sábado, 31 de março de 2018

A servidão é muito anterior



Umas são histórias velhas – João Miguel Tavares recorda-as como também as vivemos  - num sentimento de repulsa, Sócrates a correr na Praça Vermelha, (mas também em outras praças, perito que era em desporto de correr), o Kadhafi acampando de estadão, no forte de São Julião da Barra, mais tanto do que então se passou e que JMT refaz, para explicar a nossa não participação actual nos gestos nobres da outra Europa que apoia o Reino Unido na questão do envenenamento do diplomata russo … Julgo, todavia, que JMT está equivocado, a nossa aliança com a Rússia é bem anterior, na altura ainda se apelidava de URSS. Não íamos desfeiteá-la, pois nos foi muito útil, e ainda hoje a veneramos, como JMT conclui. De resto, temos mais que fazer, temos que limpar a mata, com o PM e imitar o PR, todos popularuchos a darem nas vistas do populacho, explica Alberto Gonçalves no seu artigo de hoje - «O regime que estamos a fazer» - no seu desprezo do costume. O defeito é nosso, que, não só permitimos a palhaçada como parecemos participar nela sempre, atentos, veneradores e obrigados, com a televisão transmitindo, reverente e cúmplice.
Não, homens de garra a desmascarar, como os dos textos que seguem, não impedem o descalabro da nossa trafulhice comportamental. “O populacho diverte-se na lama”, escreveu Cesário Verde. Todos somos populacho.

O regime que estamos a fazer
OBSERVADOR, 31/3/18
Uma “comunicação social” domesticada, uma resma de partidos vendidos à caridade alemã, a gratidão dos privilegiados e um presidente com fobia do confronto explicam parte das coisas. Não explicam todas
6 minutos e 47 segundos. Parece o título de um filme americano, mas é um filme português. Trata-se do tempo – contado pelo Miguel Santos Carrapatoso em reportagem neste jornal e incluindo o pedacinho em que a maquineta encravou – que o dr. Costa demorou a limpar a Serra de São Mamede e a dar o exemplo em matéria de prevenção de fogos florestais.
De agora em diante, o cidadão consciencioso já não tem desculpa para desleixar o matagal. Basta acordar, vestir o casaco verde mais impecável que a alta costura líbia conseguiu conceber, apanhar um helicóptero patrocinado pelo contribuinte, rumar a um bosque à escolha, enfiar caneleiras, viseira, protector dos ouvidos e capacete, pegar na roçadora, garantir que as televisões filmam o exercício, fingir que decepa dois tufos de musgo, remover os adereços, regressar ao helicóptero e a casa e aguardar o justo reconhecimento popular por tão destemida saga em prol do bem comum. Não custa nada: ao dr. Costa não custou um cêntimo.
Os cínicos, leia-se a “direita inorgânica do Observador” (cito Sua Excelência, o primeiro-ministro), reduzirão a proeza a um gesto de propaganda reles, assaz propenso a burlar as massas e pouco propenso a burlar as matas. Ou seja, para esses sujeitos de má-fé, viúvos de Pedro Passos Coelho e lacaios do “neoliberalismo”, logo que volte o calor voltará a arder o que sobrou do ano passado (e que, feliz ou infelizmente, não foi muito). O próprio dr. Costa admite a hipótese.
O que ele não admite, para descanso da população ansiosa, é demitir-se em consequência de eventuais calamidades. Isso é o que a “direita inorgânica” queria (a direita orgânica está bem assim, obrigado): mal se reiniciem os incêndios, o dr. Costa tomará a atitude que o seu cargo exige e, aposto, partirá para uma praia espanhola, a coordenar remotamente as operações de propaganda. De seguida, fará um discurso condoído, promessas de medidas inadiáveis, apelos à participação da “comunidade” e a conscrição forçada ou voluntária de cabras sapadoras. Daqui a um ano, nos intervalos do Benfica, dedicará outros 6 minutos e 47 segundos ao arvoredo, com o espectacular casaco verde, a permanente gargalhada de respeito pelas vítimas e o jornalismo patriótico a tiracolo. O dr. Costa é um líder autêntico, um farol cuja luz atrai tudo para os calhaus, incluindo os ditos.
Agora a sério, em que espécie de país é que semelhante exibição de desprezo pela inteligência alheia passaria impune e até – em casos de sabujice terminal – elogiada? Na Coreia do Norte, de certeza. E talvez naqueles desterros onde o sociólogo Boaventura S. S. passeia trajes indígenas. De resto, se calhar por não conhecer a realidade da Jordânia e do Uganda, falham-me os termos de comparação. Claro que uma “comunicação social” (desculpem o jargão) domesticada, uma resma de partidos vendidos à caridade alemã, a gratidão dos privilegiados e um presidente com fobia do confronto explicam parte das coisas. Duvido que expliquem as coisas todas.
O à-vontade com que os governantes, ou o bando que desempenha o papel, atropelam a decência não é normal sob qualquer perspectiva. Nem eles antecipariam tanta facilidade, donde o evidente gozo com que a usufruem. De facto, fazem o que lhes apetece e, o que agrava só ligeiramente a situação, sabem-se livres de fazer o que lhes apetece. E sabem que nenhum castigo lhes advirá. Podem subir os impostos a níveis inéditos e são aclamados por “virar a página” da “austeridade”. Podem aumentar os gastos do Estado para contentar clientelas e são louvados pelo rigor. Podem estrafegar a saúde e o que calha para controlar o défice e são beatificados a pretexto da “consciência social” (além de apreciados pelos “utentes” que sofrem a manha). Podem baixar o défice de 2,8% para 3% e são glorificados pelo “recorde” da “história democrática” (porque o dinheiro “injectado” na CGD aparentemente não conta). Podem banhar-se nas ignomínias da bola. Podem encenar a comédia de Tancos ou, em actos sucessivos, a tragédia de Pedrógão Grande.
Em suma, podem tudo. E poder tudo, sem escrutínio ou receio, dúvida ou sanção, é um sintoma, razoavelmente inequívoco, de que o regime não se recomenda. A possibilidade, crescentemente rara, de se escrever isto prova que ainda não estamos em ditadura. Porém, já não estamos exactamente em democracia. Entre dois pontos há sempre um processo, brusco ou suave, manso ou violento, sombrio ou cómico. Eis o lugar em que nos encontramos, que por acaso coincide com o que escolhemos e, lá vai redundância, com o que merecem4os. Boa Páscoa, para quem acredita em ressurreições.
OPINIÃO
Portugal e Rússia: a “geringonça” tem as costas largas
Este, caros leitores, é o mais recente património diplomático do PS: a promoção, sem escrúpulos nem vergonha, de tiranos e ditadores.
29 de Março de 2018
A tese que começa a vingar na opinião pública é esta: o Governo português até estava com vontade de expulsar meia-dúzia de diplomatas russos na sequência do envenenamento de Sergei Skripal, alinhando com os seus aliados da União Europeia e da NATO — só que, infelizmente, os equilíbrios sensíveis dentro da “geringonça” não lhe permitiram tomar tal decisão. Segundo esta teoria, o mau da fita não seria o PS, mas o PCP e o seu amor mal resolvido com a Rússia de Putin. Esta é uma versão particularmente generosa para o PS, que ignora com dolo aquilo que foi a linha da diplomacia portuguesa da última vez que os socialistas foram governo. Sim, lamento, vou ter de voltar a falar de José Sócrates.
E não, não é nenhum prazer fetichista — é apenas uma necessidade imperiosa de recordar factos que não podem ser esquecidos, e de resistir a que o socratismo se transforme no grande impensado da democracia portuguesa, um conveniente apagão na história do PS, como se ele tivesse existido no limbo, sem estrutura, sem cúmplices, sem fiéis, sem partido. Portanto, vale a pena recuar até o ano da grande glória socrática: 2007, com Portugal na presidência do Conselho da União Europeia, seis meses de sucesso diplomático que culminaram na assinatura do Tratado de Lisboa, a 13 de Dezembro, no Mosteiro dos Jerónimos — momento selado com o famoso “porreiro, pá!”, dito por Sócrates a Durão Barroso.
Se todos se lembram do tour de force em torno do tratado, poucos se recordarão do que foi o rodopio diplomático da segunda metade de 2007, e quais os países que o governo de José Sócrates e de Augusto Santos Silva (então ministro dos Assuntos Parlamentares) promoveu enquanto esteve à frente da União Europeia. Apontem, que vale a pena. A 4 de Julho de 2007, realizou-se a primeira Cimeira Empresarial UE-Brasil, com a presença de Sócrates, Barroso e Lula da Silva. A 25 de Outubro, realizou-se a Cimeira UE-Rússia, com Vladimir Putin a passar por Mafra e Sócrates a declarar: “Nada contribuirá mais para a paz no mundo do que uma relação estável e duradoura entre União Europeia e Rússia.” Os resultados são conhecidos.
Meses antes, em Maio, Sócrates já tinha viajado até à Rússia para “descongelar” relações, com Putin a convidá-lo a ficar no Kremlin (uma honra) e a fechar só para si a movimentadíssima Praça Vermelha durante uma hora, de forma a poder praticar o seu jogging (a sério). As autoridades portuguesas garantiram que encerrar a praça foi “da exclusiva responsabilidade das autoridades russas”. Sócrates retribuiu com singelas declarações sobre direitos humanos: “Ninguém deve dar lições a ninguém: nem a Europa à Rússia, nem a Rússia à Europa”, até porque “as democracias são sempre obras inacabadas”. Que bonito.
Dentro dessa mesma filosofia, a 8 e 9 de Dezembro de 2007, quatro dias antes da assinatura do Tratado de Lisboa, Sócrates promoveu a inesquecível Cimeira UE-África, aquela em que a vinda do encantador Robert Mugabe deu origem a veementes protestos do Reino Unido (que acabou por ficar de fora da cimeira — os ingleses estão habituados a desilusões) e com o ainda vivíssimo coronel Kadhafi a montar acampamento berbere no Forte de São Julião da Barra. Este, caros leitores, é o mais recente património diplomático do Partido Socialista: a promoção, sem escrúpulos nem vergonha, de tiranos e ditadores. Na altura, o PS tinha maioria absoluta. Será que a culpa também foi do PCP? Se o país está esquecido, eu não estou.
Jornalista


