Bloco de Esquerda de Catarina Martins? Vinte e duas. Quantas poderiam ser subscritas pelo PCP de Jerónimo de Sousa? Vinte e duas. É curioso que Rui Rio tenha prometido no congresso “resistir ao discurso fácil e politicamente correcto”, porque aquilo que nos ofereceu na sua intervenção programática foi um conjunto de banalidades que merecem a concordância de qualquer pessoa, de Marcelo Rebelo de Sousa a Arnaldo Matos, passando pela Miss Portugal. Rui Rio disse também: “Não é preciso inventar diferenças, as que existem já são suficientemente marcantes para todos nós nos distinguirmos.” É mesmo? A mim parecer-me-ia útil arranjar algumas, porque até agora vi nenhuma.
Aliás, não foi só no seu último discurso. O primeiro foi igual. Rui Rio falou a maior parte do tempo para dentro do PSD, mas no final deixou algumas propostas para o país: inverter o distanciamento entre cidadãos e partidos; reformar a justiça para obter mais celeridade, transparência e melhor qualidade legislativa; reformar o Estado e optimizar os seus recursos; descentralizar e desenvolver o interior; reforçar a respeitabilidade das instituições; reforçar os direitos e garantias dos cidadãos; combater a demagogia. Destas sete propostas quantas poderiam ser subscritas pelo PS de António Costa? Sim, são sete, e dispenso-me de incomodar o leitor com mais uma ronda pelos partidos e pela Miss Portugal.
As intenções que Rui Rio manifesta constam de qualquer problema partidário desde 1974, e podem ser resumidas em quatro palavras: “Queremos um país melhor.” Obrigadinho. A questão não está na qualidade dos desejos, porque todos somos óptimos a desejar, mas na forma como se concretizam, tendo em conta a limitação dos recursos e os constrangimentos políticos e sociais do país. E sobre isso Rio disse nada. Se não quer ser acusado de ser o António Costa cor-de-laranja, convinha que se esforçasse um pouco mais.


