quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Messianismo


Apenas uma aula de história política, este artigo de António Covas sobre a União Europeia, com propostas para o futuro, artigo que sempre servirá de consulta, na floresta de acontecimentos e respectivos comentários que os comentadores políticos nos vão trazendo, fragmentados, a compasso dos acontecimentos que pulsam aqui e ali ao sabor das intenções que por vezes as impertinências específicas dos cataclismos ou das emoções reivindicativas ou acusatórias de cada parceiro político podem fazer ruir. Sempre bom para retocar memórias, confirmando ou não os eventos que a futurologia política faz prever. E não esqueçamos, nos cataclismos, para além de rebentamentos nucleares insanos, o problema da água e do aquecimento global, anulatório das potencialidades, pelo menos cá entre nós, e tornando Mário Centeno a mezinha milagrosa para a actual política financeira europeia, como já o fora, ao que parece, no nosso país. E só nos falta, a nós portugueses, rendermo-nos definitivamente ao ministro António Costa e crer, sim, que dele nos vem a salvação, qual Senhora de Fátima nos tempos desastrosos da primeira república, qual D. Sebastião nos tempos de Alcácer Quibir, qual Santa Isabel rainha esmoler, qual Cristo nos tempos primeiros de um vitorioso Ourique. Há sempre algo ou alguém que virá, envolto em nevoeiro, trazer a mensagem necessária. Boa sorte para Mário Centeno.

A Geopolítica Europeia para 2018
OBSERVADOR, 30/1/!8
A perceção, sobretudo para os países do leste e em especial o grupo de Visegrado, é a de “uma teoria dos clubes” ressentida como discriminatória, uma espécie de balcanização do projecto europeu.

A periodização do passado recente
De forma breve, a construção europeia passou por quatro fases. A primeira fase entre 1947 e 1957 é a fase heroica, de inspiração federal, que culminou com a construção da comunidade europeia do carvão e do aço (CECA) no início dos anos cinquenta. A segunda fase entre 1957 (tratado de Roma) e 1989 (queda do muro de Berlim) é a fase da prosperidade económica, mas, também, da guerra fria e do mundo bipolar. A terceira fase entre 1989 e 2005 (tratado constitucional) é a fase mais voluntarista e neo-institucional, que concretiza o grande alargamento ao leste europeu, mas que termina com o chumbo do tratado constitucional. A quarta fase entre 2005 e 2017 é a fase do tratado de Lisboa, da grande crise de 2008, das primaveras árabes, da crise dos refugiados, dos programas de resgate e do terrorismo internacional, uma acumulação de linhas de fratura que conduziu à situação que hoje vivemos. Apesar da recuperação económica a União Europeia está muito longe de ter entrado numa fase de bonança. Uma reforma do projeto europeu continua na ordem do dia.

A última década (2007-2017)
O passado recente da política europeia pode ser sintetizado do seguinte modo: a “políty europeia” data de 2007 com a assinatura do Tratado de Lisboa que fica imediatamente desatualizada e refém da grande crise de 2007/2008; a “policy europeia” seguiu em modo de emergência e adaptou-se às necessidades da conjuntura, das políticas de austeridade aos programas de resgate. A “politics europeia foi capturada pelo “directório intergovernamental” com a cumplicidade declarada da alta burocracia de Bruxelas e Frankfurt; dessa cumplicidade nasceram instrumentos regulatórios “fora dos tratados”, uma espécie de “algoritmo macroeconómico europeu” que consagrou na última década as políticas de austeridade como “rule of law”. Refiro-me ao pacto de estabilidade e crescimento revisto, ao tratado orçamental de estabilidade, coordenação e governança, ao mecanismo europeu de estabilização, ao semestre europeu e aos chamados Six e Two Packs que, em conjunto, constituem uma “teoria geral da condicionalidade macroeconómica”, um autêntico algoritmo europeu para disciplinar as políticas nacionais.