Domingo de Páscoa



Muda a Páscoa com a Lua
Muda a data, sempre incerta,
Da Ressurreição de Cristo,
Embora calhe ao domingo
O que é pura anomalia,
Mas o que conta é o simbolismo
E as férias das nossas metas.
Domingo primeiro, após
A lua cheia seguinte
À entrada na primavera
No nosso Norte lunático
Diz, didáctico, Nuno Crato.
Uma data memorável,
Num calendário mutável,
Bissexto de vez em quando
Também por conta da Lua
Que tanta influência tem
Sobre os destinos da Terra
Com o mar e as marés
Aos altos e baixos, a lembrar
A Humanidade, afinal,
Ora bem e ora mal,
Embora alguns não mudem
No seu estatuto nunca,
Os de cima sempre em cima
Os de baixo sempre em baixo.
Domingo primeiro, após
A lua cheia seguinte
À entrada na primavera:
Dia de Páscoa e doçura,
Que é o melhor da vida,
E este ano foi calhar
No primeiro dia de Abril
Que se chama de mentira
A condizer.

Porque está a Páscoa sempre a mudar?
OBSERVADOR, 28/3/2018
A resposta é simples: porque não há um número inteiro de dias nos meses lunares. Por isso a Páscoa é marcada como o primeiro domingo após a primeira lua cheia, durante ou após o equinócio da primavera
A culpa é da Lua.
Pois é, é o diabo da Lua, que não se conforma com os meses nem com a órbita da Terra, e que demora um pouco mais de 29 dias e meio a passar de lua cheia a lua cheia. Na realidade, pelos cálculos atuais, demora uma média de 29,530587981 dias, ou seja, 29 dias 12 horas 44 minutos e 2,8016 segundos. Que número! E não é ainda um número exato.
Está aqui uma fonte de problemas para os nossos calendários – a outra é a inexistência de um número inteiro de dias num ano solar. Conclusão: não há um número inteiro de dias nos meses lunares, tal como não há um número inteiro de meses lunares num ano. Os meses legais tiveram de se adaptar e ter um número de dias variável.
Ora a Páscoa foi primeiro marcada seguindo o calendário judeu, que é um calendário lunissolar, respeitando as lunações. Seguia o Pessach, a Páscoa judaica. Pelo século III, os cristãos começaram a tentar outra datação, insatisfeitos com a desordem do calendário judaico, que permitia que a Páscoa se celebrasse antes do equinócio da Primavera. Dionísio, bispo de Alexandria e outras autoridades eclesiásticas verificaram que isso contradizia a regra então assumida, que a Páscoa seria celebrada num domingo, depois de uma lua cheia e depois do equinócio. Era o que admitia sobre a data da ressurreição de Cristo.
Hoje, a datação da Páscoa segue um processo rigoroso. Está baseada no calendário Gregoriano, estabelecido em 1582. É marcada como o primeiro domingo após a primeira lua cheia, durante ou após o equinócio da primaveraCristóvão Clávio (1537-1612), matemático alemão que estudou em Coimbra e foi figura central na construção do novo calendário, estabeleceu tabelas que permitem calcular a data da Páscoa e construiu, com o italiano Aloísio Lílio (também chamado Luigi Giglio, ou Aloysius Lilius) um algoritmo para o cálculo dessas datas. Vários matemáticos construíram outros algoritmos de cálculo da Páscoa. O mais célebre deles deve ser o de Carl Friedrich Gauss (1777-1855).
Leu bem, leitor? É o primeiro domingo, após a primeira lua cheia, durante ou após o equinócio da primavera.
Como se isto não fosse já complexo, os acontecimentos podem não se registar nos mesmos dias legais em diferentes partes do globo. Este equinócio, por exemplo, registou-se na terça-feira 20 pelas 16h15 em Lisboa. Na mesma altura, eram 5h15 da madrugada de quarta-feira 21 na Nova Zelândia. Dois dias diferentes! A solução é a que se imagina: tudo está referido a Roma, ou melhor, ao Vaticano.
Nos dias de hoje, tudo isto é uma curiosidade: festejamos a Páscoa na data marcada no calendário. Mas houve tempos em que não era simples conhecer o equinócio, saber o dia do ano e fazer os cálculos. Cidades distantes e localidades isoladas deveriam festejar a Páscoa exatamente no mesmo dia. Por isso, a Páscoa foi um tremendo motor de desenvolvimento da astronomia. Construíram-se relógios e instrumentos solares nas igrejas, criaram-se as célebres meridianas. Procuraram-se processos de marcar os solstícios e equinócios, desenvolveram-se métodos astronómicos para caracterizar as datas e medir o tempo, estudaram-se as regularidades e as anomalias dos movimentos celestes. Os cristãos deveriam todos festejar a Páscoa na mesma data. E na data certa.
Boa Páscoa!


sexta-feira, 30 de março de 2018

Bons escritos



São dois artigos saídos no Público de 8 de Março, sobre o mundo europeu, sendo que Portugal faz parte da Europa, apesar da descrença de alguns mais viajados, mas decididamente lar de repouso para os que se sentem cansados do tropel civilizacional exterior. O de Francisco Assis informa sobre o domínio das paixões na condução dos destinos das nações, num actual panorama de orientação política, ao que parece, “pós-ideológica”, os acontecimentos de nível global trazendo catástrofe e ruído, tantas vezes de protesto, justificativo da quebra de ideologia nas questões eleitoralistas, manobradas antes por interesses egoístas, excepto os dos que se mantêm fiéis a princípios. O de Diogo Queiroz de Andrade, Quixote em defesa da Mulher – tratou-se do Dia Mundial da Mulher, dia de festejo, pois, e de pieguice – vem à liça defender a tal paridade de direitos, como é de bom tom chamar a atenção para esses, pelo menos no dia específico da sua mundialidade, por cá.
Mas as violações de direitos que vão pelo mundo irão continuar, tão graves, de que constantemente vamos tendo conhecimento, e por vezes assistindo. Se não vivendo. Desde que o mundo é mundo. E até mesmo o requinte sádico tem progredido, graças ao avanço tecnológico, somos constantemente bombardeados por informações de pesadelo.
É por isso que a ideologia já nem conta tanto, “sauve qui peut”…

