terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Tudo por amor à língua


Bem poderia queixar-se, Bagão Félix, como fez Camões, na estrofe 154 do Canto X d’ «OS LUSÍADAS»: «Nem me falta na vida honesto estudo, / Com longa experiência misturado, / Nem engenho, que aqui vereis presente, / Cousas que juntas se acham raramente.», pois que engenho subentende este seu texto, pretendendo pôr a ridículo as anomalias criadas na língua pelos fazedores de um AO que não respeita etimologias, causando ambiguidades que ultrapassam, infelizmente, o risível, porque constituem autêntico crime de arbitrariedade tola, na adulteração e rebaixamento da língua a uma língua brasileira há muito saída dos trilhos da orientação primeira, que o Renascimento português enriquecera, em novo mergulho directo sobre o latim clássico, criando os vocábulos divergentes, os da via erudita, de transposição directa do latim clássico contra os da via popular, de adulteração temporal progressiva, caso do plano e chão (e lhano da influência castelhana), flama e chama, clave e chave, directo e direito, etc, etc.
No seu texto satírico, de engenhoso artifício criador de ambiguidades disparatadas que o AO proporcionou de imediato, na grafia e cada vez mais na pronúncia, e mais se acentuarão ao longo do tempo com a progressiva impreparação, (sustentada por metodologias educativas implicando falta de rigor nuns casos e exigência pedante e exibicionista em outros), Bagão Félix revela feroz exemplo da estupidez grosseira em que insistimos em subverter a nossa língua.
Um bem-haja a Bagão Félix, apesar do seu esforço uma vez mais infrutífero, de apoio aos da petição “Cidadãos contra o AO de 1990”, pois que quem governa não se rala com purismos linguísticos, alheio à língua como  coisa irrelevante, num país irrelevante.

O Acordo Mortográfico na AR
ANTÓNIO BAGÃO FÉlix
PÚBLICO, 19 de Fevereiro de 2018

A petiçãoCidadãos contra o ‘Acordo Ortográfico’ de 1990” é amanhã debatida na AR, bem como um louvável projecto de Resolução do PCP, o único que recomenda o recesso de Portugal do AO, outras medidas de acompanhamento e uma nova negociação das bases e termos de um eventual Acordo Ortográfico.
Com base nesta amálgama ortográfica, no que leio e no que até já vi ensinado (!), ficcionei um texto-caricatura para ilustrar este absurdo na nossa língua escrita. A bold assinalei as aberrações endógenas e toda a gama de facultatividades do AO e, em itálico, realcei erros resultantes da total confusão do “pós-acordismo” e todos os dias vistos nos jornais e televisões. Ei-lo:
receção do hotel estava cheia e o recetor não tinha mãos a medir. Agora que a recessão já não é um fato, ninguém para o turismo. A fila era de egípcios do Egito que não têm o “p” no nome do país porque lhes disseram que a concessão do visto dependia da conceção do mesmo. Entre eles, alguns eram cristãos coptas, perdão cotas.
O hotel tinha dois restaurantes tão suntuosos quanto untuosos: o cor-de-rosa e o  cor de laranja (este sem direito a hífens), porque o diretor mandou adotar o AO. Quer dizer, foi uma adoção sem adoçar o citrino. Os coutentes não ficaram contentes.
Um dos egípcios (um ator atormentado) perguntou se havia produtos lácteos dos nossos laticínios. Tudo isto por causa de um “c” que tanto faz parte, como não faz parte do leite.
Outro dos turistas que se havia zangado quis retratar-se e, para isso, resolveu retratar os amigos com uma “selfie”. Um outro rececionista (semi-interno e semiletrado) e que mais parecia um espetador, distraiu-se e picou-se num cato que, esse sim, era um doloroso espetador. Ficou com as calças semirrotas que lhe levariam parte do salário semilíquido.
Outro, por acaso um cocomandante – que tinha sido corréu porque correu no Cairo que era corruto – estava com um problema ótico e queria um médico. Tinha uma infeção que, mesmo sem o “c”, teimava em ser infecciosa. Foi-lhe sugerido ir a um hospital. O turista lá foi e, num dos corredores em forma de semirreta onde cruzou com um marreta, depois de passar pelas zonas infantojuvenil e materno-infantil (outra vez os hífens…), viu uma seta para a esquerda com “doenças óticas” e outra para a direita também com “doenças óticas”. Coisas de arquitetos ou arquitetas. Baralhado, virou para a direita. Foi visto por um oftalmologista quando precisava de um otorrino para o ouvido. Lá está: caiu o “p” ocular, que já tinha sido dispensado no auricular!”. O melhor é o míope ser surdo e vice-versa.
Por causa do facto transformado erradamente em fato, aumentou a gama dos fatos: há o fato tributário que assenta que nem uma luva. Há a união de fato mesmo que sem ele. Há o fato consumado que leva a que a Crimeia seja russa de fato. Os turistas ficaram encantados com tantos fatos no Verão.
Entretanto, foi desligado o interrutor do elevador porque precisava de uma interrupção para uma inspeção.
diretor do hotel, preocupado, fez uma reunião e ficou de elaborar uma ata que nem ata nem desata. É que o seu corretor ortográfico também não ajudou e por isso pensou pedir ajuda a um amigo corretor da Bolsa. Acontece que, mesmo com tato, não encontrou logo o contato dele. Quando o conseguiu, o corretor ficou zangado dizendo-lhe “eu cá não me pelo pelo pelo de quem para para desistir”. Houve uma grande deceção na secção e, perentoriamente, falou-se numa rutura. No fim, porém, feita a arimética das contas, tudo acabou num pato de afetos. 



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