Lembro-me como me chocou a ideia da regionalização de que se começou logo a falar, após “Abril”.
Para mim, havia províncias: Minho, Trás os Montes e Alto Douro, Douro
Litoral, Beira Alta, Beira Baixa, Beira Litoral, Ribatejo, Estremadura, Alto
Alentejo, Baixo Alentejo, Algarve, e os respectivas capitais de distrito,
além de outras cidades ou vilas e aldeias mais ou menos conhecidas. Tudo nomes
sonoros, bonitos, com as suas especificidades folclóricas, culturais,
artesanais, agrícolas, piscatórias, sem esquecer as coisas de renome universal
como o vinho do Porto e a cortiça das nossas exportações, mais o bailinho da
Madeira, como distintivo. Indignei-me então, como mais uma prova de desrespeito
e traição para com a velha nação, reduzida a despersonalizadas “regiões”, que
eu não sabia o que era, depois de ter sido desmantelada – a velha nação - das
suas “regiões” da gesta passada.
Afinal, ainda hoje penso assim. Não vejo que seja preciso “regionalizar”
para desenvolver. Os governos deveriam ser conscientes e responsáveis e amantes
do território nacional, sem perder o sentido do respeito pela velha história do
seu país, e respeitando todas as gentes que o compõem, não permitindo tantas
anomalias sociais como sempre se viu. De resto, o país cresceu, em rodovias e
outras vias, bastaria que acudisse às mazelas de que se fala tanto, através dos
representantes distritais que se deviam esmerar, como julgo que alguns o fazem.
Mas Ribeiro e Castro descreve e historia, ele próprio participante no processo
que por nós passou.
OPINIÃO O interior do interior
Estas terras pedem socorro. E o socorro de que precisam não são
bombeiros, mas administração pública.
JOSÉ RIBEIRO E CASTRO, Advogado e antigo líder do CDS PÚBLICO, 17 de Março de 2018
Leio e oiço lamentos, protestos, apelos sobre o interior: o abandono, a desertificação, o descaso, o
declínio, as crescentes fragilidades. Não são demais. São justos e muito necessários. O último alerta a que
reajo vem de Arlindo Cunha: “A problemática do interior é uma
situação gravíssima que Portugal tem para resolver. A situação é, de facto,
assustadora. Temos uma situação muito grave em termos de disparidade do
território.” Entre outros males mais referidos (disparidade de
rendimento e oportunidades e desertificação dos territórios), vaticinou “uma
catástrofe demográfica anunciada” e a “morte do património rural”. Podemos
repetir por estas ou outras palavras. Também escrevi um artigo, há dias, acerca desta
antiga e candente questão. O problema é passar à acção, que é o que
importa. Por que não se faz? Porquê?
Partilho o que retenho da minha experiência com esta questão, nos dois
ciclos de vida pública que tive: o primeiro de 1975 a 1983; o segundo de
1998 a 2015.
O primeiro correspondeu ao advento do que viria a chamar-se a regionalização.
Os constituintes conceberam as regiões administrativas, no lugar anteriormente
ocupado pelos distritos. Na passagem da ditadura para a democracia, a escolha
foi diferente da feita para os municípios: estes mantiveram-se tal qual e foram
democratizados; para os distritos, previu-se a extinção, forjando-se as
regiões. Nunca percebi bem porquê — não fui deputado constituinte. Sempre me
pareceu que teria sido melhor manter os distritos e democratizá-los, na sua
face autárquica — a outra face era desconcentração e dependeria já do governo
democrático.
Hoje, não tenho dúvidas: esse foi o pecado original. Se se tivesse
tratado os distritos como os municípios, a administração portuguesa teria
mantido equilíbrio e não teríamos golpeado a coesão territorial da forma tão
cavada e tão violenta como acumulámos nestas quatro décadas. A renovada
instituição distrital ter-se-ia desenvolvido harmoniosamente, à semelhança dos
municípios, proporcionando uma boa malha territorial, de descentralização e
desconcentração, e gerando boa capacidade de integração do desenvolvimento e de
economia do investimento público. É, como gosto de dizer, o patamar
suficientemente próximo e suficientemente distante.
O segundo pecado foi não ter concretizado logo o novo figurino
constitucional. Estas reformas devem concretizar-se na onda, quando o ferro
ainda está quente. As regiões administrativas foram uma ideia bebida nos
projectos de Constituição do PPD e do CDS, em 1975, talvez para reduzir o
número de unidades intermédias e alargar a sua dimensão espacial: os distritos
são 18; regiões houve-as apontadas a serem cinco, sete, oito, nove ou 11. Mas a
instabilidade governativa impediu-o até 1979.
