sexta-feira, 30 de março de 2018

Bons escritos



São dois artigos saídos no Público de 8 de Março, sobre o mundo europeu, sendo que Portugal faz parte da Europa, apesar da descrença de alguns mais viajados, mas decididamente lar de repouso para os que se sentem cansados do tropel civilizacional exterior. O de Francisco Assis informa sobre o domínio das paixões na condução dos destinos das nações, num actual panorama de orientação política, ao que parece, “pós-ideológica”, os acontecimentos de nível global trazendo catástrofe e ruído, tantas vezes de protesto, justificativo da quebra de ideologia nas questões eleitoralistas, manobradas antes por interesses egoístas, excepto os dos que se mantêm fiéis a princípios. O de Diogo Queiroz de Andrade, Quixote em defesa da Mulher – tratou-se do Dia Mundial da Mulher, dia de festejo, pois, e de pieguice – vem à liça defender a tal paridade de direitos, como é de bom tom chamar a atenção para esses, pelo menos no dia específico da sua mundialidade, por cá.
Mas as violações de direitos que vão pelo mundo irão continuar, tão graves, de que constantemente vamos tendo conhecimento, e por vezes assistindo. Se não vivendo. Desde que o mundo é mundo. E até mesmo o requinte sádico tem progredido, graças ao avanço tecnológico, somos constantemente bombardeados por informações de pesadelo.
É por isso que a ideologia já nem conta tanto, “sauve qui peut”…

OPINIÃO
O tempo da ansiedade democrática
A Europa é o continente onde se vive melhor sob todos os pontos de vista. Apesar disso, um profundo mal-estar percorre a generalidade dos países europeus.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 8 de Março de 2018
1. Raymond Aron dizia que aqueles que acreditavam que os povos valorizam mais os seus interesses do que as suas paixões revelavam nada compreender da história do século XX. O que se vai passando um pouco por essa Europa fora neste início do século XXI parece confirmar a tese deste filósofo e sociólogo que se foi progressivamente impondo como uma das consciências mais lúcidas do seu tempo. Aron, crítico precoce do nazismo e opositor intrépido do totalitarismo comunista, vítima da sobranceira hegemonia marxista no panorama intelectual francês durante largos anos, compreendeu como ninguém até que ponto a paixão ideológica conduz à cegueira absoluta.
Numa época que se pretende pós-ideológica, como é o caso do tempo presente, poder-se-ia ser levado a admitir a diluição da dimensão passional no processo de formação da decisão política. Puro engano. Desamarradas das grandes construções ideológicas que caracterizaram o século anterior, as paixões ressurgem no debate político em todo o seu esplendor. Têm agora outras características. Já não se inserem em grandes relatos históricos, nem tão pouco se projectam em representações de natureza utópica. São paixões de outra ordem, convenientemente dessacralizadas, condizentes com um contexto dominado por grandes fluxos de ansiedade individual e colectiva, pela preponderância da noção de insegurança num sentido muito lato e pelo deterioramento dos mecanismos tradicionais de integração política, seja no plano prático, seja na esfera do simbólico.
A Europa é o continente onde se vive melhor sob todos os pontos de vista. Apesar disso, um profundo mal-estar percorre a generalidade dos países europeus. Isso tem-se vindo a reflectir nos resultados eleitorais verificados nos últimos anos em quase todo o lado. Eleição após eleição constatamos o crescimento de forças políticas de orientação extremista, observamos o regresso de discursos nacionalistas de natureza xenófoba e assistimos à emergência de projectos dificilmente compreensíveis, os quais por alguma preguiça intelectual nos apressamos a rotular de populistas. Alguns espíritos dogmáticos propõem explicações simplistas para tudo isto: para o neo-marxismo básico tudo radica no domínio das desigualdades económicas inevitavelmente geradas pelo funcionamento do sistema capitalista; para a nova direita nacionalista, a génese de todos os problemas está no projecto político de integração europeia. Uns e outros incorrem, a meu ver, num erro básico: recusam-se a compreender a verdadeira dimensão das mudanças em curso, que têm particular relevo nas sociedades mais evoluídas e apontam para uma profunda transformação no próprio plano antropológico.
Atentemos apenas em três grandes alterações que marcam o nosso tempo: a progressiva aplicação dos processos de automação a todas as áreas da vida, o surgimento da inteligência artificial e a evolução do próprio conceito de trabalho no contexto de um mundo globalizado. É absurdo pensar que poderemos responder a estes novos temas recorrendo ao receituário ideológico concebido no século XIX, no contexto de sociedades radicalmente distintas das actuais. O desajustamento entre estas novas exigências da realidade e os modelos e categorias clássicos de resposta política às mesmas está na origem da situação profundamente confusa que nos inquieta e nos inunda de ansiedade.
Olhemos para o caso italiano. Os partidos de centro-esquerda e de centro-direita sofreram uma derrota histórica. Avançaram eleitoralmente os ultranacionalistas de propensão racista e um partido enigmático que apela à democracia directa de base digital, denuncia os supostos privilégios de uma casta político-económica, contesta as medidas de contenção orçamental e advoga uma política dura em relação ao fenómeno da imigração e dos refugiados. Como ler estes resultados senão com o receio de uma profunda degradação da vida cívica num país que continua a ser um dos principais centros de produção do pensamento político europeu e onde nos últimos anos o consumo interno aumentou substancialmente e a maioria das pessoas não revela uma excessiva apreensão com as suas condições materiais de existência? Haverá com certeza bolsas de pobreza, subsiste um elevado número de desemprego, em especial nos sectores mais jovens, e o crescimento económico não é dos mais famosos, mas a Itália está muito longe de ser um país dominado por profundas carências económicas.
O que poderá justificar então estes resultados? Justamente a ideia de que as paixões muitas vezes prevalecem sobre os interesses. Os grandes partidos tradicionais burocratizaram-se e abriram espaço a projectos assentes numa perspectiva de maior participação política, ainda que muitas vezes ilusória. O movimento Cinco Estrelas é nesse aspecto paradigmático. Formado por um cómico politicamente inconsistente e por um homem ligado às novas tecnologias, ideologicamente neutral, abriu as portas à participação pública de gente muito diversa, nalguns casos de assinalável qualidade moral, intelectual e política. Alguns dos deputados mais interessantes que encontrei no Parlamento Europeu são jovens representantes deste novel partido político italiano. Abominam a corrupção e o clientelismo, defendem causas justas e agem com verdadeiro sentido de serviço público. Isso levou-me a perceber que há uma grande diferença entre o designado populismo e o extremismo ideológico, e que nada ganhamos em ostracizar radicalmente novos movimentos políticos que são sinais dos tempos conturbados que atravessamos. Significa tal coisa que devemos abdicar de defender um núcleo fundamental de princípios e valores inerentes ao modelo da democracia liberal? Jamais. O que devemos é tentar compreender a presente instabilidade do espaço europeu à luz dessa mudança radical que, como referi acima, supera em muito as categorias politicas e económicas, remetendo para o domínio do antropológico. Isso obriga-nos a alguma humildade, quer no plano teórico, quer no plano político. Essa é, contudo, a obrigação de quem professa genuínos ideais democráticos.
2. António Costa e Rui Rio encontraram-se e a reunião decorreu, ao que consta, num clima ameno e muito civilizado. É uma boa notícia para o país. Espero que nessa reunião tenham debatido os temas europeus. A meu ver é essencial que os dois principais partidos políticos portugueses se entendam em torno dos projectos de reformulação da União Europeia presentemente em discussão.