O estado da arte da política europeia
Na política europeia está em plena laboração um paradoxo deveras interessante. De um lado, a perda de centralidade do Estado-nação e a sua incapacidade para reconfigurar a sociedade, por outro lado, a radicalização populista da política doméstica que recupera o Estado central como se estivessemos “órfãos de Estado”. A história, a geografia e os territórios estão, pois, de regresso. A política europeia não gosta da geopolítica, mas é o que aí vem. Nesta matéria, o estado da arte da política europeia apresenta-se do seguinte modo: no norte da Europa, Putin e a Rússia ensaiam o regresso à política das áreas de influência do velho império soviético; a leste, o Grande Médio Oriente anuncia uma intensificação do conflito xiita versus sunita para além da política turca autoritária do Presidente Erdogan; a sul, mantêm-se os estados falhados do mediterrâneo e a crise dos refugiados alarga-se até à região do Sahel e, finalmente, para rematar esta “tragédia dos comuns” temos na fachada atlântica as hesitações sobre o Brexit e os imponderáveis da Trumpolitics, de onde sobressai a suspensão dos grandes tratados de comércio livre, de consequências imprevisíveis para a economia internacional.
A primeira constatação, com implicações para 2018, é imediata: a União Europeia não tem política externa de segurança e defesa para uma agenda tão sobrecarregada, e tanto mais quanto o Reino Unido e os EUA optarem por uma “política de contenção” transatlântica mais distante e menos empenhada, se quisermos, por uma “política transatlântica low cost, de baixa intensidade geopolítica e geoestratégica”. Por outro lado, cresce o “núcleo iliberal” no interior da União Europeia e pela primeira vez foi acionado o artigo 7º do Tratado da União Europeia que condena um Estado membro por violação reiterada de direitos e regras fundamentais do estado de direito democrático.
A segunda constatação é o compasso de espera em que se encontra o anunciado impulso reformista da política europeia: os “cinco cenários” de Jean Claude Juncker já lá vão, as propostas de Emmanuel Macron aguardam melhores dias, a Alemanha está sem governo desde Setembro de 2017, a Itália tem eleições marcadas para Março de 2018, o Eurogrupo tem um novo presidente de origem portuguesa, as próximas presidências do Conselho não morrem de amores pela União Europeia (Bulgária e Áustria). Para rematar, em 2019 haverá eleições para o Parlamento Europeu e uma nova Comissão Europeia será nomeada.
O caso particular das relações transatlânticas e do Brexit
Esta política de “contenção de baixo custo e baixa intensidade geopolítica” tem uma consequência imediata, a saber, o reaparecimento de alguma animosidade regional ou mesmo de alguns conflitos regionais entre parceiros ou vizinhos desavindos. A relação triangular entre o Reino Unido, a Espanha e Portugal pode ilustrar esta situação. Fora da União Europeia, o Reino Unido pode provocar algumas fissuras na política ibérica por causa do regionalismo separatista, por causa de Gibraltar ou por causa de alguma discriminação positiva face a Portugal e negativa face a Espanha. Esta dupla atitude pode causar mal-estar nas relações peninsulares. O mesmo se diga em relação os Açores e ao futuro da base das Lajes no que diz respeito às nossas opções: se a contenção americana implicar uma retirada ou um longo compasso de espera em relação aos Açores, qualquer outra opção geoestratégica pode envolver uma reação intempestiva por parte do antigo parceiro.
A contenção americana em relação à NATO pode ter efeitos similares, não apenas por fazer apelo a uma maior participação financeira dos parceiros, mas, também, por implicar uma reconfiguração logística do sistema operacional e da geografia das bases militares. Mais uma vez, esta implicação geoestratégica e militar tem alguma delicadeza no que diz respeito às relações peninsulares e tanto mais quanto a NATO for obrigada a acorrer a conflitos graves em outras latitudes mais a norte e a leste. Quer dizer, é elevado o risco de uma desvalorização do fator euro-atlântico e, consequentemente, do sudoeste peninsular face a uma ameaça com origem em outro ponto mais crítico da fronteira europeia. Esta desvalorização não deixará de perturbar a relação peninsular.