OPINIÃO
O tempo da ansiedade democrática
A Europa é o continente onde se vive melhor sob todos os pontos de vista. Apesar disso, um profundo mal-estar percorre a generalidade dos países europeus.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 8 de Março de 2018
1. Raymond Aron dizia que aqueles que acreditavam que os povos valorizam mais os seus interesses do que as suas paixões revelavam nada compreender da história do século XX. O que se vai passando um pouco por essa Europa fora neste início do século XXI parece confirmar a tese deste filósofo e sociólogo que se foi progressivamente impondo como uma das consciências mais lúcidas do seu tempo. Aron, crítico precoce do nazismo e opositor intrépido do totalitarismo comunista, vítima da sobranceira hegemonia marxista no panorama intelectual francês durante largos anos, compreendeu como ninguém até que ponto a paixão ideológica conduz à cegueira absoluta.
Numa época que se pretende pós-ideológica, como é o caso do tempo presente, poder-se-ia ser levado a admitir a diluição da dimensão passional no processo de formação da decisão política. Puro engano. Desamarradas das grandes construções ideológicas que caracterizaram o século anterior, as paixões ressurgem no debate político em todo o seu esplendor. Têm agora outras características. Já não se inserem em grandes relatos históricos, nem tão pouco se projectam em representações de natureza utópica. São paixões de outra ordem, convenientemente dessacralizadas, condizentes com um contexto dominado por grandes fluxos de ansiedade individual e colectiva, pela preponderância da noção de insegurança num sentido muito lato e pelo deterioramento dos mecanismos tradicionais de integração política, seja no plano prático, seja na esfera do simbólico.
A Europa é o continente onde se vive melhor sob todos os pontos de vista. Apesar disso, um profundo mal-estar percorre a generalidade dos países europeus. Isso tem-se vindo a reflectir nos resultados eleitorais verificados nos últimos anos em quase todo o lado. Eleição após eleição constatamos o crescimento de forças políticas de orientação extremista, observamos o regresso de discursos nacionalistas de natureza xenófoba e assistimos à emergência de projectos dificilmente compreensíveis, os quais por alguma preguiça intelectual nos apressamos a rotular de populistas. Alguns espíritos dogmáticos propõem explicações simplistas para tudo isto: para o neo-marxismo básico tudo radica no domínio das desigualdades económicas inevitavelmente geradas pelo funcionamento do sistema capitalista; para a nova direita nacionalista, a génese de todos os problemas está no projecto político de integração europeia. Uns e outros incorrem, a meu ver, num erro básico: recusam-se a compreender a verdadeira dimensão das mudanças em curso, que têm particular relevo nas sociedades mais evoluídas e apontam para uma profunda transformação no próprio plano antropológico.
Atentemos apenas em três grandes alterações que marcam o nosso tempo: a progressiva aplicação dos processos de automação a todas as áreas da vida, o surgimento da inteligência artificial e a evolução do próprio conceito de trabalho no contexto de um mundo globalizado. É absurdo pensar que poderemos responder a estes novos temas recorrendo ao receituário ideológico concebido no século XIX, no contexto de sociedades radicalmente distintas das actuais. O desajustamento entre estas novas exigências da realidade e os modelos e categorias clássicos de resposta política às mesmas está na origem da situação profundamente confusa que nos inquieta e nos inunda de ansiedade.
Olhemos para o caso italiano. Os partidos de centro-esquerda e de centro-direita sofreram uma derrota histórica. Avançaram eleitoralmente os ultranacionalistas de propensão racista e um partido enigmático que apela à democracia directa de base digital, denuncia os supostos privilégios de uma casta político-económica, contesta as medidas de contenção orçamental e advoga uma política dura em relação ao fenómeno da imigração e dos refugiados. Como ler estes resultados senão com o receio de uma profunda degradação da vida cívica num país que continua a ser um dos principais centros de produção do pensamento político europeu e onde nos últimos anos o consumo interno aumentou substancialmente e a maioria das pessoas não revela uma excessiva apreensão com as suas condições materiais de existência? Haverá com certeza bolsas de pobreza, subsiste um elevado número de desemprego, em especial nos sectores mais jovens, e o crescimento económico não é dos mais famosos, mas a Itália está muito longe de ser um país dominado por profundas carências económicas.
O que poderá justificar então estes resultados? Justamente a ideia de que as paixões muitas vezes prevalecem sobre os interesses. Os grandes partidos tradicionais burocratizaram-se e abriram espaço a projectos assentes numa perspectiva de maior participação política, ainda que muitas vezes ilusória. O movimento Cinco Estrelas é nesse aspecto paradigmático. Formado por um cómico politicamente inconsistente e por um homem ligado às novas tecnologias, ideologicamente neutral, abriu as portas à participação pública de gente muito diversa, nalguns casos de assinalável qualidade moral, intelectual e política. Alguns dos deputados mais interessantes que encontrei no Parlamento Europeu são jovens representantes deste novel partido político italiano. Abominam a corrupção e o clientelismo, defendem causas justas e agem com verdadeiro sentido de serviço público. Isso levou-me a perceber que há uma grande diferença entre o designado populismo e o extremismo ideológico, e que nada ganhamos em ostracizar radicalmente novos movimentos políticos que são sinais dos tempos conturbados que atravessamos. Significa tal coisa que devemos abdicar de defender um núcleo fundamental de princípios e valores inerentes ao modelo da democracia liberal? Jamais. O que devemos é tentar compreender a presente instabilidade do espaço europeu à luz dessa mudança radical que, como referi acima, supera em muito as categorias politicas e económicas, remetendo para o domínio do antropológico. Isso obriga-nos a alguma humildade, quer no plano teórico, quer no plano político. Essa é, contudo, a obrigação de quem professa genuínos ideais democráticos.
2. António Costa e Rui Rio encontraram-se e a reunião decorreu, ao que consta, num clima ameno e muito civilizado. É uma boa notícia para o país. Espero que nessa reunião tenham debatido os temas europeus. A meu ver é essencial que os dois principais partidos políticos portugueses se entendam em torno dos projectos de reformulação da União Europeia presentemente em discussão.

EDITORIAL
Não, isto não é normal
Os direitos das mulheres são direitos humanos. Esta frase é tão simples e tão óbvia e, no entanto, ainda há quem queira fazer de conta que não a percebe.
DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE
PÚBLICO, 8 de Março de 2018
Os direitos das mulheres são direitos humanos. Esta frase é tão simples e tão óbvia e, no entanto, ainda há quem queira fazer de conta que não a percebe. Lutar pelos direitos das mulheres, ser feminista, é defender a dignidade da nossa sociedade — e não é normal que não seja assim.
Só não vê quem não quer: as notícias que temos hoje mostram outra vez quão escandalosa ainda é a diferença de tratamento das mulheres. Saber que em Portugal a crise foi aproveitada para aumentar a desigualdade nos salários em função do género ou que somos recordistas na diferença de pagamento a mulheres com mais de 65 anos deveria envergonhar-nos a todos, a começar pelos homens que mandam. Porque são sempre homens que mandam e isso é parte importante do problema – não porque são homens, mas porque são homens que não entendem o feminismo como uma causa de todos os seres humanos.
A custo, lá se vai conseguindo fazer passar legislação que promove a igualdade. Falta o resto: falta mudar as mentalidades, algo que só se conseguirá com a educação para a cidadania. E se há algo que justifica que ainda hoje exista um dia da mulher, é precisamente o risco de que esses direitos adquiridos nos últimos anos ainda sejam revertidos – porque ainda vivemos numa sociedade em que se acha normal e racional remeter as mulheres a um papel menor.
Mas não, não é normal. Não é normal que se aceite que as mulheres recebam menos. Não é normal que se acolha como natural a ausência de mulheres no topo das empresas do PSI 20. Não é normal que se encolham os ombros com as vergonhosas estatísticas de violência doméstica que temos para mostrar. Não é normal que se aceitem as alarvidades de algumas sentenças que saem dos tribunais deste país.
Quem pactua com este estado de coisas não é humanista. E em Portugal, infelizmente, ainda há algumas pessoas assim. Este problema tem pouco a ver com a direita e com a esquerda e muito a ver com a postura de cada um face à sociedade. E passa por todos nós, cidadãos, sermos muito mais exigentes com os nossos representantes sociais. Temos de aumentar a nossa cultura de exigência face aos servidores públicos, de forma a melhorar o ar que respiramos em democracia. Seremos todos melhores numa sociedade mais justa, mais igual, mais paritária. Porquê? Voltamos ao início: porque os direitos das mulheres são direitos humanos.


