Um “portrait” de Maria João Avillez, com entrevista: Diogo Infante. Para
além da apresentação de um dos espaços onde aquele trabalha – estúdios na TVI –
que logo descreve, no rigor informativo apenso à sua vivacidade jornalística –
o seu entusiasmo pelo actor que apresenta: Diogo Infante. Um actor que,
de facto, parece impecável na sua forma de actuar, de cuidado excessivo com o
que diz e o como dizer, o tal “sorriso figé” colado à sua figura de competência
e reserva, mas que, por contraste, me lembrou os dois comparsas de “Sozinhos
em Casa” - Henrique Viana e Miguel Guilherme
– também impecáveis nos seus papéis de representantes do mulherengo e do
meticuloso chato da série. Henrique Viana, Victor Espadinha, Ana
Zanatti, figuras de tanto relevo teatral e nem sempre aproveitadas, não
se percebe bem porquê, nos palcos televisivos, talvez pela sua elegância intelectual
incompatível com a violência e a mediocridade dos tempos que temos vivido.
Diogo Infante impecável,
sim, no pouco que conheço dele, e sempre apurado e contido. Tenho saudades
desses que citei, tal como tive sempre da Irene Isidro que tão excelente
actriz cómica era e passou despercebida nesses mesmos espaços - os únicos da minha competência actual.
Tributo a um actor
OBSERVADOR, 28/2/2018
No Trindade interpreta e encena a partir de amanhã uma peça de Yasmin
Reza. Não conheço a peça, conheço-o a ele. No palco ou no écran Diogo Infante é
um acontecimento. Amanhã também.
1. Um grande homem de teatro. Actor e encenador (ainda bem que não
tenho que escolher qual dessas duas naturezas suplanta a outra), protagonista
intenso de múltiplas peças, honrando o texto e dignificando os felizes
contemplados autores que o tiveram como intérprete ou director, Diogo
Infante, sóbrio e reservado, é o produto de uma boa dose de autodomínio
revista por uma bem educada autoridade própria.
O que o torna de imediato confiável: seja qual for a situação, ela está
controlada. Há também o rigor para consigo próprio e há – e é isso que talvez
mais o distinga – a segurança que transmite nas situações mais tensas ou nas
questões mais triviais e que não pode deixar de inspirar os actores que dirige,
os colegas com quem contracena, as equipas com quem trabalha. O sorriso sim,
pode por vezes ser “figé” – só um desatento não o percebe –, mas quem não
recorre a um sorriso postiço por exaustão ou contrariedade? E depois,
claro, há ainda – ou sobretudo? – as suas defesas, inexpugnáveis muros que
ergue à sua volta, contra toda a sorte de assaltos. Sabendo que, regra
número um, tem de se preservar para (poder) seguir em frente.
No Trindade, teatro que agora dirige, irá interpretar, a partir desta
quinta-feira, a peça de Yasmin Reza, “O Deus da Carnificina”, também por si
encenada. Não conheço a peça, conheço-o a ele. No palco ou no écran é um
acontecimento. Amanhã também.
2. Fui á procura de Diogo Infante e encontrei-o na Plural (TVI), onde
é um dos protagonistas da novela “Jogo Duplo”.
Nos imensos estúdios havia uma surpreendente e bem disposta cumplicidade
no ar, risos e sorrisos, um ambiente leve e no entanto… que complexo e vasto
mundo aquele: um formidável naipe de actores, técnicos, realizadores, autores,
directores de actores, assistentes, aderecistas, cabeleireiras, maquilhadoras,
guarda-roupa, motoristas, catering… Centenas de pessoas movendo-se segundo uma
ordem invisível que sem sobressalto lhes ditava o que fazer e onde e quando.
“Jogo Duplo” é uma surpresa pela manifesta diferença da sua estrutura
narrativa, longe do já feito e refeito até aqui. Mas bem mais que “duplo”, o “jogo”
aqui é duro, por vezes luminoso e, de vez em quando, quase sórdido. Ou o eterno
combate entre o bem e o mal.
3. Diogo Infante já está vestido de “Manuel Quian”: traje negro,
camisa escura aberta, muitos anéis e muita crueldade doublé de falsa doçura.
Personagem manipuladora e implacável, é como se viesse do inferno e quase me
engasgo a comer a sanduíche (não há tempo para almoço), tão impressiva é a sua
aparência.
“As linhas de acção deste texto têm um determinado tipo de preocupações
que é invulgar na escrita de uma novela. E o facto de estarmos no segundo
horário dispensa o canal da preocupação de temas generalistas ou abrangentes
‘para agradar’, podemos ser um bocadinho mais adultos. Nos temas, na linguagem
por vezes mais dura e mais crua.
Arriscaram. E Diogo Infante, também?
“Logo às primeiras leituras apercebi-me que o meu personagem era
estranhíssimo. Resisto sempre à tentação de julgar os personagens que
interpreto, tenho de gostar deles, mas aqui há uma dimensão que quase me
escapa, umas ‘cores’ carregadas que não consigo encontrar completamente…”
Ambos sabemos que não é verdade, o actor tem o seu “Quian” na mão e na
pele, enchendo o écran do seu maléfico magnetismo. O que não sei – e me
interessa mais – é como ele, actor, director, encenador, gestor, consegue ser
tanta gente ao mesmo tempo, tendo de ser bom nessa desmultiplicação e bom no
seu resultado. Vivendo em Sintra, gravando em Bucelas e dirigindo e
representando num teatro no Chiado.