Mas é no plano comercial e financeiro que os equívocos podem surgir com mais gravidade e maior impacto nas relações peninsulares. Como sabemos, o tratado transatlântico de comércio e investimento (TTIP) tem na sua base um acordo de parceria entre a União Europeia e os Estados Unidos. Os objetivos deste acordo de comércio entre as duas margens do Atlântico são bem conhecidos: acesso livre ao mercado pela redução de barreiras e custos alfandegários, a harmonização de normas internacionais em matéria de ambiente, saúde, segurança do trabalho, a convergência das práticas regulatórias, a resolução extrajudicial dos conflitos de concorrência, entre outros. Nesta nova geografia política e económica mundial a pequena península euroasiática da Europa seria um território de destino e provavelmente um ator político de 2ª ordem e a península ibérica uma “simples plataforma logística” de acesso ao mercado europeu. Sobre o continente europeu desembocaria uma gigantesca vaga “TTP e TTIP” de fluxos de comércio, pessoas e investimentos, uma espécie de “segunda vaga da globalização” com consequências inimagináveis sobre o tecido económico e empresarial da sociedade europeia. Ora, tudo isto está posto em causa pela Trumpolitics e, neste contexto, mesmo o Brexit pode estar profundamente contaminado, uma vez que o Reino Unido deixou de ser o centro de uma relação saudável e mutuamente vantajosa.
Quanto ao Brexit, em especial, estamos, ainda, numa fase da coreografia política enquanto se aguarda pela formação do governo alemão. Os temas mais controversos, de momento, são: a liberdade de circulação de pessoas, os direitos correspondentes e a respetiva jurisdição, o montante do envelope financeiro que o Reino Unido terá de pagar à União para cumprir as obrigações que lhe incubem como membro de pleno direito, finalmente, a linha de fronteira entre as duas Irlandas e os problemas geopolíticos daí decorrentes. Talvez o mais importante nesta fase (janeiro de 2018) seja delimitar as consequências e os danos eventuais de natureza geopolítica e geoestratégica que esta decisão sempre implica e que aqui registamos:
O frágil equilíbrio geopolítico pós-guerra fria, em especial na metade leste do continente europeu,
Os frágeis equilíbrios internos com a emergência de regimes iliberais e de separatismos e independentismo regionalistas,
Os delicados equilíbrios da política euroasiática, do Médio Oriente à Ásia Central e a reputação da União Europeia como ator global,
Os delicados equilíbrios dentro da NATO com a política de contenção americana,
Os delicados equilíbrios da política energética no próximo futuro no quadro das alterações climáticas,
As consequências imprevisíveis derivadas da suspensão dos grandes tratados internacionais de comércio e desenvolvimento e a crise do multilateralismo.
A revisão da polity europeia
A conjuntura política europeia não é favorável a grandes revisões dos tratados, isto é, a convenções e conferências intergovernamentais (CIG). É, porém, neste contexto que devem ser apreciadas as propostas de revisão de Emmanuel Macron. O presidente francês fala da realização de convenções nacionais para preparar a reforma dos tratados europeus e de um orçamento para a zona euro, preparado e validado por um parlamento para a mesma zona e conduzido por um ministro das finanças europeu. Estão em causa dois objectivos maiores: atribuir legitimidade política democrática a uma assembleia parlamentar da zona euro e dar um passo na direção de uma verdadeira política orçamental que esteja em condições de interagir mais intensivamente com a política monetária do BCE e, nessa medida, possuir uma política económica da zona euro muito mais efetiva.
A revisão da polity europeia justifica-se, em minha opinião, por duas razões fundamentais. A primeira razão tem a ver com uma dimensão externa muito alargada e muito pesada em termos orçamentais que tem fortes implicações na política interna europeia e em particular na reconfiguração da UEM. Não creio ser possível assumir esta pesada responsabilidade sem ser acompanhada pelo alargamento dos recursos próprios (uma eventual tributação europeia), a mutualização parcial das dívidas soberanas, a criação de um fundo monetário europeu e uma revisão global dos instrumentos financeiros europeus de apoio ao investimento e à cooperação internacionais.
A segunda razão tem a ver com os efeitos externos negativos da “extra-territorialidade europeia” em matéria fiscal e financeira que está a causar danos irreparáveis na legitimidade e no prestígio políticos do projeto europeu. Neste sentido, a criação de uma procuradoria europeia com uma ênfase especial para a criminalidade financeira é um bom sinal, conjuntamente com nova legislação europeia em matéria de offshores, de combate à evasão e fraude fiscais e mais e melhor harmonização fiscal.