“Tristes palavras ao vento” ou "Babel e Sião"



O artigo de Nuno Pacheco, de 8/3, «Surdos dos olhos, cegos dos ouvidos», condenatório, naturalmente, do AO de 1990, justo que é, mereceu comentários – de um apoiante, como lamento irónico, concordante com o discurso de ironia severa de Nuno Pacheco; de um opositor, como ataque pretensioso e perverso; de um brasileiro, como justificação serena, mas dentro dos particularismos de grafia e construção frásica que em português constituem naturalmente erro de palmatória: “Contudo, a pergunta que deve-se fazer: antes também não haviam exceções críticas?”, além do acento circunflexo em palavra esdrúxula, em sílaba precedida de consoante nasal: “fenômeno”, “sinônimo”, “polêmicas.
Mas são os comentários pedantes de António Marques que merecem natural repulsa, pela ousadia de referir o caos babélico como origem do seu brinquedo linguístico, sem ter em conta os processos de formação e evolução linguísticos que mergulham, entre outros “poços” de colheita etimológica, em línguas clássicas, cujas raízes se perdem num tronco comum indo-europeu. Pretender fazer floreados de homonímia por gosto pessoal de confusão, não passa de argumentação de retórica barata, que provavelmente se propagará a um suposto cepticismo referente às origens e evolução dos mundos e de tudo o que foi criado, com descrédito para os próprios genes, em que AM provavelmente não confia.
O certo é que, tanta é a corrupção do nosso meio ambiente, que não merecemos, talvez, debruçar-nos sobre esses fenómenos de etimologia e evolução linguística, no caos geral, que os brincalhões ignorantes e desamorosos se atrevem a proclamar aos quatro ventos, a dar-se ares, luxuosamente democratas, também no abandalhamento linguístico.
 Mas acabo de escutar a informação de uma locutora televisiva, nos Estados Unidos da América, falando no “expião” russo que foi envenenado mas recuperou, deixando de “expiar” o seu pecado de "espionagem" e respirámos de alívio, pois não desejamos mal ao senhor nem à sua filha que pagou sem culpa, expiando os erros do pai e criando mais um homónimo para o divertimento de António Marques, conquanto o pudéssemos apelidar antes, de parónimo, para gozo maior do admirador babélico.

OPINIÃO
Surdos dos olhos, cegos dos ouvidos
Chamaram ao livro O Nervo Ótico. Ou seja: a senhora vê com os olhos mas regista o que vê com um “nervo” auditivo.
PÚBLICO, 8 de Março de 2018
A escritora argentina María Gaínza (nascida em Buenos Aires, em 1975) estreou-se na novela com uma obra a que deu o nome de El Nervio Óptico. O livro, lançado em 2014, não teve ainda edição no Brasil; mas, se a tivesse, chamar-se-ia O Nervo Óptico. Editado em Portugal, pela D. Quixote, puseram na capa a fotografia de uma sala de museu com uma senhora a olhar para  em uma parede com quadros e este título em letras garrafais: O Nervo Ótico. Ou seja: a senhora vê com os olhos mas, pelo título, regista o que vê com um “nervo” auditivo. Consulte-se o dicionário Priberam brasileiro, numa edição recente, e o que lá vem é isto: “ótico adj. 1. Relativo ou pertencente ao ouvido. 2. Diz-se do medicamento que se emprega contra doenças do ouvido.” Nenhuma dúvida. E com P? “óptico [ót] adj. 1. Relativo à óptica ou à visão. = OCULAR, VISUAL (…).” [Portugal] Grafia de ótico antes do Acordo Ortográfico de 1990.” Para os brasileiros parece não haver aqui dúvidas quanto à escrita ou quanto à fala. Repare-se que escrevem “óptico” e, à frente, indicam que se deve ler “ót”, “ótico”, não “ópt”, “óptico”. Ora, se bem se lembram, um dos mais fortes argumentos para banir as ditas “consoantes mudas” em Portugal era que não se liam; e “o que não se lê não se escreve.” Verdade? Mentira. O “óptico” brasileiro prova-o de forma categórica: não lêem o P mas escrevem-no. Porque entendem que não se pode ser surdo dos olhos e cego dos ouvidos.
Ou pode? Em Portugal pode. Com o acordo ortográfico (AO), a palavra é a mesma, ouvidos e olhos tudo misturado, numa lamentável miscelânea pós-cubista que nada deve à arte. “Óptico” ou “ótico”? Vai-se aos vocabulários oficiais do acordismo (os do IILP) e lá está: nos vocabulários nacionais de Portugal, Cabo Verde, Timor-Leste e Moçambique (até neste, que nem ratificou o AO), ao inserirmos a palavra “óptica” recebemos por resposta: “A forma óptica não se encontra atestada neste vocabulário”. Mas está no do Brasil; neste e no chamado “vocabulário comum”, que mistura tudo sem critério só para fingir que há unificação na escrita. Há alguma vantagem neste inominável disparate, que ainda por cima foi inventado aqui, para consumo interno e para imposição colonial a terceiros pelas áfricas e orientes? Nenhuma vantagem. Um exemplo: os ingleses pronunciam “no” e “know” da mesma exacta maneira, tal como “night” e “knight”, ou “right” e “wright”. Imaginam alguém a sugerir que tais palavras passem a ser escritas da mesma forma porque têm o mesmíssimo som? Não, loucos desses só existem por cá. O que se passa com “óptico” e “ótico”, ou “acto” e “ato” é similar: lêem-se da mesma maneira mas são palavras diferentes, com raízes diferentes e sentidos diferentes. Custa muito entender coisa tão simples?
Hoje é Dia da Mulher e provavelmente esta crónica devia falar de outras coisas. Mas já que o livro aqui citado (devido ao assassinato do seu título) foi escrito por uma mulher, juntemos-lhe textos recentes de duas escritoras, ambos a propósito. No Expresso de 3 de Março, numa crónica intitulada “Ninguém para o AO (lê-se à vontade do freguês)”, escreveu Ana Cristina Leonardo: “Continuamos a não conseguir distinguir ‘óptica’ (vista) de ‘ótica’ (audição), palavras que se tornaram homónimas em nome da uniformização da língua, mas só em Portugal, já que no Brasil a distinção se mantém e também em nome da uniformização da língua. Confused? Não, que ideia, é tudo claro como água! No dia anterior, 2 de Março, já Alexandra Lucas Coelho escrevera, no Sapo24, um texto revoltado e notável, intitulado “Este país partido ao meio pela própria língua”. Um pequeno excerto: “Supostamente este acordo era para aproximar os países de língua portuguesa. Mas o que separa os países de língua portuguesa são muitas outras coisas, muitas delas de facto políticas, muitas delas de facto incómodas, muitas delas de facto sistematicamente ignoradas, ou menosprezadas, enquanto um acordo totalmente desnecessário, supostamente a bem da lusofonia, nos mói o juízo há 28 anos.”
Diz-se que água mole em pedra dura… O resto já sabem. Mas não há água, mole ou dura, que lave tais misérias e nos deixe definitivamente em paz. Só mesmo uma enorme vaga, temível como as da Nazaré, será capaz de arredar tanto disparate do nosso quotidiano, deixando a língua viver e respirar como lhe compete. Tardará muito? Talvez não.