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Tempos de decepção


Maria João Avillez faz uma análise pertinente e elegantemente apurada de um acontecimento que, não sendo necessário, se tornou condição suficiente para manter um partido que, repentinamente nos evoca o rio Tejo, ao que se diz, morto, e, sobretudo, actualmente mortífero. A gravidade do caso torna a expressão “Não havia necessidade”, do diácono Remédios, inadequada, no seu humor, ao sentimento de tristeza ou de tragédia que com aquela contrasta. Maria João Avillez, ainda assim, propõe um delicado “benefício de dúvida”. Estamos demasiado calejados e alguns, envelhecidos, para concedermos, desportivamente, tal benefício.
Preferimos colocar um comentário (de André Ondine) ao texto de Maria João Avillez de confirmação pelo que diz de Passos Coelho, e o texto esclarecedor de Rui Ramos sobre a odisseia futura do PSD:
I - PSD mudou para melhor?
OBSERVADOR, 21/2/2018
Um mínimo de seriedade face ao PSD reclama um mínimo de benefício da dúvida. Não se sabe é onde ir buscar o empolgamento. O das manhãs do início de uma nova aventura política.
1. O assombroso hotel Ritz, ex-libris quase mítico de Paris, foi para obras. Em mais de cem anos já deve ter tido outras intervenções, mas estas últimas dispensaram cerca de dez mil variadíssimas peças decorativas que irão para leilão em Abril. Uma pena, mas ainda bem que há leilões e não é apenas por concederem o dom de outra vida aos objectos, é também por certificarem a sua irrelevância ou ausência de qualidade minima. Lembrei-me do PSD ao ler a notícia. Sendo evidentemente desnecessário dizer que ele não é irrelevante, não era má ideia que parte fosse leiloada (há compradores para tudo), pois resolveria alguns magnos problemas.
Se algumas das peças de que o partido é feito têm, já se sabe, alto valor – convivendo embora com tralha antiga ou sem qualidade, mas isso são os partidos –, parte do lote entrado no último fim de semana simplesmente presta pouco e atrapalha muito. Não presta publicamente, isto é, o país sabe-o. A surpresa, o espanto desagradado — nalguns casos, irado — de vários elementos do núcleo duro de Rui Rio ao saberem de algumas das “peças” escolhidas é disso a mais desencorajadora das provas para quem inicia um “novo ciclo”.  De modo que talvez um leilão abrigasse tais peças para que nos livrássemos delas: ao estarem em relevo na mais importante estrutura de decisão política do maior partido da oposição, estão automaticamente inscritas na vida pública do próprio país. Uma vergonha. Ou deveria dizer um insulto?
E como querem que “se” fale de outra coisa se esta acende tantos sinais vermelhos?
2. Rui Rio habituou-nos a um certo tom de exigência quase reivindicativo quando se tratava da Justiça. O que me permite perguntar hoje: estava ele a brincar — estou a ser delicada — quando nos falava de ética e dos problemas que afligiam a nossa Justiça, ou está a brincar agora com a transformação de Elina Fraga em sua colaboradora próxima e dilecta?
O teor do discurso de Luis Montenegro e o alarido que suscitou são um chapeuzinho de chuva de chocolate ao pé da gravidade disto: há uma dupla na nova direcção politica do PSD — Elina/Malheiro — a contas com a própria Justiça. Não é dizer pouco e, no caso, calha que é sinalizar muito, tamanha a (inexplicável) contradição. Insisto: o novo líder social democrata concorda, aplaude, recomenda, as ideias, o modelo, a atitude agressivo-populista de Elina Fraga no que toca ao seu entendimento sobre o funcionamento da Justiça portuguesa? Rui Rio que sempre denunciou, temeu e atacou a justicialização da política – evocando-a aliás uma vez mais no Congresso – não se incomoda que a ex-bastonária seja uma óptima intérprete e praticante disso mesmo, com os duvidosos gestos e desastradas opções que já lhe conhecemos (e sem que nada indique que não se repetirão)?
Por este andar o PSD desaguará nas mais obscuras águas da Justiça ou alguém se espantaria que o Presidente do partido, agora aconselhado pela sua dilecta conselheira, lhe desse, também ele, para advogar a não recondução da actual procuradora-geral da República? Onde estão os interesses do país?
3. Escolher mal é mau sinal e em política é péssimo. Face ao que aí ficou, não se pode fazer de conta. A escolha de Fernando Negrão para a liderança parlamentar, pelas reacções de consternação e desagrado que, embora em surdina, suscitaram em alguns deputados afectos ao próprio Rui Rio (!), num atabalhoado e precipitado processo político, permite todas as dúvidas e foi um duplo erro: nem Negrão será afinal respeitado como o mais dotado politicamenta para ir ao leme da embarcação, como sobretudo a ausência de Rio das bancadas do Parlamento ampliará ao máximo a importância do palco parlamentar na caminhada do PSD (e conhecemos de cor a saga infeliz dos líderes ausentes dos parlamentos). Mais valia terem lá deixado o rapaz Soares: conhecia a casa, descodificava a bancada com segurança, tinha verve (na qual, é verdade, se teria apostado com dificuldade, mas a politica é fértil em surpresas).
4. E o resto? O resto não pode ser desligado do que acima escrevi, as coisas são o que são, mesmo retendo o empenhado esforço de Santana e de Rio na produção de um “clima de unidade”: a) ficou no ar a sensação de alguma descaracterização; b) a Comissão Política  não tem ninguém com menos de 40 anos (!); tem tralha antiga e, com honrosas excepções, parece pouco inspirada politicamente, deixando de fora alguma gente de primeira que Rio poderia ter ido buscar às suas próprias fileiras; tem uma fraquíssima representação feminina; não supreendeu nem convenceu; c)  admitindo que não se esperavam um rol de soluções salvíficas, ideias geniais ou medidas milagrosas houve mais diagnóstico – trivial — que substância para o futuro, pese embora o enfoque e a promessa de atenção a alguns sectores cruciais;  d) permanece brumosa a futura relação com o PS apesar da manifesta vontade de Rio para acordos e compromissosencontrar o justo equilíbrio entre a vital necessitade de acordos de regime para Portugal e os interesses próprios do PSD na manutenção de uma larga frente de centro direita vai exigir mais ponderação, lucidez, preparação, do que aquilo que se ouviu ou pressentiu; e) o desenrolar do Congresso permitiu algum pesado embaraço: Passos Coelho (aplausos assim só vi na ópera), teve sozinho a maior moldura de aplausos na FIL; o discurso de Luis Montenegro foi mais vibrantemente acolhido nas constantes interrupções das palmas (palmas de críticas a Rio, sublinhe-se) que os, como dizer?, mais esmorecidos aplausos dirigidos ao novo líder, para não falar dos apupos, de alguns ódios à solta, de (indisfarçáveis) sinais de divisão.
É o começo, dir-se-á.  É. Por isso um mínimo de seriedade reclama um mínimo de benefício da dúvida. Rui Rio ganhou, teve o mérito da sua vitória política. Não se sabe é onde ir buscar o empolgamento. O das manhãs do início de uma nova aventura política.
5. O lado “laranjinha” de Marcelo (que é fortíssimo) terá forçosamente uma leitura menos desalentada que a minha que não sou “laranjinha”, não tenho cartão e nunca tive militância. Mas o Presidente da República vai ter mais trabalho pela frente. Sobretudo menos previsibilidade política, coisa que ele detesta.
6. Pequena mas não dispiscienda nota final. Passos levou quatro anos a ouvir insultos e mentiras sobre o governo e sobre ele próprio. Depois ganhou as eleições. A seguir levou dois anos a ouvir que era “mau” na oposição findo o que Rui Rio teve menos votos que ele, Passos Coelho, em qualquer das eleições internas em que o ex-lider concorreu no PSD.
Um tipo decente, Pedro Passos Coelho (e que bom discurso o seu).
II - Comentário:
ANDRÉ ONDINE
Concordo, e elogio, inteiramente. "Um tipo decente, Passos Coelho". De facto, a sua saída retira decência ao parlamento. À vida política nacional. Não votei nele, mas convenceu-me. Pela coragem, no governo. Pela sobriedade e sensatez, na oposição. Rio tem muito boa imagem de si próprio. Julga-se um exemplo perfeito de honestidade, austeridade e moralidade. Não é, como vemos. Aliás, na questão do líder parlamentar, o comportamento de Rio lembra muito o de António Costa. É o regresso da pior política e o afastamento de alguém que a credibilizava.

