Ainda a propósito da reacção
de tantos à proposta de leccionação de Passos Coelho em universidades
portuguesas, continuou Alberto Gonçalves o seu texto do sábado anterior,
sobre o ISCSP, apresentando deprimente quadro universitário, no campo das “humanidades”,
primando pelo rebuscamento vão nos títulos de algumas obras e os solecismos frequentes
na escrita, para além de uma leccionação anquilosada no seu psitacismo. Um
quadro onde uma lecionação baseada em experiência ministerial como a de Passos
Coelho, nos seus quatro anos de empenhamento em erguer o país do seu fundo poço
de miséria e dívida, teria provavelmente tanto peso educativo, mesmo sem os galões
requeridos, como o de qualquer outro distinto educador possuidor de todos os
requisitos para leccionar.
Já que cita as suas
experiências universitárias, eu lembro também as minhas, num outrora em que o
nosso professor de latim, mais ocupado com andanças políticas, faltava à
maioria das aulas em Coimbra, passando o seu tempo por Lisboa, marcando
antecipadamente os inúmeros textos de autores latinos para traduzirmos para os
exames, já que se não podia dispensar deles, por não se fazerem as frequências
respectivas, ao longo do ano, como nas demais disciplinas, o que eu bem estranhei
então. Creio que o íntegro Passos Coelho jamais actuaria como o meu professor
de Latim, de outros tempos.
Mas o título do artigo de
Alberto Gonçalves, tão deprimente, não se aplica, é claro, a todo o ensino
universitário. Diz-se que uma andorinha não faz a primavera, embora o quadro apresentado
não seja unitário.
O templo do saber: subsídios para uma visão
menos apalermada da universidade em contexto nacional contemporâneo
OBSERVADOR, 17/3/18
A moral da história é que, com frequência, um percurso académico
simulado não produz resultados muito diferentes dos percursos académicos
autênticos. Sobretudo no vago universo das “humanidades”.
Tenho tantas saudades da universidade quanto da varicela, com a
agravante de que, ao contrário do que sucedeu com a segunda, ainda não esqueci
a primeira. Lembro-me dos professores, na maioria semi-alfabetizados. Lembro-me
das aulas, repetições de cartilhas caducas e puras alucinações. Lembro-me das
“referências teóricas”, quase sempre maluquitos franceses, argentinos e até
portugueses. Lembro-me das ocasiões em que me perguntei o que fazia ali. E
lembro-me de desistir de fazer: a partir de certa altura, decidi dedicar-me a
conversas com um punhado de colegas, nas horas livres e nas restantes.
Passei os últimos três anos do curso no café vizinho, a trocar impressões,
livros e cassetes. Ao longe, no interior de um barracão lindíssimo, decorriam
prelecções fascinantes em redor de trabalhos com as palavras “subsídios” ou
“contributos” no subtítulo. À aproximação dos exames, eu folheava anotações
alheias e fotocópias de maoistas parisienses, despejava o entulho nos testes e,
menos devido à inteligência própria do que à boçalidade daquilo, obtinha uma
nota distinta. Um magnífico dia, o suplício acabou. O vetusto barracão emitiu
um diploma em pergaminho a declarar-me licenciado. Por mim, nunca levantei o
diploma e jurei, embora não fosse preciso, que a experiência académica
terminaria ali.
É verdade que a minha “formação” (digamos) aconteceu em sociologia,
matéria propensa ao burlesco. Nos anos seguintes, porém, aprendi (a aprendizagem é um processo) que,
por incrível que pareça (e parece), há pior. Não desejo a ninguém o contacto
directo com a realidade: um passeio pelos sites dos “estabelecimentos”
disponíveis, com consulta dos cursos disponíveis, dos programas disponíveis e
dos docentes disponíveis, é suficiente para esclarecer os incautos. Se os
incautos insistirem, eles que se inscrevam em certas coisas que há por aí.
Não valeria a pena dar exemplos. Mas dou um. Nas últimas semanas, causou
escândalo a notícia de que Pedro Passos Coelho iria providenciar lições num tal
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa
(ISCSP). As patrulhas ideológicas, sob a forma dos professores que subscreveram
um protesto alusivo, correram logo a chamar a atenção para a falta de
credenciações do ex-primeiro-ministro. Conseguiram chamar a atenção para a
falta de juízo de quem confunde educação com o evangelismo das “causas”. Na
tentativa de denunciar uma hipotética fraude, recordaram a fraude real a que,
com as excepções da praxe (sem trocadilho), se chama “ensino superior”.
