domingo, 18 de fevereiro de 2018

Memória

Eis o texto da minha Exposição de ontem, no lançamento do livro «Permanência em fabulário de mudança”, que decorreu na «Chiado Editora», que para mim foi um momento bonito, graças à simpatia das pessoas que foram, à apresentação das pessoas da mesa e as de colegas intervenientes – Rosa Sousa e Irene Bernardo - e aos bons augúrios sobre o êxito da obra:
«Uma redacção da minha terceira classe permaneceu num caderno escolar que a minha mãe guardou, e que durante os tempos de Coimbra e mais tarde, de retorno a África, me acompanhou igualmente, em narcísico apego pessoal a um escrito feito na escola de uma aldeia onde iniciei a aprendizagem das letras e que guardei, com outros cadernos posteriores, mas que o retorno a Portugal Continental em 74, fez esquecer e abandonar no sótão do lar africano, na precipitação da partida em fuga.
Outras referências poderia apontar dos meus êxitos de escrita, no “vanitas vanitatum” de um exibicionismo naturalmente condenável, mas da minha redacção sobre “A Primavera”, fixei, em espanto posterior, uma estrutura circular expositiva, em texto feito com oito anos de idade, o seu igual começo e a conclusão próprios de uma consciência estilisticamente, e julgo que precocemente, subjectiva, na dita redacção, retomado o seu início no final, em frase simples, naturalmente, mas conclusiva e impondo ritmo, a descrição encaixada entre o mesmo começo e o mesmo fim – «Eu gosto muito da Primavera».
A referência vem a propósito deste Fabulário com que fui entretendo ociosidades na derradeira fase da vida, de vez em quando refazendo, nos livros e na Internet, memórias de escritores que a marcaram e serviram, para melhor conseguir compreender ou discordar, em permanente empenhamento participativo, embora obscuramente captado na sociedade em que me integrei.
De facto, de escritores parti, como mestres primeiros do meu encontro com o mundo, descontando, naturalmente, as influências da família, na estruturação da própria personalidade, além da natureza específica desta. Daí, o sentimento de gratidão que me acompanha sempre que os leio, a esses escritores primeiros, como, de resto, aos de hoje, que vou lendo nos livros ou nos jornais, facultados muitas vezes pela Internet do meu assombro constante, na imediatez das respostas que facilita às nossas dúvidas ou ânsias de melhor explicitação.
Sempre os mitos e as fábulas favoreceram a minha curiosidade, mais atreita a leituras fáceis ou mesmo mistificatórias, de evasão do real, ou de finais felizes, para a crença no mundo bom e fuga da implacabilidade do Mal, com que a cada passo topamos, mas em que o renovar da vida em cada criança que nasce e cresce ou em cada flor ou folha que desabrocham em primaveras sucessivas, nos torna gratos a algo de superior que nos cobre de bênçãos, mau grado os sofrimentos e as torpezas também constantes no mesmo Mundo.
E as fábulas servem de distracção, mas de reflexão também. Sobre o que é Bem, sobre o que é Mal. E, sobretudo, de divertida ponderação, nos simbolismos de que são portadoras.
Daí o ter resolvido a certa altura, em mero desafio de diversão e de simultânea aplicação aos casos vividos na nossa actualidade política e social, de um paralelismo a merecer julgamento crítico, fazer delas uma tradução em liberdade discursiva, mas respeitando o pensamento clássico, para, seguidamente – ou mesmo como introito – estabelecer o confronto e a conclusão, concordante ou desviada da moral antiga, no balanço final de uma sociedade em mutação, mas eternamente firme, no jogo dos sentimentos da alma, que a característica da abstracção torna imutáveis.
Sei bem quanto alguma referência aos casos particulares da nossa especificidade nacional poderá desvirtuar o seu alcance e reduzir-lhes a dimensão, pelo desconhecimento ou indiferença do mundo, mas a universalidade crítica está bem saliente nas próprias fábulas – de Esopo, de Fedro, de La Fontaine ou de Florian – que com tanto prazer traduzi, sem distorcer-lhes o pensamento, mas nelas apondo, por vezes, facetas de subjectividade ao sabor dos ritmos, do pensamento e da melodia íntima, e os exemplos das nossas particularidades serão apenas casos que nelas se encaixam, da nossa própria vivência nacional, embora facilmente reconhecíveis por experiências mundanais análogas, os nomes citados tornados puras abstracções genéricas do confronto irónico. Daí o acreditar neste livro, como importante e educativo, para todas as classes, mais letradas ou menos esclarecidas, estas últimas saboreando nelas o prazer do seu imediato reconhecimento.
O ter usado um estilo mais ou menos poético na sua estrutura formal, vem, pois, de encontro à frase simples da minha redacção da terceira classe, estruturada já dentro de um sentido harmónico, a conclusão retomando, circularmente, a introdução – “Eu gosto muito da Primavera”.
Porque é de melodia também que no livro se trata, as frases das traduções, como as dos comentários, deslizando em ritmo facilmente captável, num pensamento facilmente perceptível, o humor e a ironia possibilitando o sorriso ligeiro da adesão ou, concedo, o esgar de desaprovação, da envolvência possível, nem sempre homóloga.
Estrutura circular também poderemos adaptar, pois, a cada texto - e eis a razão da minha referência primeira à tal redacção primária, pese embora a diferença, na escassa abrangência do exemplo. Nos textos do livro, a fábula clássica funciona como um centro fulcral, o universo humano girando em seu torno, ao longo dos séculos, semelhante, diferente, uma “permanência em fabulário de mudança”, da análise definitiva, se é que as contingências que nos limitam, de uma evolução assustadoramente transformista, permitem a crença na durabilidade de qualquer “definitivo”.
Termino, agradecendo:
- À minha Irmã, à Ilda e à Alice, no seu companheirismo de bom humor paciente e sólido;

- Aos meus Filhos, pela Família bela que souberam construir, no Companheiro e Companheiras, nos seus Filhos, meus Netos, e nos Filhos das minhas duas Netas mais velhas, meus Bisnetos, e que tive sempre a felicidade de poder manter no calor da proximidade e da alegria que neles gosto de sentir, em convívio frequente, nos anos que se vão;

- A Todos os que alguma vez me leram e apoiaram em comentário caloroso – envolvendo nesses, os Amigos que a morte levou;

- Ao Vitorino, meu bravo Companheiro na viagem desta margem;

- À Paula, que no meu livro está presente, no escrito do interior da contracapa e no discurso de apresentação ao meu lado.

- À Isabel Teixeira, que tão gentilmente acedeu a apresentar aqui hoje uma ocasional e temporária companheira de percurso formativo, companheirismo suficiente, todavia, para o reconhecimento de uma prestação mutuamente eficaz, forjadora de estima permanente, mau grado as distanciações trazidas pelas dispersões das vidas, mas que ressurge em momentos de reencontro, de uma simpatia sem emulação.

- Ao Luís, que deixou a sua marca, de conceito eventualmente negativo – de resto, algum tanto concordante com o sentido da mensagem do texto – no Homem claro e escuro da capa;

- A Todos os que se deslocaram aqui, no sacrifício das suas ocupações;

- À Memória, sempre estremecida, dos meus Pais;

- E, finalmente, a Todos os que, na Chiado Editora, contribuíram para a organização deste livro, especialmente o Sr. Luís Raimundo, que acompanhou, com a paciência e o entusiasmo atentos, a sua organização, e o apresenta aqui, e o Sr. César Adão, que tratou dos trâmites da sua publicação:
Repito, o meu grande obrigado.

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