São dois artigos saídos
no Público de 8 de Março, sobre o mundo europeu, sendo que Portugal faz
parte da Europa, apesar da descrença de alguns mais viajados, mas decididamente
lar de repouso para os que se sentem cansados do tropel civilizacional exterior.
O de Francisco Assis informa sobre o domínio das paixões na condução dos
destinos das nações, num actual panorama de orientação política, ao que parece,
“pós-ideológica”, os acontecimentos de nível global trazendo catástrofe e
ruído, tantas vezes de protesto, justificativo da quebra de ideologia nas
questões eleitoralistas, manobradas antes por interesses egoístas, excepto os dos
que se mantêm fiéis a princípios. O de Diogo Queiroz de Andrade, Quixote
em defesa da Mulher – tratou-se do Dia Mundial da Mulher, dia de
festejo, pois, e de pieguice – vem à liça defender a tal paridade de direitos, como
é de bom tom chamar a atenção para esses, pelo menos no dia específico da sua
mundialidade, por cá.
Mas as violações de direitos que
vão pelo mundo irão continuar, tão graves, de que constantemente vamos tendo
conhecimento, e por vezes assistindo. Se não vivendo. Desde que o mundo é
mundo. E até mesmo o requinte sádico tem progredido, graças ao avanço
tecnológico, somos constantemente bombardeados por informações de pesadelo.
É por isso que a ideologia já
nem conta tanto, “sauve qui peut”…
OPINIÃO
O tempo da ansiedade democrática
A Europa é o continente onde se vive melhor sob todos os pontos de
vista. Apesar disso, um profundo mal-estar percorre a generalidade dos países
europeus.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 8 de Março de 2018
1. Raymond Aron
dizia que aqueles que acreditavam que os povos valorizam mais os seus
interesses do que as suas paixões revelavam nada compreender da história do
século XX. O que se vai passando um pouco por essa Europa fora neste início
do século XXI parece confirmar a tese deste filósofo e sociólogo que se foi
progressivamente impondo como uma das consciências mais lúcidas do seu tempo.
Aron, crítico precoce do nazismo e opositor intrépido do totalitarismo
comunista, vítima da sobranceira hegemonia marxista no panorama intelectual
francês durante largos anos, compreendeu como ninguém até que ponto a paixão
ideológica conduz à cegueira absoluta.
Numa época que se pretende pós-ideológica, como é o caso do tempo
presente, poder-se-ia ser levado a admitir a diluição da dimensão passional no
processo de formação da decisão política. Puro engano. Desamarradas das grandes construções
ideológicas que caracterizaram o século anterior, as paixões ressurgem no
debate político em todo o seu esplendor. Têm agora outras características. Já
não se inserem em grandes relatos históricos, nem tão pouco se projectam em
representações de natureza utópica. São paixões de outra ordem,
convenientemente dessacralizadas, condizentes com um contexto dominado por
grandes fluxos de ansiedade individual e colectiva, pela preponderância da
noção de insegurança num sentido muito lato e pelo deterioramento dos
mecanismos tradicionais de integração política, seja no plano prático, seja na
esfera do simbólico.
A Europa é o continente onde se vive melhor sob
todos os pontos de vista. Apesar disso, um profundo mal-estar percorre a generalidade dos
países europeus. Isso tem-se vindo a reflectir nos resultados eleitorais
verificados nos últimos anos em quase todo o lado. Eleição após eleição
constatamos o crescimento de forças políticas de orientação extremista,
observamos o regresso de discursos nacionalistas de natureza xenófoba e
assistimos à emergência de projectos dificilmente compreensíveis, os quais por
alguma preguiça intelectual nos apressamos a rotular de populistas. Alguns
espíritos dogmáticos propõem explicações simplistas para tudo isto: para o
neo-marxismo básico tudo radica no domínio das desigualdades económicas
inevitavelmente geradas pelo funcionamento do sistema capitalista; para a nova
direita nacionalista, a génese de todos os problemas está no projecto político
de integração europeia. Uns e outros incorrem, a meu ver, num erro básico:
recusam-se a compreender a verdadeira dimensão das mudanças em curso, que têm
particular relevo nas sociedades mais evoluídas e apontam para uma profunda
transformação no próprio plano antropológico.
Atentemos apenas em três grandes alterações que marcam o nosso tempo: a progressiva aplicação dos processos de
automação a todas as áreas da vida, o surgimento da inteligência artificial e a
evolução do próprio conceito de trabalho no contexto de um mundo globalizado. É
absurdo pensar que poderemos responder a estes novos temas recorrendo ao
receituário ideológico concebido no século XIX, no contexto de sociedades
radicalmente distintas das actuais. O desajustamento entre estas novas
exigências da realidade e os modelos e categorias clássicos de resposta
política às mesmas está na origem da situação profundamente confusa que nos
inquieta e nos inunda de ansiedade.