COMENTÁRIOS
11.03.2018
“Tardará muito? Talvez não. “Será como a esperança de que D. Sebastião regresse, um dia, e apareça numa manhã de nevoeiro?...
  Mem Martins 08.03.2018
O exemplo não é grande coisa. Imaginemos que há uns anos, antes do AO90, alguém publicava o título 'O nervo ótico'. Um leitor atento diria que havia um erro ortográfico: não existia, na altura, nenhum nervo ótico. O que é que mudou? Hoje não existe em Portugal nenhum 'nervo óptico'. Tão simples quanto isso. Mas, mesmo que existissem esses dois nervos, a nossa habilidade com homónimas sentir-se-ia em casa. No dia internacional da mulher era interessante focar a desigualdade e não o empertigamento. Declaração de interesses: sou meio surdo, ao jeito do VJS, mas não fiquei ofendido.
Coimbra 08.03.2018
Não existe nervo ótico? Essa é boa. Como é que a informação captada pelos ouvidos chega ao cérebro? Pode chamar-lhe nervo auditivo ou acústico. Mas se quiser chamar-lhe nervo ótico não estará errado, pois é de um nervo ótico que se trata. Estará apenas confuso — graças ao AO90. Sermos habilidosos com homónimas não é desculpa para que se inventem mais.
Mem Martins 08.03.2018
Caro Rui Valente, confesso que gosto de homónimas. Não sei se há alguma palavra que não o seja (?), mesmo fora do contexto da brejeirice. Desde que Deus perdeu o controlo da situação - e a compostura - em Babel, temos essa liberdade de nos entretermos com as palavras confundindo referências e referentes, codificando para descodificar, mentindo para dizer a verdade. Fora isso é muito pouco o que fazemos de interessante na vida. Só mesmo uma inteligência artificial em silício (não em cilício) poderá fixar uma angustiante língua eterna que elimine de vez as homónimas e o 'bondoso caos'(Lídia Jorge). Mas amanhã não há de ser a véspera desse dia. Sem homónimas qual era o Rio que ficava?
  Anti Comunistas da Extrema-Direita 08.03.2018
"As palavras óptica, óptico, ótica, ótico estão corretas e existem na língua portuguesa. São palavras polêmicas, sendo necessária muita atenção em sua utilização. Privilegia-se o uso das palavras óptica e óptico para fenômenos relacionados com a visão e o uso das palavras ótica e ótico para fenômenos relacionados com a audição. Contudo, as palavras ótica e ótico são muito utilizadas como sinônimas de óptica e óptico.
  Anti Comunistas da Extrema-Direita 08.03.2018
"Além disso, segundo o Novo Acordo Ortográfico, que entrou em vigor em janeiro de 2009, as consoantes c e p que não se leem nas palavras deverão ser abolidas. Apenas as consoantes que se leem deverão ser mantidas. Assim, ocorre a existência de palavras com duas grafias, devido às divergências de articulação entre os falantes. Escrevendo-se óptica ou óptico, o p deveria ser pronunciado, o que raramente acontece, não sendo feita distinção na pronúncia nas mesmas. "
 Anti Comunistas da Extrema-Direita08.03.2018
Contudo, a pergunta que deve-se fazer: antes também não haviam exceções críticas?



quinta-feira, 29 de março de 2018

O imprescindível controlo



Os dois textos que seguem, de João Miguel Tavares, mais uma vez demonstram uma capacidade de reflexão pouco comum, apesar dos comentários daqueles em cujo espírito não penetram argumentos – provavelmente nenhuns nunca – mas sobretudo se pertencem a alguém não alinhado politicamente com esses, pese embora o pretensiosismo dessa justificação.
 O primeiro artigo é sobre alguém que foi um representante-mor da Justiça no seu país e se revelou apenas triste espécime representante de uma nação, ultimamente e cada vez mais mergulhada no dolo e na insanidade próprias da nossa pobre mediania que, naturalmente, esse tal contribuiu para acentuar. O segundo artigo, aceitando os malefícios do Facebook na manipulação das massas, pretende salientar a responsabilidade dos que o utilizam, e igualmente, como jovem moderno que JMT é, revelar outras projecções apensas a esse sistema, através do confronto com os outros media no seu começo - radio e televisão. Na realidade, em tudo o que se cria há facetas positivas e negativas, a questão está em saber controlar ou moderar, e o mesmo se passa com os remédios.
 Transcrevo um comentário apenso ao segundo artigo, que me parece completar e desenvolver o raciocínio de JMT, embora conteste o paralelismo do Facebook com os media, por aquele dar voz a manifestações do egocentrismo desordeiro e pouco educado, contrariamente aos media, com os seus projectos específicos de orientação e informação.

OPINIÃO
Foi isto um procurador-geral da República
A entrevista a Pinto Monteiro mostra como uma pessoa com o seu perfil pode ser uma desgraça à frente do Ministério Público, e demonstra a importância fulcral de reconduzir Joana Marques Vidal no seu cargo.
PÚBLICO, 6 de Março de 2018
A entrevista que Fernando Pinto Monteiro concedeu ao PÚBLICO e à Rádio Renascença na semana passada é a mais reveladora de toda a sua carreira. Ela demonstra, ainda que de forma involuntária, as razões por que Pinto Monteiro assumiu o papel de guarda-costas oficioso de José Sócrates entre 2006 e 2011, e por que se afundaram no Ministério Público todas as investigações que envolveram o então primeiro-ministro.
Sobre as mentiras de Pinto Monteiro nessa entrevista já Luís Rosa escreveu um excelente texto no Observador (O legado de Pinto Monteiro). E sobre tantos aspectos ainda por esclarecer da sua nomeação – como a relação de proximidade de José Sócrates com o seu irmão, o professor de Direito de Coimbra António Pinto Monteiro, ou a possibilidade de ter sido Proença de Carvalho a sugerir o seu nome – já Vítor Rainho escreveu um bom artigo no Sol (Um procurador que gosta de José Sócrates). Eu prefiro chamar a atenção para dois aspectos que esses textos não desenvolvem: os seus tristes comentários sobre o processo Face Oculta; e as barbaridades que disse como se fossem banalidades, tão sintomáticas do seu carácter.
Quanto às famosas destruições das escutas do processo Face Oculta, o ex-Procrador-geral da República admite na entrevista que delas constam a venda da TVI, pelo que se pressupõe que Sócrates foi mesmo apanhado a discutir os seus detalhes. Pinto Monteiro desvaloriza esse facto com o rigor habitual – “a estação de televisão de que está a falar já foi vendida e revendida 30 vezes!” –, e utilizando um argumento decisivo: “Aquilo não tem nada a ver com crime de atentado ao Estado de Direito! Sabe o que é um atentado ao Estado de Direito? Dou-lhe um exemplo: é um Governo acabar com o Tribunal Constitucional.”
Eis um exemplo extraordinário, que entronca numa interpretação que Freitas do Amaral já tinha desenvolvido em 2010 nas páginas da revista Visão. O texto chamava-se Decifrai o Procurador e nele Freitas acusava o procurador-geral da República de ter optado “por uma interpretação muito restritiva do conceito de atentado ao Estado de Direito.” Ou seja, Pinto Monteiro mandou destruir as escutas não porque elas fossem inocentes, mas porque no seu entendimento um atentado ao Estado de Direito envolve a destruição de uma instituição – conspirar sobre a sua venda parece ser insuficiente.
Esta interpretação tão estrita daquilo que constitui uma conduta criminosa, e esta visão tão lata daquilo que é permitido a quem ocupa cargos de poder, está espalhada por toda a entrevista. Pinto Monteiro assume que atendeu chamadas de Rui Rio a queixar-se da justiça (“telefonava-me de vez em quando a protestar contra as fugas”) e que isso não tem mal algum; declara que ir a lançamentos de livros de políticos sobre os quais tomou decisões judiciais é a coisa mais banal do mundo; confessa ter sido “principescamente” tratado quando viajou até Angola para assinar protocolos de cooperação e não lhe passa pela cabeça que ser “principescamente” tratado levante problemas éticos.
Não creio que Pinto Monteiro algum dia tenha sido corrompido por dinheiro. É o próprio a autocorromper-se por vaidadedeslumbrado pelo poder, fascinado por políticos, e, como qualquer bom português, muito amigo dos seus amigos. Embora lamentável a vários títulos, a entrevista a Pinto Monteiro tem esta dupla vantagem: mostra como uma pessoa com o seu perfil pode ser uma desgraça à frente do Ministério Público, e demonstra a importância fulcral de reconduzir Joana Marques Vidal no seu cargo.