III -  RUI RIO: Isto começou mal e vai acabar mal
OBSERVADOR, 23/2/18
O destino de Rui Rio não é ser oposição ao governo, mas ao próprio PSD. Foi sempre assim quando, no passado, o PSD foi posto na situação em que Rio o colocou, de subordinação ao PS.
Não deve uma política, como alguém disse, ser julgada pelos resultados? Talvez, mas neste caso já temos resultados suficientes. Em menos de uma semana, Rui Rio conseguiu que uma sua vice-presidente fosse vaiada no congresso, e que o seu candidato a líder do grupo parlamentar não fosse votado pela maioria parlamentar. Pelo meio, voltou a pôr Santana Lopes com dúvidas.Não vale a pena distribuir culpas. É mais importante registar o significado de tudo isto: o destino de Rui Rio não é ser oposição ao governo, mas ao próprio PSD. E vai ser assim, porque foi sempre assim quando, no passado, o PSD foi posto na situação em que Rio o colocou, de subordinação ao PS. Não haverá paz.
As personalidades terão certamente alguma parte em tudo isto. Mas seria um erro começar por aí. O que está em causa é uma opção de fundo.  Ao aproximar-se do PCP e do BE, António Costa iria fatalmente provocar uma de duas coisas: ou fazia o PSD explorar a bipolarização, e clamar, como diz Assunção Cristas, que a partir de agora os portugueses têm de escolher entre dois blocos, e quem não quiser o PCP e o BE na área do poder tem de eleger 116 deputados do PSD e do CDS; ou então, o PSD seria tentado a entrar num jogo de equívocos com o PS.
O engano aqui seria presumir que, só por a direcção do PSD ter optado pelo jogo com o PS, haverá mais tranquilidade (ou “normalidade”). Não: haverá menos. É verdade que PS, PSD e CDS têm em comum a integração europeia. Sem isto, este regime seria impossível. Mas esses grandes princípios não condenam os partidos à harmonia, na medida em que não significa que só possa haver um tipo de soluções institucionais ou opções de governação. Dir-me-ão: noutros países, os grandes partidos entendem-se para governar. Sim, na Alemanha — onde, depois de anos de coligação, a CDU e o SPD nunca estiveram tão divididos e valeram tão pouco. O mesmo, aliás, aconteceu ao PSD e ao PS em 1985, após o Bloco Central. Por isso, por mais interessados que estejam em extrair capital de uma “nova fase” de consenso, nem PSD nem PS estão à vontade para se comprometer, com medo de alienar dirigentes e eleitores.
O primeiro efeito do corrente jogo será, portanto, uma grande cacofonia. Do lado do PS, por cada porta-voz que saúde a disponibilidade do PSD para pactos, haverá outro porta-voz a dizer que não haverá pactos nenhuns. Do lado do PSD, por cada dirigente que queira transformar os debates com o primeiro-ministro em fraternais “sessões de trabalho”, haverá outro dirigente a clamar que um “governo de esquerda” lhe “repugna”. Aliás, curiosamente, nenhuma direcção do PSD terá usado a palavra “esquerda” com tanto nojo como a actual. Nada disto é inédito. Ninguém como Sousa Franco, em 1978, ou Mota Pinto, entre 1983 e 1985, se mostrou tão impaciente e quezilento com o PS: é quem tem expectativas que mais se zanga.