Pergunto-lhe: é um dom, há uma receita, um segredo? Houve um treino?
“Disciplina, disciplina”, diz-me ele. “Recebo os planos de filmagens da
novela a meio da semana e apercebo-me logo do tempo que tenho livre. Se gravo
de manhã, vou à tarde para o teatro e vice-versa. E como tenho as noites
livres, os ensaios da peça estão sempre assegurados”. Sorriso não “figé”:
“são dias muito longos…”
“Tenho uma grande sorte em contar com uma memória fantástica. Só pela
repetição decoro logo. E aqui na novela tenho um truque: não decoro… reproduzo
o sentido, respeitando obviamente as deixas, o guião. Tenho as cenas no meu
telemóvel, fazemos sempre umas passagens antes de gravar e basta-me ter o
sentido da cena na memória. É uma forma de não me extenuar, apesar de dormir
bem. Se decorasse tudo de véspera, armazenava muita informação num espaço que
me é necessário para outras coisas”.
Uma gestão que aprendeu a fazer com o tempo, diz ele, como um tecelão
que me explicasse os segredos do modo como conduz a linha por entre o algodão e
a seda.
“Ah, acabo por me divertir, há sempre uma margem de algum inesperado e
como decoro as ideias, aproprio-me do texto de um modo diferente do que se
tivesse de dizer palavra por palavra… Leio, apanho a ideia, faço. Claro que
as autorias (Artur Ribeiro) da novela me dão essa liberdade. Confiam, sabem que
não vou divagar.”
Eis desvendado parte do segredo das peças do puzzle: tempo, uso inteligente da memória, dormir
bem, planificação racional da agenda transbordante. A outra parte é aquilo
a que ele chama de “paixão”: despe um personagem para dez minutos depois
se vestir de director de teatro? Fá-lo com “paixão”. Troca o papel do temível
Quian em Bucelas pelo “dr. Alberto Cardoso de Meneses” de Yasmin Reza no
Trindade no mesmo dia? O combustível é a tal “paixão” ou “quem corre por
gosto não cansa”, acha ele, como se fosse simples.
4. Diogo Infante aprecia tanto o Trindade – dirige-o desde o verão
passado – quanto os bons lisboetas: considera-o uma “joia”, é uma “honra ter
nas mãos um objecto tão bonito”.
“Nas últimas décadas o Trindade foi essencialmente um palco de
acolhimento aberto a diversas manifestações artísticas o que me levou a não se
lhe ter reconhecido uma identidade clara. Não por boas ou más razões, eram
apenas as suas concretas circunstâncias. O que pretendo hoje – como aliás já
vinha ocorrendo um pouco nos últimos dois anos com a direcção de Inês Medeiros
– é tornar este teatro um espaço de produção teatral própria: maximizando os
recursos financeiros de que disponho, através de parcerias e sinergias,
esticando o dinheiro que tenho. Dispomos evidentemente de uma estrutura fixa
que será aumentada conforme as necessidades dos espectáculos, com contratações
ou sub-contratações”.
Numa palavra, uma mudança de paradigma: em vez de um teatro sem fio
condutor, muito ecléctico e “com muita coisa”, passará a haver, certamente com
mais substância e outra lógica, “uma programação essencialmente teatral”.
“O eixo principal será a produção de espectáculos teatrais de longa
duração, assentes num teatro de texto – clássicos, contemporâneos – mas onde se
concretize essa coisa de que gosto tanto que é a capacidade do actor em
comunicar, chegar ao grande público. Quero fazê-lo através de textos
referenciais para que possamos ter um espaço privilegiado na cidade de Lisboa.“
Pausa: “É preciso chamar as coisas pelos nomes: nos últimos oito, dez
anos, assistimos a uma tendência para que todas as estruturas com produção
própria invistam sobretudo num teatro dito alternativo. Proponho que voltar aos
clássicos seja uma alternativa ao teatro alternativo, recuperando alguns
valores que para mim são primordiais como actor. “
Uma espécie de contra-corrente? “Sim. Há espaço de desenvolvimento de
determinados textos que acredito que chegam ao público com qualidade e
substância. A “Virginia Woolf” que fizemos o ano passado é um excelente
exemplo disso mesmo.” (oh se era!)
O “Deus da Carnificina” que amanhã descerá sobre o Trindade, traz
consigo uma quantidade sulfúrica de crítica à natureza humana na sua vertente
mais violenta:
“Vão cair máscaras e filtros dos ‘padrões da civilização’, irromperá a
provocação e o cinismo mais descontrolado. Nada disto é novo, mas é muito
curiosa a forma como a Yasmin Reza põe a nu essa natureza a partir de uma
situação intencionalmente muito banal. Como seres inteligentes temos de
reflectir sobre isto para nos controlarmos e domar essa violência…”
Meio minuto depois, o actor sumia-se na penumbra silenciosa dos
bastidores. Quando chegou ao plateau era já o diabólico Quian.
O milagre do teatro em todo o seu esplendor para quem dele é parte.
PS: Já que falo de novelas, coisa menos frequente na minha vida,
poderia dizer que o “Jogo” é “duplo” também porque João Catarré, protagonista
principal, divide em absoluto o magnetismo do écran com Diogo Infante. Tem trinta
e sete anos, muito ofício de televisão, mas agora “acordou” os espectadores com
a sua notabilíssima interpretação de “João Guerra”. Avisar não ofende:
fixem-lhe o nome. Por mim já lhe encomendei entrevista.
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