A história da minha Alda tem
um final mais feliz. O marido, que a ameaçava com a arma, rebentou, com os
copos, antes de concretizar as ameaças, que a faziam vaguear fora de casa,
alucinada, contando dos seus terrores às pessoas suas amigas. Muitas vezes a
encontrei e fui massacrada com a sua história de terror, mas a minha sugestão
de que participasse dele era logo refutada, com referências a ameaças como as que
a Maria ou a Laura recebiam, de ser baleada, creio que também na cabeça. Por
isso eu estou plenamente de acordo com Rui Tavares, embora estes escândalos
que alguns jornais e canais tanto curtem me façam fugir a sete pés de os ler ou
escutar. No caso de a Maria ser lembrada no Parlamento – não me atrevo a propor
também a minha Alda, desconhecida que sou – eu só queria que fosse tratado com rigor
o caso da violência doméstica e estabelecidas leis impeditivas destas descargas
dos machos fortes e com armas, ao menos tirando-se-lhes as armas. Que o porte
de armas devia ser proibido, excepto no tiro aos pratos, para a pontaria no
desporto.
Eu quero Maria lembrada no Parlamento
Temos feito menos para
encarar este problema de frente do que aquilo que fizeram outros países
europeus. Talvez porque a indignação da comunidade ainda não se tenha ativado a
sério.
RUI TAVARES
PÚBLICO, 26 de Janeiro de
2018
Não sei o nome completo,
nem sei o nome verdadeiro dela. No PÚBLICO chamaram-lhe Maria, assumindo que o
nome fictício servia para proteger a identidade da vítima. Noutros órgãos de
comunicação social chamaram-na de Laura, ignorando eu se era esse o verdadeiro
primeiro nome dela.
Só sei que era uma
concidadã minha, uma concidadã nossa, e que morreu assassinada pelo marido — de
quem se encontrava separada — em 4 de novembro de 2015, em Valongo, no Porto.
Maria foi assassinada 37 dias depois de ter feito queixa do seu marido ao
Ministério Público por violência doméstica, tendo deixado claro que este lhe
dirigia ameaças de morte (“vou-te matar!”, dizia ele). Passou mais de um mês
até que Maria fosse chamada de novo a pormenorizar as suas queixas. Um mês em
que Maria viveu no medo e durante o qual teve de ouvir novas ameaças, que de
novo transmitiu ao Ministério Público: “rebento-te a cabeça se fizeres queixa de
mim!”. Depois desse segundo testemunho, Maria voltou a casa. O marido desavindo
estava escondido no quintal e matou-a à paulada. No dia seguinte, foi
finalmente chamado ao Ministério Público e constituído arguido. Maria já estava
morta e o Ministério Público não sabia. O corpo foi só encontrado três dias
depois.
Como é que se costuma
dizer? “O Estado falhou aos cidadãos”, não é? Pois é, o estado falhou a Maria.
A justiça falhou a Maria. Deixou-a desprotegida durante mais de um mês.
Deixou-a em pânico. A autópsia revelou que ela tomava tranquilizantes. É
difícil, é desconfortável imaginar o medo em que esta mulher viveu durante um
mês. Mas é necessário fazê-lo para que nos compenetremos da enormidade do nosso
falhanço coletivo para com Maria e para com todas as vítimas de violência
doméstica.
Sim, foi mais do que o
eestado e o Ministério Público a falhar com Maria. Fomos todos nós a falhar.
Somos todos nós a falhar. Continuaremos todos nós a falhar enquanto, como disse
ao PÚBLICO o procurador Rui Carmo, não se “ativar a indignação da comunidade”.
Ele tem razão. A indignação da comunidade tem de ser tal que não volte a passar
pela cabeça ao Ministério Público reenviar para casa uma mulher sob ameaça de
morte sem que lhe fosse atribuído o estatuto de vítima. A indignação da
comunidade tem de ser tal que não passe pela cabeça aos políticos e a todos os
governos, presentes e futuros, deixar a polícia e a justiça sem meios para
proteger as vítimas de violência doméstica, em particular as que tiveram
coragem para relatar que receberam ameaças de morte.
Portugal tem, como outros
países, um problema crónico de violência doméstica, de que são vítimas quase
sempre mulheres, muitas vezes crianças, às vezes homens também. E temos feito
menos para encarar este problema de frente do que aquilo que
fizeram outros países europeus. Talvez porque a indignação da comunidade
ainda não se tenha ativado a sério. Talvez porque seja difícil lembrar as
vítimas e porque seja tentador não olhar e seguir em frente. Mas esquecer as vítimas
é uma indignidade que se paga caro — com mais vítimas.
Reitero a proposta que fiz
nestas páginas há alguns meses. É necessário que, a exemplo do que se faz
noutros parlamentos, a Assembleia da República lembre as vítimas de violência
doméstica nas suas sessões plenárias, no momento em que estiverem presentes
mais deputados. Será desconfortável para todos escutar, uma e outra vez, os
nomes ou as circunstâncias das agressões muitas vezes fatais de que são vítimas
tantas das nossas concidadãs. É precisamente por ser desconfortável que
precisamos que os nossos representantes eleitos lembrem as vítimas como Maria
de cada vez que for necessário. Porque aí pode ser que as leis melhorem, a ação
seja mais eficaz e os meios aumentem, e que algum dia passe um ano inteiro
ou mais ainda sem que a Assembleia tenha que ouvir que morreu mais uma vítima
de violência doméstica depois de ter tido a coragem de relatar à justiça que
estava sob ameaça de morte.
Historiador
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