Umas são histórias velhas –
João Miguel Tavares recorda-as como também as vivemos - num sentimento de repulsa, Sócrates a correr
na Praça Vermelha, (mas também em outras praças, perito que era em desporto de
correr), o Kadhafi acampando de estadão, no forte de São Julião da Barra, mais
tanto do que então se passou e que JMT refaz, para explicar a nossa não
participação actual nos gestos nobres da outra Europa que apoia o Reino Unido na
questão do envenenamento do diplomata russo … Julgo, todavia, que JMT está
equivocado, a nossa aliança com a Rússia é bem anterior, na altura ainda se
apelidava de URSS. Não íamos desfeiteá-la, pois nos foi muito útil, e ainda
hoje a veneramos, como JMT conclui. De resto, temos mais que fazer,
temos que limpar a mata, com o PM e imitar o PR, todos popularuchos a darem nas
vistas do populacho, explica Alberto Gonçalves no seu artigo de hoje - «O regime que estamos
a fazer» -
no seu desprezo do costume. O defeito é nosso, que, não só permitimos a
palhaçada como parecemos participar nela sempre, atentos, veneradores e
obrigados, com a televisão transmitindo, reverente e cúmplice.
Não, homens de garra a desmascarar, como os dos textos que seguem, não
impedem o descalabro da nossa trafulhice comportamental. “O populacho
diverte-se na lama”, escreveu Cesário Verde. Todos somos populacho.
O regime que estamos a fazer
OBSERVADOR, 31/3/18
Uma “comunicação social” domesticada, uma resma de partidos vendidos à
caridade alemã, a gratidão dos privilegiados e um presidente com fobia do
confronto explicam parte das coisas. Não explicam todas
6 minutos e 47 segundos. Parece o título de um filme americano, mas é um filme português. Trata-se
do tempo – contado pelo Miguel Santos Carrapatoso em reportagem neste jornal e incluindo o pedacinho em que a
maquineta encravou – que o dr. Costa demorou a limpar a Serra de São Mamede e a
dar o exemplo em matéria de prevenção de fogos florestais.
De agora em diante, o cidadão consciencioso já não tem desculpa para
desleixar o matagal. Basta acordar, vestir o casaco verde mais impecável que a
alta costura líbia conseguiu conceber, apanhar um helicóptero patrocinado pelo
contribuinte, rumar a um bosque à escolha, enfiar caneleiras, viseira,
protector dos ouvidos e capacete, pegar na roçadora, garantir que as televisões
filmam o exercício, fingir que decepa dois tufos de musgo, remover os adereços,
regressar ao helicóptero e a casa e aguardar o justo reconhecimento popular por
tão destemida saga em prol do bem comum. Não custa nada: ao dr. Costa não
custou um cêntimo.
Os cínicos, leia-se a “direita inorgânica do Observador” (cito Sua
Excelência, o primeiro-ministro), reduzirão a proeza a um gesto de propaganda
reles, assaz propenso a burlar as massas e pouco propenso a burlar as matas. Ou
seja, para esses sujeitos de má-fé, viúvos de Pedro Passos Coelho e lacaios do
“neoliberalismo”, logo que volte o calor voltará a arder o que sobrou do ano
passado (e que, feliz ou infelizmente, não foi muito). O próprio dr. Costa
admite a hipótese.
O que ele não admite, para descanso da população ansiosa, é demitir-se
em consequência de eventuais calamidades. Isso é o que a “direita inorgânica”
queria (a direita orgânica está bem assim, obrigado): mal se reiniciem os
incêndios, o dr. Costa tomará a atitude que o seu cargo exige e, aposto,
partirá para uma praia espanhola, a coordenar remotamente as operações de
propaganda. De seguida, fará um discurso condoído, promessas de medidas
inadiáveis, apelos à participação da “comunidade” e a conscrição forçada ou
voluntária de cabras sapadoras. Daqui a um ano, nos intervalos do Benfica,
dedicará outros 6 minutos e 47 segundos ao arvoredo, com o espectacular casaco
verde, a permanente gargalhada de respeito pelas vítimas e o jornalismo
patriótico a tiracolo. O dr. Costa é um líder autêntico, um farol cuja luz
atrai tudo para os calhaus, incluindo os ditos.
Agora a sério, em que espécie de país é que semelhante exibição de
desprezo pela inteligência alheia passaria impune e até – em casos de sabujice
terminal – elogiada? Na Coreia do Norte, de certeza. E talvez naqueles
desterros onde o sociólogo Boaventura S. S. passeia trajes indígenas. De resto,
se calhar por não conhecer a realidade da Jordânia e do Uganda, falham-me os
termos de comparação. Claro que uma “comunicação social” (desculpem o jargão)
domesticada, uma resma de partidos vendidos à caridade alemã, a gratidão dos
privilegiados e um presidente com fobia do confronto explicam parte das coisas.
Duvido que expliquem as coisas todas.
