sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Uma proposta risível


Foi caso lembrado pela minha irmã hoje, na nossa reunião das quintas, momentos preciosos de fofocas, nem sempre alegres, e notícias de um mundo em que a loucura parece cada vez mais assente, caso de mais um tiroteio de um rapaz na Florida, que matou e feriu até dizer chega, mas tinha mais balas na mochila, ao que parece, nenhuma a si destinada. Mas o caso de D. Manuel Clemente, que a minha irmã disse admirar, e agora espantar, fez-nos soltar exclamações de indignação, pelo risível de tais propostas de abstinência sexual nos recasados, que me fizeram recuar aos tempos sinistros da Concordata, que convidava os casais em segundas hipóteses de núpcias, a viverem “amancebados”, como diria Jô Soares, caso tivessem sido casados anteriormente pela Igreja.
Os textos que seguem são ambos eficazes, tal como um entre vários comentários, (alguns destes de apoio ao Patriarca da Igreja). São de Vicente Jorge Silva, mais veemente de indignação, referindo o estranho de uma proposta rigidamente retrógrada, contrariando pretensões anteriores do Cardeal, mais modernas e humanistas.
João Miguel Tavares, no seu habitual modo humorístico e responsável, igualmente condena tal intervenção, de uma hipocrisia e rigidez deselegantes e maquiavélicas. Tal o comentário severo de Fernando Jorge Silva.
Como diz JMT, desta vez o povo não engole a patranha melíflua e ferozmente provocadora.
OPINIÃO
Que aconteceu a D. Manuel Clemente?
Como é que nestes tempos de tentações integristas e intolerância religiosa, um homem como parecia ser D. Manuel Clemente se permite o pecado da inclemência e da falta de lucidez mais rudimentar?
VICENTE JORGE SILVA
PÚBLICO, 11 de Fevereiro de 2018
Começo por uma confissão: sou agnóstico, nunca casei pela Igreja e, por isso, não me sinto minimamente afectado no plano pessoal pela declaração de D. Manuel Clemente, cardeal patriarca de Lisboa, sobre a abstinência sexual que os casais em situação considerada irregular pelos padrões eclesiásticos deveriam manter. Mas como cidadão de um país de maioria confessionalmente católica (eu próprio fui baptizado, fiz a primeira comunhão e, durante a adolescência, fui crente convicto) não me considero alheio à intensa polémica suscitada pela posição do bispo de Lisboa, alvo de muitas críticas, por vezes acerbas, de membros do clero e personalidades de vários quadrantes. Não vou, por isso, insistir no mais óbvio: a declaração de D. Clemente, além de ostensivamente retrógrada, absurda, estúpida e ridícula, é de natureza hostil à orientação progressista de abertura e compaixão preconizada pelo actual Papa Francisco (hostilidade essa compartilhada pelos elementos mais reaccionários e empedernidos da Cúria Romana que se empenham em sabotar todos os passos de Francisco a favor da renovação da Igreja e da sua reconciliação com o espírito cristão original).
Há, no entanto, um aspecto que me deixa perplexo e em que talvez seja acompanhado por outras pessoas – crentes ou não: a trajectória de D. Manuel Clemente, pelo menos desde que foi bispo do Porto, parecia claramente contraditória com as posições que vem defendendo nos tempos mais recentes em matérias relacionadas com a moral e os costumes dos católicos praticantes. Salvo erro de observação típico de um leigo e laico como sou, D. Clemente inseria-se num longo percurso de "aggiornamento# da Igreja portuguesa – na sequência do Concílio Vaticano II e dos primeiros passos dados pelo visionário Papa João XXIII –, que se iniciou com D. António Ribeiro, sucessor do cardeal Cerejeira, na transição da ditadura para a democracia.
A velha Igreja arcaica e bafienta que se confundia com o salazarismo conheceu uma evolução notória, apesar das naturais resistências ultra-conservadoras, identificando-se progressivamente com o espírito da sociedade democrática em que passámos a viver. Ora, D. Clemente pareceu, de início, o representante mais qualificado, até pelos seus atributos intelectuais e académicos, para representar esse espírito, culminando assim o processo de "aggiornamento" do catolicismo português.

Foi, por isso, aliás, que um júri de personalidades identificadas com os valores culturais de uma sociedade aberta decidiu conceder-lhe, em 2009 – era D. Clemente ainda bispo do Porto –, uma das mais prestigiosas distinções nacionais: o Prémio Pessoa (a primeira vez, note-se, que foi atribuído a uma personalidade da Igreja). E o júri justificou a escolha de forma inequívoca, considerando o premiado "uma referência ética para a sociedade portuguesa no seu todo" e sublinhando que "a sua intervenção cívica tem-se destacado por uma postura humanística de defesa do diálogo e da tolerância, de combate à exclusão e da intervenção social da Igreja".
Como é que alguém com estas qualidades se transfigura no defensor da "vida em continência", essa formulação sumamente hipócrita com que agora D. Clemente pretende obrigar os casais "irregularmente" recasados a abdicar de ter relações sexuais? Como é que um intelectual e homem de cultura de méritos reconhecidos pode sofrer uma regressão tão aparatosa de raciocínio e sentido do real, convidando implicitamente os recalcitrantes a abandonarem uma Igreja fechada sobre si própria e divorciada da sociedade? Como é que nestes tempos de tentações integristas e intolerância religiosa – de que o radicalismo islamista é a expressão mais extrema –, um homem como parecia ser D. Manuel Clemente se permite o pecado da inclemência e da falta de lucidez mais rudimentar? É verdadeiramente um mistério.