Em 1980, o Governo Sá
Carneiro (PSD-CDS) agarrou logo no tema: lançou o Livro Branco da Regionalização,
abrindo a porta à concretização da reforma. A trágica morte de Sá
Carneiro, em Camarate, marcou novo sobressalto político. Recomposta a
estabilidade política na Aliança Democrática, o Governo Balsemão, por impulso
de Freitas do Amaral, relançou o processo no final de 1981. Foi um trabalho
político vigoroso. Ao longo de 1982, o Governo PSD-CDS concluiu todo o trabalho
técnico e de preparação legislativa, construindo-o em debate aberto por todo o
país — também participei em inúmeras sessões e conduzi algumas. No final de
1982, com tudo pronto, faltava levar as propostas de lei à Assembleia da
República, para debate final e aprovação. A AD, porém, entrou em crise, o
Governo caiu e abriu-se novo intervalo de incerteza política.
Portugal só volta a ter estabilidade
com a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva, em 1987. O Governo PSD retomou
o tema, sob orientação do ministro Valente de Oliveira, deixando o pacote
legislativo da regionalização aprovado em 1991. Na segunda maioria absoluta, o
Governo Cavaco muda de ideias, na esteira de resistências que já se
manifestavam — e, no CDS, em simultâneo, passou-se algo de semelhante,
acompanhando a viragem de CDS para PP. Por ironia do destino, a direita,
inventora das regiões administrativas, passou a anti-regionalista.
É esta a onda que rola
para o referendo de 1998, destinado a sufragar o relançamento do processo pelo
Governo socialista de Guterres. Apoiei a regionalização, como outros
sectores minoritários do PP e do PSD, assim como o PCP e parte significativa do
PS. Mas a direita em geral e uma minoria do PS chumbaram-na, dando um
resultado caricatural: o interior e o Norte chumbaram a regionalização! Como
na altura escrevi, senti-me como o escuteiro da anedota: quer ajudar a velhinha
a atravessar a rua, mas parece que o faz à força, pois a velhinha não quer.
À data do referendo, já a
questão tinha azedado e apodrecera. Haviam passado 22 anos sobre a
Constituição. E o novo contexto não ajudava. O discurso de vento em popa da “Europa
das Regiões” acrescentou enormes — e justificadas — desconfianças. O
“regionalismo”, algo folclórico, ganhara um fôlego político que assustava e
pouco tinha a ver com o figurino autárquico. E a praga de se sair do familiar
quadro distrital consolidara-se na base: não há nada mais sensível e
manipulável do que mexer na definição de territórios e suas cidades-capital. O
caldo ficou entornado de vez. Não é fácil reverter referendos — nomeadamente em
matérias destas. Caímos no absoluto impasse.
A regionalização é uma
lebre já corrida, um gato morto. Mas a política não o assimila e não é capaz de
partir para outro caminho. Na Constituição, está tudo na mesma, como se
estivesse tudo bem. Passados 20 anos sobre o referendo, devemos ser o único
país no mundo em que a Constituição criou regiões administrativas e, ao fim de
42 anos, nem sombra delas!... Nem sequer um possível vislumbre também.
Hoje, a regionalização é
uma tranca: não se faz, nem deixa fazer. Mesmo outras realidades ficaram
encravadas. Por exemplo, as áreas metropolitanas (tão indispensáveis)
aguardam clarificação quer do seu figurino e patamar, quer do seu espaço: ficam
por cima ou por baixo das regiões? Ou ficam ao lado? E acumulou-se um vazio
administrativo de desordem, contradição e caos, nos aparelhos territoriais do
Estado e da administração autárquica.
Já houve um pouco de
quase tudo. Unidades distritais foram subsistindo, até serem totalmente
desmanteladas — contra a Constituição. Destruímos a capacidade técnica e
administrativa dos distritos e suas cidades-capital. Houve uma grande fé nas
CCR, mais tarde CCDR — que a prática reduziu a mais modestas proporções.
Ensaiaram-se novas arrumações, de que nos chegaram as actuais CIM. Ambas são
NUTS, unidades de referenciação estatística, mais do que pilares e motores da
Administração Pública. Falha-se sempre o essencial: alma e corpo, unidades
administrativas intermédias, pólos simultâneos de desconcentração e
descentralização articuladas, capazes de gerir território de forma coesa e dar
resposta às populações. É sabido que colhemos sempre o que semeamos. Tirámos
voz e semeámos silêncio, colhemos esquecimento. Semeámos deserto, colhemos
desertificação.