Olhemos para o caso italiano. Os partidos de centro-esquerda e de
centro-direita sofreram uma derrota histórica. Avançaram eleitoralmente os
ultranacionalistas de propensão racista e um partido enigmático que apela à
democracia directa de base digital, denuncia os supostos privilégios de uma
casta político-económica, contesta as medidas de contenção orçamental e advoga
uma política dura em relação ao fenómeno da imigração e dos refugiados. Como ler estes resultados senão com o receio
de uma profunda degradação da vida cívica num país que continua a ser um dos
principais centros de produção do pensamento político europeu e onde nos
últimos anos o consumo interno aumentou substancialmente e a maioria das
pessoas não revela uma excessiva apreensão com as suas condições materiais de
existência? Haverá com certeza bolsas de pobreza, subsiste um elevado
número de desemprego, em especial nos sectores mais jovens, e o crescimento
económico não é dos mais famosos, mas a Itália está muito longe de ser um país
dominado por profundas carências económicas.
O que poderá justificar então estes resultados? Justamente a ideia de
que as paixões muitas vezes prevalecem sobre os interesses. Os grandes partidos
tradicionais burocratizaram-se e abriram espaço a projectos assentes numa
perspectiva de maior participação política, ainda que muitas vezes ilusória. O
movimento Cinco Estrelas é nesse aspecto paradigmático. Formado por um cómico
politicamente inconsistente e por um homem ligado às novas tecnologias,
ideologicamente neutral, abriu as portas à participação pública de gente muito
diversa, nalguns casos de assinalável qualidade moral, intelectual e política. Alguns dos deputados mais interessantes
que encontrei no Parlamento Europeu são jovens representantes deste novel
partido político italiano. Abominam a corrupção e o clientelismo, defendem
causas justas e agem com verdadeiro sentido de serviço público. Isso
levou-me a perceber que há uma grande diferença entre o designado populismo e o
extremismo ideológico, e que nada ganhamos em ostracizar radicalmente novos
movimentos políticos que são sinais dos tempos conturbados que atravessamos. Significa
tal coisa que devemos abdicar de defender um núcleo fundamental de princípios e
valores inerentes ao modelo da democracia liberal? Jamais. O que devemos é
tentar compreender a presente instabilidade do espaço europeu à luz dessa
mudança radical que, como referi acima, supera em muito as categorias politicas
e económicas, remetendo para o domínio do antropológico. Isso obriga-nos a
alguma humildade, quer no plano teórico, quer no plano político. Essa é,
contudo, a obrigação de quem professa genuínos ideais democráticos.
2. António Costa e Rui Rio encontraram-se e a reunião decorreu, ao
que consta, num clima ameno e muito civilizado. É uma boa notícia para o país.
Espero que nessa reunião tenham debatido os temas europeus. A meu ver é
essencial que os dois principais partidos políticos portugueses se entendam em
torno dos projectos de reformulação da União Europeia presentemente em
discussão.
EDITORIAL
Não, isto não é normal
Os direitos das mulheres são direitos humanos. Esta frase é tão simples
e tão óbvia e, no entanto, ainda há quem queira fazer de conta que não a
percebe.
DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE
PÚBLICO, 8 de Março de 2018
Os direitos das mulheres
são direitos humanos. Esta frase é tão simples e tão óbvia e, no entanto, ainda
há quem queira fazer de conta que não a percebe. Lutar pelos direitos das
mulheres, ser feminista, é defender a dignidade da nossa sociedade — e não é
normal que não seja assim.
Só não vê quem não quer:
as notícias que temos hoje mostram outra vez quão escandalosa ainda é a
diferença de tratamento das mulheres. Saber que em Portugal a crise foi
aproveitada para aumentar a desigualdade nos salários em função do género ou
que somos recordistas na diferença de pagamento a mulheres com mais de 65 anos
deveria envergonhar-nos a todos, a começar pelos homens que mandam. Porque são
sempre homens que mandam e isso é parte importante do problema – não porque são
homens, mas porque são homens que não entendem o feminismo como uma causa de
todos os seres humanos.
A custo, lá se vai conseguindo
fazer passar legislação que promove a igualdade. Falta o resto: falta mudar as
mentalidades, algo que só se conseguirá com a educação para a cidadania. E se
há algo que justifica que ainda hoje exista um dia da mulher, é precisamente o
risco de que esses direitos adquiridos nos últimos anos ainda sejam revertidos
– porque ainda vivemos numa sociedade em que se acha normal e racional remeter
as mulheres a um papel menor.
Mas não, não é normal.
Não é normal que se aceite que as mulheres recebam menos. Não é normal que se
acolha como natural a ausência de mulheres no topo das empresas do PSI 20. Não
é normal que se encolham os ombros com as vergonhosas estatísticas de violência
doméstica que temos para mostrar. Não é normal que se aceitem as alarvidades de
algumas sentenças que saem dos tribunais deste país.
Quem pactua com este
estado de coisas não é humanista. E em Portugal, infelizmente, ainda há algumas
pessoas assim. Este problema tem pouco a ver com a direita e com a esquerda e
muito a ver com a postura de cada um face à sociedade. E passa por todos nós,
cidadãos, sermos muito mais exigentes com os nossos representantes sociais.
Temos de aumentar a nossa cultura de exigência face aos servidores públicos, de
forma a melhorar o ar que respiramos em democracia. Seremos todos melhores numa
sociedade mais justa, mais igual, mais paritária. Porquê? Voltamos ao início:
porque os direitos das mulheres são direitos humanos.
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