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Um comentário:
  LUSO 11.02.2018
Para além das críticas há a realidade dos factos a contrapor-se ao disparate dos mitos e dos dogmas. Não acredito que as palavras de Clemente cheguem a influenciar quem quer que seja que viva estas condições de casados ou não casados uma segunda vez. O absurdo da eventual exigência não pode apagar a natureza própria do homem libertando-o do prazer sexual que a união dos afectos propicia. É contra natura, contra a moral prática, contra a vida, contra os próprios sentimentos que exigem dum casal a união do amor, quer psíquico quer físico, pois não pode haver um sem o outro. O dogma não ultrapassa a razão, só a loucura o pode fazer.

OPINIÃO
Porque insiste a Igreja em meter-se na nossa cama?
Há muita gente chocada? Louvado seja Deus – é sinal de que a sociedade considera inaceitável que se chame “caminho cristão” a uma vida em casal em que o sexo está proibido.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO 10 de Fevereiro de 2018
À pergunta do título um bom católico responderá: porque a Igreja deve meter-se em todo o lado. Está bem respondido. Para quem acredita em Cristo como “caminho, verdade e vida”, é natural que todas as dimensões da existência sejam interpretadas à luz dos seus ensinamentos — daquilo que um cristão diz na rua àquilo que faz na cama. O problema, claro está, é que quatro breves evangelhos foram manifestamente insuficientes para Jesus se pronunciar sobre todos os assuntos do mundo. Pior: enquanto andou a pregar pela Palestina manifestou um evidente desinteresse pelas questões da moral sexual interesse inversamente proporcional àquele que a Igreja Católica tem manifestado sobre o tema nos últimos dois mil anos. O peso do sexo na doutrina, no magistério e na visão do pecado é avassalador desde pelo menos Santo Agostinho.
Há quem diga, como o abominado teólogo alemão Eugen Drewermann, que esta obsessão está relacionada com o peso do celibato: o facto de o sexo estar vedado aos sacerdotes conduziu a Igreja Católica a uma obsessão com o colchão — e a uma enorme devoção à Virgem Maria, mãe imaculada, sem paralelo nas Igrejas protestantes. Mas seja qual for a origem do problema, a verdade é que nada tem prejudicado mais a mensagem da Igreja no último século do que a sua doutrina sexual. Questões perfeitamente acessórias, como o uso de contraceptivos, contaminaram debates fundamentais, como o do aborto e a devastadora tragédia da pedofilia, camuflada durante décadas pelo Vaticano, juntou ao absurdo da teoria a hipocrisia das piores práticas. Hoje em dia, sempre que a Igreja chega às primeiras páginas dos jornais, ou é por causa da popularidade do papa Francisco, ou é por causa do sexo.
Assim aconteceu, mais uma vez, com o convite à abstinência sexual dos casais recasados proposto por D. Manuel Clemente, de forma a que estes possam aceder aos sacramentos. O que é mais paradoxal nesta proposta é ela nascer de uma vontade enorme de abertura demonstrada pelo Papa. Francisco tem-se esforçado por aproximar as práticas da Igreja do espírito dos Evangelhos — se Cristo não veio para os justos, mas para os pecadores, como justificar que a Igreja recuse a confissão a quem falhou um casamento? Se a Eucaristia não é o lugar onde se reúnem os cristãos perfeitos, mas todos aqueles que procuram a misericórdia de Deus, como negar a comunhão a quem tenta reconstruir a vida?

A este desafio a Igreja tem respondido de forma burocrática, através de uma indústria da anulação de matrimónios (mais de 200 pedidos em Portugal só em 2016), que em muitos casos não é mais do que batota espiritual. Ora, não é aceitável responder à batota espiritual com um novo tipo de batota, agora carnal: os católicos recasados podem comungar e confessar-se desde que vivam em celibato. O padre Miguel Almeida alertou no Observador que a nota pastoral de D. Manuel Clemente é muito mais rica e complexa do que as notícias deram a entender. Com certeza — mas o problema é que está lá mesmo escrito que os padres devem “propor a vida em continência” a um casal recasado com um matrimónio anterior válido. O raciocínio é este: sem sexo não há adultério, logo, o casal estará em condições técnicas para poder comungar. Há muita gente chocada? Louvado seja Deus — é sinal de que a sociedade considera inaceitável que se chame “caminho cristão” a uma vida em casal em que o sexo está proibido. Às vezes, o mundo é mais fiel a Cristo do que a própria Igreja. 

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