Nestas últimas décadas,
nunca deixei de abordar o tema e de apelar a um novo começo, que preencha o
vazio e reponha ordem e rumo. Em 2002 e 2005, fui cabeça de lista pelo CDS em
Portalegre e, embora não eleito, vivi fisicamente a desertificação do interior.
Vi-a crescer nesses três anos: quando pensamos que já bateu no fundo, há ainda
um fundo mais fundo. Quando presidente do CDS, de 2005 a 2007, promovi as
Jornadas do Interior, em Bragança, Castelo Branco e Portalegre, para
inventariar e mobilizar. Depois, não houve continuidade. Propus o que chamei de
“Região Interior”, gerando regimes especiais, em diferentes domínios, para a
faixa raiana, de Alcoutim ao distrito de Bragança e outros territórios
homólogos: dinamizar a economia, fixar e atrair as pessoas. Consolidei a ideia
de que a praga não está no território, mas nas cabeças, isto é, nas políticas.
A maior parte das nossas trocas comerciais faz-se com o resto da Europa, ou
seja, em larga medida circula pelo interior. O interior, em rigor, é a nova
praia, a nova frente de exportação/importação; nós é que continuamos a olhá-lo
como retaguarda ou um sótão escuro.
Confrange ver que Badajoz
(149.946 habitantes) tem mais população do que todo o inteiro distrito de
Portalegre (118.506) — estão lado a lado no mesmo território. E, quanto à
cidade de Portalegre, nem se fala: vale um décimo de Badajoz, apenas 15.374
habitantes e em contínuo declínio demográfico desde 1970. No centro norte, o
panorama é também muito desigual: a cidade de Salamanca (144.949 habitantes),
só por si, tem população quase igual ao distrito todo da Guarda (168.898
habitantes) e a cidade da Guarda (42.371 habitantes) pesa menos de um terço de
Salamanca. Desenvolvi a ideia, para que tenho procurado reunir apoios,
(infelizmente, sem sucesso), de que o problema se resolveria se
conseguíssemos atrair e fixar dois grandes investimentos, um no eixo de
Portalegre, outro no eixo da Guarda, produzindo a partir daí dois efeitos
“Autoeuropa” que regariam todo o interior até ao litoral. Definir duas zonas
económicas especiais, com quadros de 50 anos de duração, seria suficiente para
inverter a rampa demográfica, consolidar fluxos de exportação para os mercados
europeu e peninsular e transformar o interior de retaguarda decadente na
poderosa frente de desenvolvimento do país que pode ser. Identifiquei o que
chamei “interior do interior”, isto é, regiões particularmente vulneráveis no meio
do interior e algumas até bem junto ao litoral. Pedrógão Grande, Figueiró dos
Vinhos e Castanheira de Pêra integram esse “interior do interior”. Mas Pedrógão
dista 80km da costa — será “interior”?
O mais problemático
interior do interior é, porém, outro. É o atavismo que tudo retarda, arrasta e
afunda. Desde o imbróglio e posterior impasse da regionalização, fica sempre a
faltar o quadro administrativo. É preciso quebrar esse nó górdio. Sem uma
reorganização administrativa territorial que responda a este vazio de quatro
décadas, não será possível definir, sustentar e prosseguir as novas políticas
que são urgentes. Sem isso, a voz não sairá dos microfones e os novos impulsos
não sairão do papel. Precisamos de um murro na mesa. E, depois, de músculo para
continuar, enquadrar, prosseguir. Em 2009 e em 2011, nas campanhas
eleitorais pelo círculo do Porto, advoguei a necessidade de um novo Livro
Branco sobre a Administração Territorial, que permitisse ganhar consciência
densa da extrema gravidade do problema e rasgar as pistas dos novos caminhos. No
meu espírito está o Livro Branco de Sá Carneiro em 1980 — em verdade, de Eurico
de Melo e Silva Peneda — e a esperança de que pudesse ser novo tiro de partida,
em linhas acessíveis e rapidamente concretizáveis.
É necessário partir outra
vez. É necessário e é urgente. O mais prático, como tenho defendido, é retomar
o quadro distrital, como, aliás, a Constituição nunca deixou de nos determinar
e temos andado, anos a fio, a violar.
Precisamos de políticas
públicas, incluindo políticas de povoamento. Estas terras pedem socorro. E o
socorro de que precisam não são bombeiros, mas administração pública. Por que
está o território desertificado? Porque o abandonámos! Deixemo-nos de tretas e
fantasias. Ou acabamos com esse abandono pela administração — um autêntico
crime administrativo, continuado — ou as tendências instaladas nunca serão
interrompidas e continuarão a agravar-se. É esse enguiço que tolhe o interior
do interior. É esse enguiço que importa quebrar e vencer. O que é urgente
precisa de pressa.
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