EDITORIAL
Não, isto não é normal
Os direitos das mulheres são direitos humanos. Esta frase é tão simples e tão óbvia e, no entanto, ainda há quem queira fazer de conta que não a percebe.
DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE
PÚBLICO, 8 de Março de 2018
Os direitos das mulheres são direitos humanos. Esta frase é tão simples e tão óbvia e, no entanto, ainda há quem queira fazer de conta que não a percebe. Lutar pelos direitos das mulheres, ser feminista, é defender a dignidade da nossa sociedade — e não é normal que não seja assim.
Só não vê quem não quer: as notícias que temos hoje mostram outra vez quão escandalosa ainda é a diferença de tratamento das mulheres. Saber que em Portugal a crise foi aproveitada para aumentar a desigualdade nos salários em função do género ou que somos recordistas na diferença de pagamento a mulheres com mais de 65 anos deveria envergonhar-nos a todos, a começar pelos homens que mandam. Porque são sempre homens que mandam e isso é parte importante do problema – não porque são homens, mas porque são homens que não entendem o feminismo como uma causa de todos os seres humanos.
A custo, lá se vai conseguindo fazer passar legislação que promove a igualdade. Falta o resto: falta mudar as mentalidades, algo que só se conseguirá com a educação para a cidadania. E se há algo que justifica que ainda hoje exista um dia da mulher, é precisamente o risco de que esses direitos adquiridos nos últimos anos ainda sejam revertidos – porque ainda vivemos numa sociedade em que se acha normal e racional remeter as mulheres a um papel menor.
Mas não, não é normal. Não é normal que se aceite que as mulheres recebam menos. Não é normal que se acolha como natural a ausência de mulheres no topo das empresas do PSI 20. Não é normal que se encolham os ombros com as vergonhosas estatísticas de violência doméstica que temos para mostrar. Não é normal que se aceitem as alarvidades de algumas sentenças que saem dos tribunais deste país.
Quem pactua com este estado de coisas não é humanista. E em Portugal, infelizmente, ainda há algumas pessoas assim. Este problema tem pouco a ver com a direita e com a esquerda e muito a ver com a postura de cada um face à sociedade. E passa por todos nós, cidadãos, sermos muito mais exigentes com os nossos representantes sociais. Temos de aumentar a nossa cultura de exigência face aos servidores públicos, de forma a melhorar o ar que respiramos em democracia. Seremos todos melhores numa sociedade mais justa, mais igual, mais paritária. Porquê? Voltamos ao início: porque os direitos das mulheres são direitos humanos.


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