Mas então, como fazer as “reformas”? Bem, para começar, as reformas são as reformas que só o PSD e o CDS querem fazer. Porque haveria António Costa de lhes facilitar a vida? O PS já explicou que só está interessado “em acordos com todos os partidos. Seria, portanto, preciso imaginar soluções de que estivessem igualmente convencidos CDS, PSD, PS, BE e PCP. Poderíamos, a esse respeito, assentar numa regra: fora de uma emergência, tudo em que partidos tão diferentes concordarem tenderá a ser, ou detalhes técnicos, ou manigâncias à custa dos contribuintes (como o financiamento partidário), à custa do equilíbrio dos poderes (como a governamentalização do Ministério Público), ou à custa do Estado (como a feudalização agora conhecida por “descentralização ). Em suma, neste contexto, ninguém fará “reformas”, e as que se fizerem – será melhor que não sejam feitas.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

REQUIEM


Um mundo perigoso, um mundo estranho, um mundo criminoso, e assim vamos continuando. Um rio que vai morrendo, os alertas são muitos, a chuva não vem. Crianças que choram a escola perdida, outras que são apanhadas nas malhas da guerra, com mortes e violações …
E o cinismo, na questão do nosso Acordo Ortográfico, e os casos corruptos que brotam, na escassez da chuva…
Um homem honrado que foi “despejado”… 
Mundo não só mal formado, como cada vez mais temível.

Em comunicado, a CHT revela que a água que acumula esta semana a bacia do rio é 4141,6 hectómetros cúbicos, que representam 37,6% da sua capacidade total (11.007 hectómetros cúbicos).
O total do volume de água armazenada é distribuído entre os reservatórios para consumo humano, irrigação e usos industriais, em que a água não é devolvida ao meio ambiente, e o uso hidroeléctrico, em que a água é usada para produzir energia e é devolvida ao meio ambiente.
Tanto os reservatórios de consumo como os reservatórios hidroeléctricos estão abaixo das médias dos anos anteriores.
Na semana passada, o presidente da CHT já tinha alertado para a situação, lembrando "escassez atípica de chuvas que tem ocorrido desde o início do ano hidrológico, em relação aos valores médios da série histórica e ao ano anterior último ano hidrológico, que já estava bastante seco ".
Juan Carlos de Cea apelou mais uma vez ao uso responsável da água, pedindo a todos os cidadãos adoptem medidas de poupança.

Uma em cada seis crianças vive em zonas de conflito
A Save the Children diz que mais de 357 milhões de crianças sofrem com conflitos armados: um aumento de 75% relativamente a 1995.
PÚBLICO, 15 de Fevereiro de 2018

A lista de países onde as crianças são mais vulneráveis é liderada pela Síria, seguida pelo Afeganistão e Somália REUTERS/HOSAM KATAN
São mais de 357 milhões as crianças que vivem actualmente numa zona de conflito. Uma em cada seis crianças vive a pelo menos 50 quilómetros de uma área de guerra, estando exposta à violência, diz o mais recente relatório da organização britânica Save the Children.

 “Todas as guerras, justas ou injustas, desastrosas ou vitoriosas, são travadas contra a criança”. A frase foi dita há quase cem anos por Eglantyne Jebb, fundadora da Save the Children, e referia-se à fome que atingia as crianças na Áustria e na Alemanha nos anos que se seguiram à I Guerra Mundial. E é desta ideia que parte o relatório da organização que tenta destapar uma realidade nem sempre óbvia. …
A partir dos números que existem, foi possível concluir que as crianças estão agora mais expostas a riscos derivados de conflitos armados do que nos últimos 20 anos: em 1995, 200 milhões de crianças viviam em zonas de conflito e em 2016 o número subiu para mais de 357 milhões. Um aumento de 75%.
Ao longo de todo o documento vão surgindo relatos de crianças afectadas pela guerra. São usados nomes fictícios:
“Um ataque aéreo atingiu a minha aldeia quando estava em casa a fazer os trabalhos de casa. De repente, parte do tecto caiu, e a bomba veio através de um buraco no tecto e explodiu no meu quarto”, conta Reem, de 13 anos, que vive no Iémen. “Caminhei até ao hospital enquanto sangrava. O médico deu-me assistência apenas por um mês, e pediu-nos para regressarmos a casa porque não havia espaço. Pediram-nos dinheiro para nos darem um quarto no hospital que eu não tinha. Por isso, fui-me embora”.
A lista de países onde as crianças são mais vulneráveis é encimada pela Síria, seguida pelo Afeganistão e Somália. Os dez primeiros classificados deste ranking são todos do Médio Oriente e África, as regiões mais perigosas para as crianças, segundo o relatório: no Médio Oriente, duas em cada cinco crianças estão expostas a conflitos, e em África uma em cada cinco.