O Facebook não ganha eleições
Convém denunciar as más actividades do Facebook sem transformar os seus utilizadores em meras marionetas de Mark Zuckerberg.
PÚBLICO, 22 de Março de 2018
Tenho uns amigos que resmungam diariamente contra o Facebook, e que consideram as redes sociais a maior praga jamais saída de Silicon Valley. Eu argumento que é apenas um meio, um instrumento semelhante a uma faca afiada, que tanto pode servir para esventrar o próximo como para cortar bifes. As facas foram usadas ao longo da história para assassinar milhões de pessoas, mas nem por isso as deixamos de utilizar na cozinha. São-nos úteis, desempenham um papel insubstituível e, em última análise, são neutras — a responsabilidade pela sua boa ou má utilização é de quem segura a faca, não de quem a fabricou.
Como é evidente, se as facas são reguladas — lâmina igual ou superior a dez centímetros é classificada como arma branca e a sua posse, fora do contexto de um talho ou de uma cozinha, ilegal —, também o Facebook deve cumprir regras estritas no domínio da privacidade dos seus clientes ou da propagação deliberada de fake news. Contudo, convém não sermos demasiado literais na interpretação do famoso “o meio é a mensagem” de McLuhan, concluindo a partir da eleição de Donald Trump — mensagem errada para 95% dos jornalistas e opinion makersdo planeta, eu incluído — que tal se deveu à manipulação das cabeças mais frágeis da população americana, via Facebook. Apesar de tudo, e mesmo discordando delas, tenho as cabeças da população americana em muito melhor conta.
As práticas lastimáveis da empresa Cambridge Analytica, que têm estado a ser publicamente desmascaradas, são com certeza muito relevantes. A forma como os dados pessoais de 50 milhões de utilizadores foram parar às suas mãos representam uma enorme falha de segurança do Facebook, que nos deve preocupar a todos — e se um dia se descobrir que a empresa do senhor Zuckerberg esteve envolvida no tráfico de dados privados deve ser punida por isso. O modo frenético como Stephen K. Bannon circula pelo mundo numa jihadpolítica e cultural mortinha por aceder directamente ao cerebelo de cada eleitor e despejar lá para dentro a sua propaganda é com certeza merecedora de atenção. Mas saltar daí para mais um discurso apocalíptico sobre um novo meio de comunicação não só me parece brutalmente exagerado como francamente aborrecido.
Todos nós já ouvimos esta conversa nos primórdios da rádio — veja-se o pânico causado pela encenação da Guerra dos Mundos de Orson Welles em 1938 —, tal como a ouvimos com o advento da televisão — recorde-se o momento em que um muito transpirado Richard Nixon perdeu o primeiro debate televisionado, e de seguida as eleições, para um jovem, calmo e confiante John Kennedy, em 1960. Talvez a História venha a confirmar que em 2016 foi via Facebook, e graças às fake news, que Trump venceu as presidenciais. Mas em todos estes casos, os meios utilizados, embora importantes, nunca deixaram de ser instrumentais.
Admito que o título deste artigo pudesse ser mais exacto: o Facebook ganha tanto eleições como a televisão, a rádio ou os jornais. Posso até admitir que o seu poder de persuasão é maior, e que chega com mais eficácia a milhões de eleitores. Mas isso não modifica a natureza do exercício da propaganda. A Cambridge Analytica é uma agência de comunicação política 2.0 sem escrúpulos — nem mais nem menos do que isso. É preciso bem mais do que um feed amestrado para conseguir manipular milhões de votos. Convém denunciar as más actividades do Facebook sem transformar os seus utilizadores em meras marionetas de Mark Zuckerberg.

Comentários de ahok:
 23.03.2018
1 - Aconselho as pessoas a verem a "quadratura do círculo" da sicnotícias de 22 Março 2018. Pacheco Pereira sintetiza bem o que é o facebook e as redes sociais. Já há doenças relacionadas com as redes sociais. As redes sociais causam adição às pessoas que não conseguem viver se não tiverem a vida exposta na net ou que sentem sensação de felicidade quando entram no facebook. Pior mesmo é que geração está a ser criada quando se está tão dependente da rede?
2 -  Os problemas do facebook (e das redes sociais em geral) são mais profundos e merecem uma análise social e psicológica sobre as consequências e perigos que geram. Criar um mundo superficial e virtual de amigos e de popularidade baseado em likes é nefasto. Não se pode comparar o facebook aos media tradicionais (muito menos a uma faca). Estes têm o princípio de informar de forma isenta e com respeito a um código deontológico (embora nem sempre o façam é certo) ao passo que as redes sociais são a voz feroz da população capaz de engolir quem tenha opiniões diferentes das massas (Umberto Eco disse: "as redes sociais deram voz aos imbecis")



terça-feira, 27 de março de 2018

Faria 111 anos



Mas apenas chegou aos 106, o que se diz que é bastante. Vejo-a todos os dias na abertura do meu blog, companheira repousante, que recordo sempre assim, na foto dos 103. E não me lembrei do dia, tanto a vida se encarrega de nos desviar a atenção para os nossos mundos, de datas vivas, e, este mês, de muitos aniversários bem presentes. Com a bisavó, fez hoje a Joana, neta da minha irmã, já 31, o tempo vai…
Daí, o ter escolhido este texto de Paulo Rangel, publicado hoje no Público, e antes que o dia acabe, sobre o passado Domingo de Ramos, para lembrar o tempo em que a minha Mãe colhia no quintal da casa onde vivíamos, um ramo de loureiro, de alecrim e mais uma outra flor de ocasião, o ramo que levava à igreja para ser benzido. E esse ramo ficava por lá, no seu quarto, por uns tempos, até esquecer, renitente eu em o retirar, como talismã de uma superstição colhida na distante infância, nós, os filhos de Deus, reduzindo-nos, por atavismo, a servos interiorizados, sempre que contemplamos os milagres da Criação, com a gratidão devida por um Pai e um Senhor, mau grado a distinção de Paulo Rangel. Por isso, antes que o dia acabe, aqui vai o seu bonito texto, que faço preceder de um comentário “à medida” de mentes que se dizem, provavelmente, democráticas – o que é, naturalmente, despicienda mentira, nelas só reinando a animadversão facciosa:
Ei-lo, o comentário, de Mário Orlando Moura Pinto, de Setúbal: «O Catolicismo (não confundir com Cristianismo...) sempre de braço dado com a Direita, ou vice-versa. Confere!»
Não, nem a memória da minha Mãe, nem o artigo de Paulo Rangel, respeitoso da sua crença, que educadamente defende, apesar do desvio político, como chamariz de ponderação, merecem que me debruce sobre o comentário repulsivo do setubalense. E antes que chegue o novo dia, coloco o breve texto, com o de Paulo Rangel, para festejar a memória de uma companheira inesquecível.