O à-vontade com que os governantes, ou o bando que desempenha o papel,
atropelam a decência não é normal sob qualquer perspectiva. Nem eles
antecipariam tanta facilidade, donde o evidente gozo com que a usufruem. De
facto, fazem o que lhes apetece e, o que agrava só ligeiramente a situação,
sabem-se livres de fazer o que lhes apetece. E sabem que nenhum castigo lhes
advirá. Podem subir os impostos a níveis inéditos e são aclamados por “virar a
página” da “austeridade”. Podem aumentar os gastos do Estado para contentar
clientelas e são louvados pelo rigor. Podem estrafegar a saúde e o que calha
para controlar o défice e são beatificados a pretexto da “consciência social”
(além de apreciados pelos “utentes” que sofrem a manha). Podem baixar o défice
de 2,8% para 3% e são glorificados pelo “recorde” da “história democrática”
(porque o dinheiro “injectado” na CGD aparentemente não conta). Podem banhar-se
nas ignomínias da bola. Podem encenar a comédia de Tancos ou, em actos
sucessivos, a tragédia de Pedrógão Grande.
Em suma, podem tudo. E poder tudo, sem escrutínio ou receio, dúvida
ou sanção, é um sintoma, razoavelmente inequívoco, de que o regime não se
recomenda. A possibilidade, crescentemente rara, de se escrever isto prova que
ainda não estamos em ditadura. Porém, já não estamos exactamente em democracia.
Entre dois pontos há sempre um processo, brusco ou suave, manso ou violento,
sombrio ou cómico. Eis o lugar em que nos encontramos, que por acaso
coincide com o que escolhemos e, lá vai redundância, com o que merecem4os.
Boa Páscoa, para quem acredita em ressurreições.
OPINIÃO
Portugal e Rússia: a “geringonça” tem as costas
largas
Este, caros leitores, é o mais recente património diplomático do PS: a
promoção, sem escrúpulos nem vergonha, de tiranos e ditadores.
29 de Março de 2018
A tese que começa a vingar na opinião pública é esta: o Governo
português até estava com vontade de expulsar meia-dúzia de diplomatas russos na
sequência do envenenamento de Sergei Skripal, alinhando com os seus aliados da
União Europeia e da NATO — só que, infelizmente, os equilíbrios sensíveis
dentro da “geringonça” não lhe permitiram tomar tal decisão. Segundo esta
teoria, o mau da fita não seria o PS, mas o PCP e o seu amor mal resolvido com
a Rússia de Putin. Esta
é uma versão particularmente generosa para o PS, que ignora com dolo aquilo que
foi a linha da diplomacia portuguesa da última vez que os socialistas foram
governo. Sim, lamento, vou ter de voltar a falar de José Sócrates.
E não, não é nenhum prazer fetichista — é apenas uma necessidade
imperiosa de recordar factos que não podem ser esquecidos, e de resistir a que
o socratismo se transforme no grande impensado da democracia portuguesa, um
conveniente apagão na história do PS, como se ele tivesse existido no limbo,
sem estrutura, sem cúmplices, sem fiéis, sem partido. Portanto, vale a pena
recuar até o ano da grande glória socrática: 2007, com Portugal na
presidência do Conselho da União Europeia, seis meses de sucesso diplomático
que culminaram na assinatura do Tratado de Lisboa, a 13 de Dezembro, no
Mosteiro dos Jerónimos — momento selado com o famoso “porreiro, pá!”, dito por
Sócrates a Durão Barroso.
Se todos se lembram do tour de force em torno do tratado,
poucos se recordarão do que foi o rodopio diplomático da segunda metade de
2007, e quais os países que o governo de José Sócrates e de Augusto Santos
Silva (então ministro dos Assuntos Parlamentares) promoveu enquanto esteve à
frente da União Europeia. Apontem, que vale a pena. A 4 de Julho de 2007,
realizou-se a primeira Cimeira Empresarial UE-Brasil, com a presença de
Sócrates, Barroso e Lula da Silva. A 25 de Outubro, realizou-se a Cimeira
UE-Rússia, com Vladimir Putin a passar por Mafra e Sócrates a declarar:
“Nada contribuirá mais para a paz no mundo do que uma relação estável e
duradoura entre União Europeia e Rússia.” Os resultados são conhecidos.
Meses antes, em Maio, Sócrates já tinha viajado até à Rússia para
“descongelar” relações, com Putin a convidá-lo a ficar no Kremlin (uma honra) e
a fechar só para si a movimentadíssima Praça Vermelha durante uma hora, de
forma a poder praticar o seu jogging (a sério). As autoridades
portuguesas garantiram que encerrar a praça foi “da exclusiva responsabilidade
das autoridades russas”. Sócrates retribuiu com singelas declarações sobre
direitos humanos: “Ninguém deve dar lições a ninguém: nem a Europa à Rússia,
nem a Rússia à Europa”, até porque “as democracias são sempre obras
inacabadas”. Que bonito.
Dentro dessa mesma filosofia, a 8 e 9 de Dezembro de 2007, quatro dias
antes da assinatura do Tratado de Lisboa, Sócrates promoveu a inesquecível Cimeira
UE-África, aquela em que a vinda do encantador Robert Mugabe deu
origem a veementes protestos do Reino Unido (que acabou por ficar de fora da
cimeira — os ingleses estão habituados a desilusões) e com o ainda vivíssimo coronel
Kadhafi a montar acampamento berbere no Forte de São Julião da Barra.
Este, caros leitores, é o mais recente património diplomático do Partido
Socialista: a promoção, sem escrúpulos nem vergonha, de tiranos e ditadores. Na
altura, o PS tinha maioria absoluta. Será que a culpa também foi do PCP? Se o
país está esquecido, eu não estou.
Jornalista