Da Síria, surge a história de Basma, de oito anos: “Eu nunca mais vi a minha escola e os meus amigos; tenho muitas saudades deles”, diz. “Nunca parei de ir à escola, mas nesta nova cidade a minha escola foi atingida, e desta vez morreram 20 crianças”. ….

OPINIÃO
O capital político de Passos
Para além de cumprir a agenda imposta pela intervenção externa, Passos revelou capacidade de liderança efectiva.
SÃO JOSÉ ALMEIDA
PÚBLICO, 17 de Fevereiro de 2018
Pedro Passos Coelho despede-se este fim-de-semana da liderança do PSD no congresso em que será substituído pelo novo presidente do partido, Rui Rio. Ao fim de oito anos de liderança, a mais longa a seguir à década de Cavaco Silva, Passos sai com a imagem desgastada não só pela forma como conduziu o partido na oposição nos dois últimos anos, mas também fruto da erosão do mandato como primeiro-ministro entre 2011 e 2015.
Foi penoso assistir aos últimos dois anos de Passos. Terão sido também seguramente penosos para o próprio. Não porque Passos não tivesse o direito e a legitimidade de continuar como presidente do PSD — tinha-os até pela vitória nas legislativas de 2015. Foram-no, porque o líder do PSD nunca conseguiu acertar o tom como líder da oposição e, sobretudo, porque foi manifesto que não percebeu a mudança política que se operou no país após as legislativas. Uma transformação em que a radicalização à direita da sua governação teve como resposta a radicalização à esquerda, através de uma inédita aliança entre o PS, o BE, o PCP e o PEV, que catapultou António Costa para primeiro-ministro.
A incapacidade de perceber o que tinha acontecido levou Passos a acreditar que a crise ia rebentar de novo. Até anunciou a vinda do diabo. Ao mesmo tempo acreditou que o Governo cairia e que haveria legislativas antecipadas antes das autárquicas, assumindo uma clara desvalorização das apostas do PSD nas eleições locais. Mas soube escolher o momento da saída pelo seu próprio pé e fê-lo com dignidade.
Antes de Passos se arrastar à frente do PSD na oposição, há o mandato como primeiro-ministro. E se o final que escolheu não ficará na história ou será nela apenas uma nota de pé de página, a verdade é que o seu consulado à frente do Governo fez história, para o bem e para o mal.
É certo que a dirigir do Governo Passos revelou frieza e até insensibilidade social e política. São múltiplos os exemplos, mas basta referir as suas declarações de que os portugueses não podiam ser “piegas”, que viviam acima das suas possibilidades ou a sua assertividade a garantir que o seu Governo queira ir “para além da troika”.
Passos revelou, no entanto, uma determinação, uma coerência e uma solidez de liderança que têm de ser reconhecidas, por mais que se tenha discordado de muitas das suas opções — como fiz ao longo de mais de quatro anos nesta coluna de opinião. A realidade é que Passos foi eleito à frente da coligação PSD-CDS e designado primeiro-ministro pela maioria parlamentar ganhadora das eleições de 2011, no momento em que o país estava em situação de pré-bancarrota e em que as finanças públicas tinham acabado de ser viabilizadas por um acordo entre o Governo do PS de José Sócrates — cuja gestão financeira e económica conduziram à derrapagem orçamental — e a troika da Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional. Portugal recebeu um empréstimo de 78 mil milhões de euros, mas ficou obrigado a cumprir um caderno de encargos penalizador dos cidadãos, sobretudo dos trabalhadores por conta de outrem, que viram o seu poder de compra drasticamente reduzido.
Para além de cumprir a agenda imposta pela intervenção externa, Passos revelou capacidade de liderança efectiva também quando recusou aceitar a demissão “irrevogável” de Paulo Portas. E manteve-se no poder conseguindo cumprir o objectivo de ver a troika sair de Portugal a 17 de Maio de 2014. Mais, atingiu a proeza de ver os indicadores económicos começarem a subir, o que lhe garantiu a credibilidade política de, contra as expectativas gerais, voltar a ganhar legislativas, ainda que em minoria.
Passos sai assim da liderança do PSD com um capital político. Para mais quando o tempo em política relativiza a acrimónia do eleitorado. É por isso que o adeus de Passos agora pode ser um até já. Não só no plano partidário, mas também no nacional.