Chegada a Jerusalém: Deus Pai ou Deus Senhor?
Sei também, mesmo pisando o risco de muita incompreensão, que um Deus que tem filhos não tem servos; que um Deus que é Pai não deveria ser Senhor.
PAULO RANGEL
PÚBLICO, 27 de Março de 2018
1. Há muitos, muitos anos, que sigo religiosamente os programas radiofónicos de Júlio Machado Vaz. Ao fim de semana, como quem se desincumbe de uma obrigação dominical, escuto-o com Inês Menezes na versão longa de “O Amor É”. No último programa, já nos instantes finais, lançou-se a dúvida sobre se este domingo seria ou não seria o domingo de Ramos. E com a habitual graça e sensibilidade, sem nenhum menoscabo, até com delicadeza, a dúvida, quiçá porque se tratava de rádio, ficou no ar, persistiu no ar. Esta dúvida – apesar de ser uma simples dúvida – deixou-me intrigado, talvez perplexo. Não, por uma questão de fé, obviamente. Mas porque mostra até que ponto a nossa sociedade, a nossa cultura e a nossa civilização se descristianizaram. A questão, insisto, não é a fé, nem a afeição à religião ou à tradição e, muito menos, ao que em tempos se denominava, a cristandade como “regime” civilizacional ou cultural. A questão está na indispensabilidade e na importância do conhecimento da mundividência cristã e daquilo a que tenho chamado – com algum escândalo e incompreensão – a “mitologia cristã” para a intelecção do nosso mundo e do nosso tempo. Mesmo – e até mais intensamente – para a compreensão do mundo laico, laicista, agnóstico ou panteísta e de todas as suas incontáveis variáveis e declinações. Na tradição popular, este domingo é como por ali se dizia, o dia de madrinhas e padrinhos, afilhadas e afilhados, ramos e antecipação de folares. Mas ele é, antes de tudo o mais, o dia da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém para a sua última Páscoa. E esse episódio de aclamação e glória representa, como toda a vida narrada de Jesus, não apenas um incontornável lugar teológico, mas um manancial de referências antropológicas. Curiosamente, do jaez daquelas com que semanalmente me deleito nos textos, nos versos, nas entrevistas, nos artigos que dão vida e humor, coração e pulmão a “O Amor É”. 
2. O sentido do domingo de Ramos talvez também se tenha perdido por causa do engarrafamento ou atafulhamento litúrgico da semana santa. O texto evangélico lido no domingo de Ramos não é o texto da dita chegada gloriosa e triunfal de Jesus a Jerusalém. É a narração circunstanciada da paixão e morte de Jesus – liturgia que outrora estava reservada aos ofícios de quinta e sexta-feira santa. Com o engarrafamento litúrgico, a maioria das pessoas perdeu a consciência desse momento épico, trágico e crucial da vida de Jesus, prenhe como está de um intenso magnetismo antropológico, transitando de Messias glorificado a criminoso de delito comum. Uma boa parte nem se dá conta, aliás, de que, em cada eucaristia, recordam aquele momento, quando cantam o chamado “Santo” e proclamam “Hossanas”. Ou seja, a recepção entusiástica de Jesus nos umbrais de Jerusalém é revivida semanalmente por centenas de milhões de cristãos, mesmo que disso possam não ter exacta consciência.
3. Cruzando os relatos evangélicos, bastante aproximados entre si, pode assumir-se que, sendo muitos os judeus que se concentravam em Jerusalém para a festa da Páscoa, e espalhando-se a notícia de que um famoso profeta galileu, capaz de milagres assombrosos, estaria a chegar, uma multidão juntou-se para O ver. A multidão, impressionada pelo que d’Ele se dizia, aclamou-O com júbilo e devoção, numa atitude quase messiânica. Daí que se fale a respeito da entrada em Jerusalém, num momento de triunfo, honra, glória e louvor, no fundo, do reconhecimento pelas massas dos atributos divinos. Este episódio contribuiu decerto para a imediata reacção persecutória do poder religioso, civil e militar que viria nos dias seguintes e culminaria na prisão, julgamento sumário, condenação e crucificação de Jesus.
 4. Este episódio de glorificação de tipo messiânico ilustra bem a ausência de um projecto político em Jesus e de Jesus. O Messias – na concepção judaica – não é apenas um salvador espiritual, é também um libertador temporal (naquele preciso tempo um libertador do jugo romano). Este seria o momento – ou, como se diz agora, o momentum – para Jesus assumir a instauração do Reino, mas de um Reino com coroa, ceptro e espada. Há, no entanto, um sinal, marcado em todos os evangelhos, e inspirado nas profecias de Isaías e de Zacarias, que mostra simbolicamente que Jesus, mesmo com este apoio popular, não visa um reino político. Jesus entra montado num jumentinho, filho de uma jumenta. Não entra de liteira, nem chega a cavalo, como um governador ou um general; passeia mansamente no lombo de um simples burro. E, por isso, dirá a Pilatos, dias mais tarde, que o seu Reino não é deste mundo. 
5. Confesso que esta passagem sempre me interpelou. E que a projecção de glória, de honra e de louvor, tão manifesta neste episódio, e tão barrocamente presente na liturgia católica, embora de clara raiz velho-testamentária, sempre me inquietou e desafiou. Precisará Deus da glória, da honra e do louvor? Ou preferirá o amor, de dádiva e a gratidão? Gostará Deus de ser tratado como Senhor, sinónimo de uma relação de propriedade e de domínio, inspirada na antiga relação “servo-senhor”? Não Lhe bastará e não O satisfará plenamente o amor paternal, a caridade e o ágape de Pai-Mãe e filho-filha? Por reflexo do hábito e da educação e porque tem raízes fundas e fundadas, penso e falo indistintamente num Deus Pai e num Deus Senhor, e por mais que faça, julgo que não conseguirei abandonar esse quadro de formulação e de pensamento. Mas sei também, mesmo pisando o risco de muita incompreensão, que um Deus que tem filhos não tem servos; que um Deus que é Pai não deveria ser Senhor.
SIM. João Calvão da Silva. Professor e civilista de tomo, político hábil e dedicado, cultivava a inteligência, a vivacidade, a informalidade, o humor. Portugal perdeu um grande cidadão; muitos de nós, um amigo.
NÃO. Governo e relatório dos fogos. O respeito pelas vítimas e pelo país em geral não se traduz apenas no dever indemnizatório e na acção preventiva. Exige verdade e assunção de responsabilidades.  
  Colunista

A boa disposição de Rui Tavares

É. “Ninguém se apercebe de nada”. Foi Rui Knopfli que o escreveu (poema «Winds of change» in “Reino Submarino”, 1962). Já em tempos o escrevi neste blog e não resisto a transcrever novamente o texto, de 11/4/2012, em reacção ao artigo risonho de Rui Tavares, «Coisas da China (que Trump talvez ignore)»embora admire sempre Rui Knopfli como poeta de um intimismo desinibido e duro, além de outros dados que o tornam um poeta a merecer grande destaque nas letras pátrias. Todavia, a vassalagem aos africanos, por alturas dos ventos descolonizadores, mereceu o meu repúdio, como fiz sentir nesse texto do blog, que reponho, para responder à leviandade tosca de Rui Tavares, como é a de todos os que apontam o dedo acusador aos colonizadores não independentes das metrópoles, não podendo esses todos pontapear as nações colonialistas que há muito tinham adquirido o estatuto de independência, e por isso se livraram de idênticos libelos acusatórios e idênticas expulsões dos seus territórios colonizados com maior violência do que fora a nossa, de ocupantes dependentes.

«Ninguém se apercebe de nada»: 
«Mas Rui Knopfli apercebia-se, ele era dos que frequentavam os sítios onde havia informação. O resto do povo fazia a sua vida, a maioria trabalhava, ainda as drogas não frequentavam os espaços de uma África ampla e saudável, a mocidade brincava em liberdade. E também estudava. O 25 de Abril colheu quase todos de surpresa, até mesmo os governantes – esses, sobretudo – e as tropas de cá e de lá, chamadas a defender aquilo lá, para benefício de cá, até mesmo aqueles que traíam sobretudo lá.
Rui Knopfli foi dos que se apercebeu, dos que frequentou, dos que traiu por conveniência ficticiamente democrática, embora sem muita convicção, alma sensível que era e tão bem se revelara nos versos com que moldou as paisagens da sua tristeza. Mas, europeu que era, não permaneceu, para cá veio, protegido pelo bloco dos que, atraiçoando a pátria, agora distribuíam as benesses pelos da Intelligentsia traidora. Veio para cá, esteve em Inglaterra em trabalho, julgo que viveu na agonia da saudade pela terra que tão bem descreveu, no arrependimento pelos da “inocência bem – ou antes, mal - aventurada” que desprezara, burguesia do trabalho, que construíra cidades e vias e as fábricas que a Metrópole consentia que se construíssem por lá.
Não, ninguém se apercebeu. E nem mesmo Rui Knopfli, que, se vivesse hoje, se espantaria com o trajecto de um país a saque, um país que fora amplo e que agora se via condenado a viver dos empréstimos, usados em reformas e benefícios, sim, do país reduzido, mas a maior parte, talvez, em benefício dos habituais do saque. Nesses se incluem também os estrondosos cartões de crédito a governantes, e as mordomias dos mesmos, e os vencimentos dos trabalhadores da RTP que o povo também paga para ser tratado com muitas boquinhas pelos apresentadores de sorrisos torcidos e de outros requebros. E inclui-se igualmente a multa a Mário Soares que em cólera pela desconsideração do polícia cumpridor, solta um formidável “O país é que vai pagar!”, tão sintomático daquilo que valemos, como povo da discrepância e da mediocridade. Salvou-se o polícia cumpridor, contra os do endeusamento dos heróis fictícios da nossa “epopeia” actual, não mais marítima, mas bastante aérea.
Eis o poema de Rui Knopfli:
«Winds of change»
«Ninguém se apercebe de nada. / Brilha um sol violento como a loucura / e estalam gargalhadas na brancura / violeta do passeio. / É África garrida dos postais, / o fato de linho, o calor obsidiante / e a cerveja bem gelada. / Passam. Passam / e tornam a passar. / Estridem mais gargalhadas, / abrindo umas sobre as outras / como círculos concêntricos. / Os moleques algaraviam, folclóricos, / pelas sombras, nas esquinas / e no escuro dos portais / adolescentes namoram de mãos dadas. / De facto, como é mansa e boa / a Polana / nas suas ruas, túneis de verdura / atapetadas de veludo vermelho. / Tudo joga tão certo, tudo está tão bem /  como num filme tecnicolorido. / Passam. Passam / e tornam a passar. / Ninguém se apercebe de nada.»
E agora, que percebemos, resta-nos o “tarde piaste” da nossa inconsciência. Porque os da incontinência souberam piar mais cedo. Sem parar.»

