Um texto impecável, feito por um condutor de
opinião, inteligente e seguro de si, que suavemente desmascara o fenómeno
monstruoso que se vive hoje, de invasão da privacidade, que os meios
tecnológicos cada vez mais possibilitam e conduzem, olho poderoso e
assustadoramente vigilante, à maneira de Orwell, ou reduzindo cada ser a um
provável Josef K. envolvido em “processo” acusatório inesperado, embora nem
sempre inocente nos tempos de agora, ao contrário do herói de Kafka, apanhado
na surpresa de uma condenação sem culpa. Em todo o caso, a perversão do mundo
está de tal modo infiltrada e ramificada, sob o sacrossanto império do “vil
metal” (o titilante decididamente mais desprezível do que o da nota apenas rangente),
que atinge tudo e todos, mesmo a própria imprensa defensora dos bons costumes -
afinal no interesse do seu próprio lucro, no propalar vitorioso dos vários
escândalos, cada vez mais tonitruantes.
José Pacheco Pereira analisa com
uma competência, sem retórica mas finamente cortante, o fenómeno, não mais do
absurdo, como o faziam os escritores do absurdo, mas do embuste e da
coscuvilhice que caracterizam esta época da tecnocracia, favorecedora do
secretismo e, repentinamente, explodindo em acusação e vexame sensacionalista deprimentes.
Isso me trouxe à ideia, em ânsia de evasão, “A
minha casinha” da bela Milu, que, em feliz
arranjo musical, de simplificação e supressão da pieguice bisonha da letra de
João Silva Tavares, os “Xutos e Pontapés” transformaram na sua
orquestração simplista e repetitiva dos novos tempos, também já idos, mas que
perduram e que aponho, em preito admirativo, ao texto de José Pacheco
Pereira que deles bem difere, é claro, mas não condenará, sensível à
modernidade ruidosa do rock:
MILU: (in “O Costa do Castelo”)
A minha casinha
Que saudades eu já tinha
da minha alegre casinha
tão modesta como eu.
Como é bom, meu Deus, morar
assim num primeiro andar
a contar vindo do céu
da minha alegre casinha
tão modesta como eu.
Como é bom, meu Deus, morar
assim num primeiro andar
a contar vindo do céu
O meu quarto lembra um ninho
e o seu tecto é tão baixinho
que eu, ao ir para me deitar,
abro a porta em tom discreto,
digo sempre: «Senhor tecto,
por favor deixe-me entrar.»
e o seu tecto é tão baixinho
que eu, ao ir para me deitar,
abro a porta em tom discreto,
digo sempre: «Senhor tecto,
por favor deixe-me entrar.»
Tudo podem ter os nobres
ou os ricos de algum dia,
mas quase sempre o lar dos pobres
tem mais alegria.
ou os ricos de algum dia,
mas quase sempre o lar dos pobres
tem mais alegria.
De manhã salto da cama
e ao som dos pregões de Alfama
trato de me levantar,
porque o sol, meu namorado,
rompe as frestas no telhado
e a sorrir vem-me acordar.
e ao som dos pregões de Alfama
trato de me levantar,
porque o sol, meu namorado,
rompe as frestas no telhado
e a sorrir vem-me acordar.
Corro então toda ladina
na casa pequenina,
bem dizendo, eu sou cristão,
“deitar cedo e cedo erguer
dá saúde e faz crescer”
diz o povo e tem razão.
na casa pequenina,
bem dizendo, eu sou cristão,
“deitar cedo e cedo erguer
dá saúde e faz crescer”
diz o povo e tem razão.
Tudo podem ter os nobres
ou os ricos de algum dia,
mas quase sempre o lar dos pobres
tem mais alegria.
ou os ricos de algum dia,
mas quase sempre o lar dos pobres
tem mais alegria.
OPINIÃO
O perigo para a democracia das pessoas muito
bem “informadas”
Uma das características do “círculo de confiança” que manda em Portugal
é o acesso a uma informação vastíssima.
José Pacheco Pereira
Público, 10 de Março de 2018
Vamos considerar um tipo especial de informação, não a que vem nos
jornais, mas a que, se fôssemos jogadores na bolsa, permitiria aquilo a que se
chama “insider trading”, o que é um crime. A definição canónica é
qualquer coisa como isto: “O uso de informação relevante, ainda não
divulgada, ‘por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso’, com o objectivo
de auferir lucro ou vantagem no mercado, para si ou para outrem.” O mercado
de que aqui estamos a falar inclui a bolsa, mas é essencialmente outro: é o
mercado do poder na elite política, económica, social, naquilo a que tenho
chamado o “círculo de confiança”, o grupo de pessoas que manda em Portugal,
pelo dinheiro, pela influência, por estar no lugar certo na altura certa, mas
acima de tudo pelo que sabe sobre quase tudo o que importa, aquilo que sabe
sobre nós, e nós não sabemos ou queremos ou permitimos que se saiba. Não é
evidentemente dos que denunciam anonimamente abusos e crimes, os chamados
“whistleblowers”.
Na parte de baixo desta cadeia alimentar está a pequena corrupção pela
compra da informação, desde o funcionário de uma autarquia que sabe quando um
processo vai a uma reunião e informa o interessado, como se fosse um grande
segredo, ou o que se está a passar no futebol. O caso dos nossos dias envolve
um clube, mas duvido que não seja uma prática generalizada por todo o mundo de
milhões que é o futebol e os grandes clubes. Pode ser pela pequena corrupção, mas é
também pelo clubismo que ajuda a “passar” informações mesmo sem contrapartida,
pela ligação promíscua de agentes judiciais, técnicos de informática ou dos
impostos, polícias e magistrados com círculos deste poder. Que aí há corrupção
ou insider trading generalizado é um segredo de Polichinelo. Desde
as redacções de jornais que têm acesso a fugas de informação tão sistemáticas
que não podem ser pontuais, nem gratuitas, até comentadores que podem dar
informação privilegiada ou porque lhes é transmitida para ser divulgada dessa
forma não atribuída, mas que se percebe que só pode ter vindo ou de advocacia
de negócios ou de entidades que pretendem aí obter benefício, como, por
exemplo, o Banco de Portugal. Não há volta a dar: alguém informou alguém
do que não devia, ou para vantagem do fornecedor, ou para vantagem do
fornecido. E, como não há verdadeiro escândalo com estas práticas, nunca é
feito qualquer escrutínio e tudo continua na mesma.
O Estado facilita esta circulação indevida de informação, recolhendo-a
em claro abuso de qualquer regra de necessidade, através do fisco ou de um
sistema bancário que é hoje altamente intrusivo da privacidade. É tudo em nome de boas causas, seja a do
pagamento dos impostos devidos, seja na luta contra o branqueamento de
capitais. Mas vai-se longe de mais, ao mesmo tempo que a informação excessiva
adquire um valor em si mesma para além da finalidade inicial, e, sendo obtida,
não é protegida.
No outro limite está a informação que procuram os serviços
de intelligence, saber coisas sobre aliados e oponentes que permitam ter
vantagem geopolítica, nas negociações ou na guerra. Obter essas informações, seja por meios
técnicos seja pela chamada “humint”, a informação humana de agentes infiltrados
ou comprados, é um processo vital. A importância deste tipo de informações faz
com que o seu uso “desleal”, ou seja, o fornecimento de informações
qualificadas a um adversário, competidor e inimigo, seja dos crimes com penas
mais duras em vários países, a acabar na pena de morte.
Mas quem pensa que a procura sistemática de informações se limita à espionagem
política ou policial está muito enganado. O público comum não os vê, e a comunicação
social dá-lhes pequeno relevo mesmo quando lhes tem ou pode ter acesso, mas
existem boletins confidenciais com assinaturas de montante muito elevado, com
pequena circulação, que fornecem a uma elite que os pode comprar ou ter-lhes
acesso, informação privilegiada que nalgum sítio foi indevidamente obtida. E
quem pense que os detectives privados são contratados apenas para casos de
divórcio está bem enganado.
É verdade que muitas destas informações são obtidas legalmente, mas
outras são obtidas de forma mais reservada, pelo acesso a lugares e cargos,
outras são obtidas no âmbito do segredo profissional, mas estão lá na cabeça do
seu portador, quando ele tem de intervir ou decidir, outras são obtidas pela
frequência social “certa”, outras pela promiscuidade entre lugares políticos e
sectores de negócios, ou de serviços, seja na advocacia de negócios, seja na
consultoria financeira ou nas auditoras, ou nas relações com jornalistas,
directores e redacções.
Um dos meios menos escrutinado são os gabinetes ministeriais, o mundo
cinzento dos assessores e consultores, que fazem muitas vezes o sale
boulot que os políticos não se arriscam a fazer. Muito do que se
passa nestes meios, repito-o, não tem qualquer escrutínio e não é do
conhecimento público: alguém, por exemplo, faz alguma ideia de quanto a
“informação” de alguma imprensa económica e de negócios tem origem em agências
de comunicação que são contratadas a peso de ouro para “colocarem” as notícias
que lhes interessam e que aparecem como sendo escolhas editoriais das redacções
sem qualquer menção de origem? Qual é o trade-off para os
jornalistas? Bilhetes para um jogo de futebol?
Este tipo de informações — reservadas, confidenciais, discretas,
secretas — são de um enorme valor. Ter essas informações é em si mesmo uma
enorme vantagem. Volto
ao mesmo: uma das razões por que tenho chamado a atenção sobre o “círculo de
confiança” que existe e manda em Portugal, muito para além da democracia
parlamentar e da governação, é que uma das características da sua pertença e
dos seus membros é o acesso a uma vastíssima informação que, por sua vez,
coloca o seu detentor em condições de ainda obter mais informações pelos cargos
de “confiança” a que acede. Os círculos em que se move são densos de informação
pessoal, empresarial, financeira e política, num contínuo que permite saber o
que é que está em curso, quem quer comprar o quê, quem tem dinheiro para o
pagar, quem, não o tendo, o pode obter e como, quem são os seus aliados e os
seus adversários, quem está em queda, quem vai falir, quem está em alta e pode
aspirar ser um bom parceiro, quem é venal e quem não é, com quem se deve falar
para avançar um negócio ou para sugerir a escolha de um nome ou vetar
outro.
Há por isso transições de lugar para lugar que são muito perigosas — por
exemplo, um director de um jornal que sabe quais são as fontes das fugas que
tinha num determinado partido, quando vai para a vida política leva essa
informação que lhe dá a possibilidade de uma chantagem invisível e que não
precisa de ser nomeada para existir. Ou um político que teve acesso a
informações relevantes em áreas sensíveis, como a defesa ou os serviços de
informação, quando passa a lobbyista, o seu valor depende desse acesso anterior
e das informações que obteve — uma das mais úteis para o novo patrão é a de
saber com quem se deve falar para obter novas informações, ou para “ajudar” a
uma decisão que se pretende. A informação aqui vale ouro.
A democracia é um regime frágil e a democracia portuguesa ainda mais
frágil é. Uma das razões é que há um excesso de poder fáctico que, exactamente
por o ser, é invisível e não nomeado, e muito menos escrutinado. Podemos encolher os ombros e dizer que
sempre foi assim e vai continuar a ser. Por outro lado, a lei e o direito —
incluindo o facto de uma parte dos seus executores fazerem parte do mesmo
círculo de que estamos a falar — têm sérias limitações quando se trata de
atacar os poderosos que ainda não tombaram.
Esses, sim, todos vão lá atirar uma pedra. E, quando tombam, percebe-se
muita coisa de como é que se pode ser “dono disto tudo”. Mas sobra o “sistema”,
e esse continua por aí. Contra ele só conheço uma arma, a que eles mais temem:
a luz. A luz do debate público e... das informações sobre os abusos das pessoas
demasiado bem “informadas”. Mas a verdade é que são eles também quem escolhe
directores de jornais, editores da rádio e televisão e têm o enorme poder de
decidir o que pode ser dito e o que não pode.
Colunista
A Minha Casinha
As saudades que eu já tinha
Da minha alegre casinha
Tão modesta quanto eu
Da minha alegre casinha
Tão modesta quanto eu
Meu deus como é bom morar
Modesto primeiro andar
A contar vindo do céu
Modesto primeiro andar
A contar vindo do céu
As saudades que eu já tinha
Da minha alegre casinha
Tão modesta quanto eu
Tão modesta quanto eu
Meu deus como é bom morar
Modesto primeiro andar
A contar vindo do céu
Modesto primeiro andar
A contar vindo do céu
As saudades que eu já tinha
Da minha alegre casinha
Tão modesta quanto eu
Da minha alegre casinha
Tão modesta quanto eu
Meu deus como é bom morar
Modesto primeiro andar
A contar vindo do céu
Modesto primeiro andar
A contar vindo do céu
La ra la la la la la la
La ra la la la la la la
La ra la la la la la la
Instrumental
As saudades que eu já tinha
Da minha alegre casinha
Tão modesta quanto eu.
Da minha alegre casinha
Tão modesta quanto eu.
Meu Deus como é bom morar
Modesto primeiro andar
A contar vindo do céu.
Modesto primeiro andar
A contar vindo do céu.
Do céu
Do céu
Do céu
Do céu
Do céu
Nenhum comentário:
Postar um comentário