Dos indignados, o mais “público” é talvez o deputado, ou antigo
deputado, socialista Miguel Vale de Almeida. Dos estudos que publicou,
destaco “Ser mas não ser, eis a questão. O problema persistente do
essencialismo estratégico”; “A teoria queer e a contestação da categoria
‘género’” e “O esperma sagrado: algumas ambiguidades da homoparentalidade em
contextos euro-americanos contemporâneos”. Cito um resumo do último,
escarrapachado na página “Ciência-IUL – A excelência da investigação e ciência
no ISCTE”: “Igualmete (sic), quanto menos provisão (sic) legal exista, menos
parece haver una cultura de como fazer e proceder em situações (sic) de disputa
de paternidade entre gays e lésbicas, assistindo-se ao recurso ou à normativade
(sic) legal, ou à normatividade moral (e necessariamente heteronormativa (sic),
androcêntrica e patrilinear) a ela associada.” Concedo uma pausa para o aplauso
da forma e do conteúdo. E depois um minuto de silêncio para evocarmos o
abaixo-assinado e reflectirmos na “dignidade dos profissionais da ciência e do
ensino”.
O problema não é o dr. Vale de Almeida achar que Pedro Passos Coelho não
serve para leccionar na universidade. O problema é o dr. Vale de Almeida achar
que o dr. Vale de Almeida serve. Outro problema é a universidade concordar. E o problema maior é a
crença generalizada de que a universidade – a exacta universidade que aceita
sumidades como o dr. Vale de Almeida – é um abrigo de inquestionável erudição.
E de “prestígio”. Pela parte que me toca, só não escondo que frequentei
semelhante antro na medida em que seria ridículo, e provavelmente escusado.
Mesmo assim, inúmeros compatriotas ostentam as habilitações com orgulho. E uma
razoável quantidade finge habilitações com empenho.
Já é rotina. De vez em quando, destapa-se um político que,
a bem do gabarito, falsificou o currículo. Esta semana, o destapado foi um Feliciano
Barreiras Duarte, pelos vistos o novíssimo secretário-geral do PSD. Evito
os detalhes, entretanto divulgados com abundância, e noto apenas que, em lugar
de inventar uma licenciatura, o prof. dr. Feliciano optou por inventar um
emprego numa universidade californiana, a de Berkeley. Ah, Berkeley…
Também andei por lá – durante dez minutos, perdido após escolher a saída errada
para o aeroporto de São Francisco. Ao que consta, o prof. dr. arq. Feliciano
nem isso: as suas conexões à instituição especializada em censurar oradores
pró-Trump são meramente platónicas, o bastante para definir um carácter e, em
Portugal, uma carreira.
Repleta de maluquices (“…tem 21 livros publicados, prefaciou vários trabalhos de
investigação, foi conferencista e moderador em 164 conferencias, seminários e
afins, publicou cerca de 750 artigos e cronicas em jornais e revistas, e tem
variadas intervenções no plano profissional, extraprofissional, pública,
política e de outras tipologias”), dadaísmo (“…a elaboração deste relatório,
com os fins e objectivos anteriormente referidos, pretende-se que seja
consabido, o relacionamento entre a primeira e a segunda parte do mesmo, com a
evidência principal, que de entre a multiplicidade do currículo do seu autor,
poderá sobressair e outrossim destacar, o fio condutor de que…”) e desafios à
língua (ver acima), a “Conclusão” da tese de mestrado do prof. dr. arq. juiz
Feliciano, avaliada com 18 valores pela ex-ministra dos incêndios, é um
regalo.
A moral da história é que, com frequência, um percurso académico
simulado não produz resultados muito diferentes dos percursos académicos
autênticos. Sobretudo no vago universo das “humanidades”, onde a distância da
trafulhice à pertinência é subtil, não há escassez de vultos incapazes de
amanhar uma redacção da “primária”. Curiosamente, essas limitações não suscitam engulhos até ao momento
em que o vulto saltita para a política, por acaso das raras áreas do saber que
não carece de saber nenhum. Quem a sabe toda é o bastonário da Ordem dos
Médicos, que há tempos, por vergonha, pediu alternativas ao tratamento por
“dr.”. O homem tem a mania e tem razão.
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