Numa perspetiva mais substantiva, uma revisão da polity europeia poderá seguir vários alinhamentos. Em primeiro lugar, a União entra convictamente num período pré-federal ou pré-constituinte em busca de “um sentido de ordem” para a sua segunda modernidade e aproxima-se, mais claramente, de um figurino estadual de divisão tripartida de poderes. Em segundo lugar, a União adota um modelo dual de diretório para a cooperação política com várias “cooperações estruturadas permanentes”, por um lado, e de administração regulatória, multi-agências altamente especializadas, de baixa densidade ou dotação orçamental, no plano da “low politics”, por outro lado. Em terceiro lugar, a União pode ainda enquistar-se, paulatinamente, numa governança intergovernamental e internacionalista a várias velocidades, com estruturas e procedimentos muito complexos, uma espécie de “2ª OCDE” mais sofisticada, mas, crescentemente, absorvida por sucessivas operações de contingência e urgência, que as linhas vermelhas da sua orla fronteiriça não deixarão de suscitar.
De resto, a revisão da polity europeia terá de aguardar a formação do diretório europeu, pois sem governo alemão constituído não saberemos qual o rumo a seguir. Seja como for, a União Europeia necessita urgentemente de aumentar a sua legitimidade politica e institucional sob pena de se desacreditar completamente aos olhos dos cidadãos europeus. Julgo que uma abordagem política pela via de um governo dos “comuns europeus” podia ser útil e conveniente nesta fase do projeto europeu. Retomando algumas propostas já conhecidas, deixo aqui a minha proposta para uma 3ª via unionista da construção europeia e para um governo dos “comuns europeus”:
Uma procuradoria europeia, sobretudo para a grande criminalidade financeira,
Um espaço público democrático europeu através da criação de um Congresso Europeu ou, em alternativa, de uma União Interparlamentar com participação dos parlamentos nacionais,
Um mecanismo europeu para os grandes riscos e o combate às alterações climáticas,
Uma nova arquitetura para a zona euro: as funções do BCE, o orçamento da zona euro, o tesouro e o ministro das finanças da zona euro,
Um mecanismo europeu para a gestão das dívidas soberanas (a criação do fundo monetário europeu),
Uma nova arquitetura para a Europa da Segurança e Defesa europeias, a chamada cooperação estruturada europeia (CEP),
Um mecanismo europeu para a promoção das redes de regiões e cidades europeias (há aqui uma grande margem de crescimento mais distribuído),
Um mecanismo europeu para a promoção da sociedade digital e a economia colaborativa (para prevenir os danos do mercado único digital europeu),
Uma proposta europeia para a revisão dos instrumentos de cooperação e desenvolvimento (os alicerces de uma união para o mediterrâneo),
Uma proposta europeia para a revisão global dos instrumentos de suporte financeiro da União (há uma crescente proliferação de instrumentos).
Notas Finais
Seja qual for o rumo escolhido, há dois riscos políticos de fraturação que valerá a pena acautelar. O primeiro risco político reporta-se ao Brexit e ao que poderíamos designar “a teoria do precedente”, isto é, a escolha deliberada de uma linha de negociação apenas com o intuito de impedir ou condicionar novos pedidos de saída. O segundo risco político relaciona-se com a teoria da “Europa a várias velocidades ou círculos concêntricos”, no que diz respeito, por exemplo, ao mercado único, moeda única, segurança e defesa e imigração. A perceção imediata, sobretudo para os países do leste europeu e em especial o grupo de Visegrado, é a de “uma teoria dos clubesressentida por eles como discriminatória, uma espécie de balcanização do projeto europeu. Por isso, seria preferível uma via de “integração diferenciada e inclusiva” de      o ritmo e a vontade própria de cada Estado-membro. A proposta de um orçamento para a zona euro deve acautelar, também, esta eventualidade.
No plano jurídico-formal, entre uma abordagem de refundação do projeto europeu, à maneira de Macron, e uma abordagem minimalista ou conservadora do mesmo projeto, à maneira de Merkel, é conveniente, nesta conjuntura, que sejam aproveitados os instrumentos dos próprios tratados europeus, a saber, a revisão simplificada do artigo 48º, nº2, do TUE e as cooperações reforçadas dos artigos 20º e 42º a 46º do TUE e os artigos 326º a 334º do TFUE, já para não referir os acordos intergovernamentais realizados fora dos tratados e que têm sido uma prática constante ao longo dos últimos anos. Por exemplo, as convenções nacionais sugeridas por Macron poderiam conduzir à proposta de um “Ato Único Europeu” e limitar, justamente, tantos acordos intergovernamentais realizados fora dos tratados.
Finalmente, a mobilização, pela primeira vez, dos artigos 50º (saída de um estado-membro) e 7º (violação de valores fundamentais do estado de direito democrático) do Tratado de União Europeia será verdadeiramente uma marca impressiva da geopolítica europeia do ano de 2018 de consequências imprevisíveis. Esperemos que prevaleça o bom senso nos dois casos e que cheguemos a 2019 em boas condições para realizar serenamente as eleições para o Parlamento Europeu e a transição para uma nova Comissão Europeia.

Professor da Universidade do Algarve

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