Mas lembrei-me de Knopfli, também pela referência pateta – patética – de Rui Tavares ao povo chinês, que pretende abarcar este mundo e talvez o outro, por conta de um poderio real, que se baseia, julgo, na exploração do seu próprio povo, por um governo totalitarista e só aparentemente – e cinicamente – brando. Rui Knopfli, no mesmo livro “Reino Submarino” descreve esse povo que “construiu a muralha da China” e “se ri de nós”, que começa, segundo Rui Tavares, por compor filmes a imitar os de intriga épica americana, e vai avançando suavemente na ocupação do mundo, num jogo de subserviência face ao americano, apenas aparente, porque decididamente ambiciosa de domínio absoluto. Que o digam as lojas e restaurantes chineses alastrantes e pejadas, por todo o sítio, de gente altiva e séria, não mais idêntica a essa de "O povo da China visto do Alto-Maé”, que transcrevo:
«Eh pá, a gente pensa na China,
Nos compridos campos de arroz
E nos milhões de pessoas
Como imensos bagos de arroz,
Vivendo lá na China.
É engraçado a gente aqui no Alto-Maé
Que conhece o Kong, magrinho, da hortaliça
Com aquela voz engraçada (Stá plonto patlão),
 É engraçado como a gente se engana
Com a China, aquele povo imenso
De Komgs amarelinhos e fala doce
Que construiu a Grande Muralha
E que constrói a vida
E que, se tem tempo, se ri de nós,
Da nossa pele descolorida,
Dos nossos olhos redondos
E dos erres engraçados com que falamos.»
Rui Tavares entende então que os chineses que se espalham actualmente pela África vão no propósito de ajudar socialmente e economicamente os africanos? Há sinceridade nisso? Ou antes, puro “racismo” contra os seus próprios “irmãos de raça”…  Retornados lhes chamaria também, se fosse mais velho…

 Faço votos para que nunca ele tenha que rastejar perante essa China avassaladora da sua informação de terna e risonha referência. E os seus filhos e netos ...

OPINIÃO
Coisas da China (que Trump talvez ignore)
Trump iniciou uma guerra tarifária contra as importações chinesas. Mas não sei se já se deu conta de quão parecida com os EUA se tornou a China.
PÚBLICO, 23 de Março de 2018
OPINIÃO
Para entender onde está a China, e para onde vai, podemos ler dezenas de dissertações. Ou podemos gastar duas horas a ver Lobo Guerreiro 2, um filme do ano passado que é o maior sucesso de bilheteira de sempre na China (e segundo maior sucesso de bilheteira num só país, a curta distância de Guerra das Estrelas VII: o Despertar da Força nos EUA).
Porque não? Há muito que a cultura de massas é tomada como metáfora da condição norte-americana e da sua hegemonia global. Para potências como a China sobram os debates académicos. Mas o que os chineses vêem, aos milhões, é Lobo Guerreiro 2, filme passado em África, onde Leng Feng, agente das forças especiais chinesas, tenta salvar uma fábrica chinesa e os seus trabalhadores africanos de uma situação tramada — mistura de guerra civil com epidemia de uma doença rara e ultra-mortífera ao mesmo tempo — em apenas 18 horas.
O sucesso de bilheteira chinês é, para todos os efeitos, igual aos filmes equivalentes norte-americanos. Tem as mesmas reviravoltas na intriga, os mesmos efeitos especiais e o mesmo heroísmo paternalista. A grande diferença é que em vez de serem os americanos a salvar o mundo são os chineses a salvar o mundo. Até a génese do filme é igualmente capitalista: ao contrário de outros filmes patrióticos chineses, produzidos e distribuídos pelo Estado, Lobo Guerreiro 2 é fruto da iniciativa privada de Wu Jing, que acumula numa só pessoa o papel de produtor, realizador, argumentista e ator principal. O público adorou: a mensagem é a mesma que se encontra nos filmes estatais, mas o embrulho é mais empolgante.
Ver Lobo Guerreiro 2 é como estar do outro lado do espelho em relação à imagem que os ocidentais têm do papel da China em África. No filme, os chineses não estão em África para explorar pessoas ou para extrair recursos, mas para ajudar os africanos a erguerem-se após o colonialismo ocidental. O pai do herói morreu em África e por África — e corta!, decide o realizador, para a cena em que o herói, em frente ao túmulo do pai, jura ser fiel à missão paterna de defender os africanos. Há uma história de amor em que o protagonista irrita-primeiro-e-seduz-depois uma bela médica exótica (ou seja, ocidental: a Dra. Rachel Smith). Lá se admite que haja um vilão chinês, mas só um bocadinho, na pessoa do dono da fábrica que diz que só há espaço para retirar dali os chineses e não os africanos. Após um brevíssimo momento de incerteza, o herói Leng Feng proclama que jamais seria capaz de se ir embora sem salvar toda a gente, chineses e africanos juntos. A cena que se segue, na qual africanos gratos celebram efusivamente a decisão do seu salvador chinês, é de um tal simplismo racista que não passaria hoje no teste do politicamente correto ocidental — mas não estaria deslocada num filme do Rambo de há 30 anos.
Ao largo, numa corveta da marinha de guerra chinesa, militares a quem é atribuído um coração mais mole do que o dos seus homólogos ficcionais americanos esperam ansiosos que Leng Feng consiga levar a sua missão até ao fim. E aqui entra o único pormenor relevante que não apareceria num filme americano: é que quando finalmente os chineses e os africanos da fábrica são salvos (raios, contei-vos o fim do filme! — desculpem estragar uma surpresa tão inesperada)
o helicóptero que os transporta em segurança pertence, não ao Exército de Libertação Popular chinês, mas... à Organização das Nações Unidas. Por esta é que não estavam à espera, hein?
A mensagem da China, para si mesma e para quem estiver disposto a ouvir, é clara: ao contrário dos americanos, os chineses serão uma super-potência sob — e não sobre — a égide das Nações Unidas. Isto é propaganda, claro, mas é importante saber para onde vai a propaganda. É que, fora das telas do cinema, isto é, o mesmo que martelam a televisão oficial e o Presidente Xi Jinping quando lembram, por exemplo, que a China é o maior fornecedor de capacetes azuis à ONU.
Trump iniciou ontem uma guerra tarifária contra as importações chinesas. Mas não sei se já se deu conta de quão parecida com os EUA se tornou a China. Trata-se do único outro país no mundo que assume claramente a vontade de vir a ser uma super-potência global. O espírito errático de Trump só convenceu ainda mais a liderança chinesa de que o seu propósito de atingir o estatuto de super-potência é necessário, não por interesse da China, mas porque a China está disposta a sacrificar-se pelo mundo. Ou seja: o discurso é tão simplista e ridículo como quando eram os americanos a dizê-lo. Mas é aquilo em que os chineses nos estão a dizer que acreditam. Nos discursos políticos e — um dia destes — num cinema perto de si.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico