quinta-feira, 8 de março de 2018

Opiniões de Rui Tavares



Tenho a impressão – não posso falar de certeza, a maioria das vezes lendo distraidamente ou passando ao largo os artigos de Rui Tavares, - de que estes são progressivamente mais moderados e tolerantes, e recheados de argumentos enriquecidos por uma pesquisa histórica e de vivência – o tal saber de “experiência feito”, aliado ao “honesto estudo” que favorecem o “engenho”, na opinião de um épico consagrado. Trata-se de um “historiador” ainda jovem, natural é que o facciosismo próprio da rebeldia juvenil, possa ir perdendo a virulência à medida da progressão de um “experto peito”, ainda que não se defina pelo estatuto de conservadorismo conselheiro, ao modo atento do “velho do Restelo”.
O certo é que gosto a valer dos dois textos que dele transcrevo – o primeiro, informativo, sobre a origem do termo só português “alfarrábio”, ligado ao nome do filósofo muçulmano do décimo século, que lhe deu origem, estranhando que tal designação só apareça em Portugal. O segundo é sobre os povos da União Europeia, quer se trate dos crentes nela quer se trate dos cépticos sobre o europeísmo actual. O primeiro é uma lição sobre os conceitos filosóficos que pesquisou acerca desse Al Farabi, que ainda hoje poderão ter aplicação. Mas discordo do que informa sobre a sua definição de “felicidade” (“tudo o que é útil para obter felicidade é bom, o mal é tudo aquilo que nos impede de obter felicidade”), realmente aplicável hoje em dia, mas bastante maquiavélica, tal como o é o conceito quinhentista de Maquiavel de que os fins justificam os meios. Quanto à questão da exclusividade do português para o termo alfarrábio, eu lembro um étimo que era atribuído ao termo “barroco”, como “pérola irregular” usado pelos joalheiros portugueses, o que me dava orgulho pátrio, por apreciar a arte barroca - antes de ler, na Internet, com grande decepção, que outras podem ser as suas origens. Fica-nos a “marmelada” como termo original nosso, mas a Internet mais uma vez me defraudou consensos antigos, e neste momento não arrisco mais propostas de origens terminológicas lusitanas enaltecedoras de orgulhos nacionalistas.
Prefiro acreditar na opinião serena de Rui Tavares de que “a notícia mais importante em 2018 não é a do “fim da Europa”. É a da sobrevivência da Europa a uma crise que chegou a ser quase fatal.”

OPINIÃO
O Grande Alfarrábio
Al Farabi escreveu sobre astronomia, música, ética e teologia. Mas especialmente importante nas suas obras é o que ele chama de “ciência política”.
RUI TAVARES
PÚBLICO, 2 de Março de 2018
Toda a gente em Portugal sabe que um alfarrabista é um vendedor de livros em segunda mão (no Brasil a palavra caiu em desuso e hoje chama-se a uma loja desse ramo um “sebo”). E quase toda a gente sabe que alfarrabista vem de alfarrábio, ou seja, livro antigo ou de grandes dimensões (curiosamente, não encontro vestígio da palavra em castelhano no Dicionário da Academia Espanhola). Não é difícil imaginar que a palavra venha do árabe. Algumas pessoas saberão talvez que a sua origem é o nome de um filósofo muçulmano chamado Al Farabi, que foi importante na Idade Média. Talvez alguém que por cá consultasse muito os textos de Al Farabi tenha passado a ser, de alguma forma e em alguma época que desconheço, alguém que “andava com os alfarrábios debaixo do braço”. Terá sido nos inícios do reino de Portugal? Na fundação da universidade de Lisboa/Coimbra, no fim do século XIII? Ignoro. Sei que a palavra aparece já com esse sentido no dicionário português mais antigo, em 1728.
Isto era tudo o que eu sabia sobre Al Farabi. Mas ignorava a época exata da sua vida, as suas obras, sobre que escrevia ele. Pois bem, comecei a corrigir essa ignorância. E estou fascinado. É um pensador de uma atemporalidade, ou de uma modernidade até, difíceis de acreditar. E, ao contrário do que eu pensava, não era um muçulmano da Península, mas alguém de muito mais longe — alguém cuja história não atravessa só tempos, mas também geografias muito diversas.
Al Farabi nasceu na Ásia Central no fim do século IX e terá morrido em Damasco no fim de 950 ou início de 951. Não se sabe bem onde seria a sua cidade de origem, no atual Cazaquistão ou Afeganistão. Alguns autores dizem que a sua língua materna era o persa, outros que falaria uma língua turca. Veio para Bagdad, onde estudou com religiosos cristãos. Viveu em Damasco, em Alepo, e no Cairo. Saberia ler árabe, persa, grego e sogdiano (a língua de Samarcanda, que pode também ter sido a sua região de origem). Escreveu sobre astronomia, música, ética e teologia. Mas especialmente importante nas suas obras é o que ele chama de “ciência política”.
É impossível resumir o seu pensamento político numa crónica, mas eu diria que há nele quatro coisas notáveis.
A primeira é o seu entendimento da comunidade política humana. Partindo de Aristóteles, Al Farabi define os seres humanos como “os membros daquela espécie na qual não conseguem cumprir com aquilo de que necessitam sem viverem juntos em muitas associações num único lar”. Essas “associações dos humanos” são: “as aldeias, os bairros, as cidades, os conjuntos de cidades, as nações e as associações de nações” até à “associação cívica” da humanidade inteira que é a “associação humana inqualificavelmente perfeita”. A linguagem é do século X, o pensamento é útil para o nosso tempo.
Em segundo lugar, Al Farabi é um filósofo da felicidade. “A felicidade é o bem sem qualificações; tudo o que é útil para obter felicidade é bom, o mal é tudo aquilo que nos impede de obter felicidade”. Mais surpreendente é que esta é uma felicidade terrena, a atingir nesta vida: não sei se há algum filósofo medieval, muçulmano, judeu ou cristão que o dissesse de forma tão clara.
Em terceiro lugar, Al Farabi é um filósofo das cidades, e é aí que a sua linguagem se torna quase poética. O seu catálogo de tipos de cidades parece tirado de um conto de Borges ou romance de Calvino: para Al Farabi, há “cidades onde a verdadeira felicidade pode ocorrer”, “cidades da ignorância”, “cidades da necessidade”, “cidades do prazer”, “cidades timocráticas (onde manda o estatuto)”, “cidades despóticas”, “cidades democráticas” “cidades imorais” e “cidades errantes”.
Último aspecto, infelizmente desaparecido em tantos teólogos das três religiões monoteístas: Al Farabi declara que as religiões se distinguem pelas suas diferenças de opiniões e de ações e que a “comunidade cívica” deve legislar para a multiplicidade de religiões. Sem precisar de usar a palavra, Al Farabi é um filósofo da tolerância.
Ainda ignoro muito sobre ele. Como é que um filósofo que nasceu lá tão longe se veio a tornar tão importante nesta ponta da Europa até se tornar sinónimo de livro na nossa língua (e pelos vistos, só aqui) é um mistério provavelmente perdido. Encontrei finalmente Al Farabi num manual de filosofia medieval (para os interessados: Medieval Political Philosophy, Parens & Macfarland, Cornell University Press) que dá igual destaque a muçulmanos, judeus e cristãos. Até aparece um filósofo lisboeta, imaginem lá. Infelizmente, também não é ninguém que seja dado nas nossas escolas, embora fosse português e falasse português: chamava-se Isaac Abravanel, e era judeu. Fica para uma outra crónica.

OPINIÃO
O euronervosismo atual é mau conselheiro
Há momentos em que o nervosismo se justifica, e outros em que não se justifica, porque nos faz perder oportunidades de ver as coisas com mais clareza.
RUI TAVARES
PÚBLICO, 5 de Março de 2018
Numa coisa europeístas e eurocéticos estão de acordo: a Europa está em crise. É uma pena, porque é aí precisamente que estão errados. Não tanto sobre a Europa, que tem problemas de sobra, mas sobre a ideia de crise.
Como é evidente, europeístas e eurocéticos estão de acordo por razões diferentes. Num domingo como ontem, por exemplo, os primeiros olham com nervosismo para as eleições italianas e os segundos olham com expectativa. Uns temem que um próximo governo italiano seja anti-europeu, os outros anseiam por isso. Uns não querem que a casa venha abaixo, outros querem ver o circo pegar fogo. Ambos ficarão desiludidos.
A verdade é que a Itália é acima de tudo um problema italiano. Por mais que esteja na moda culpar o euro e a globalização pela instabilidade política e pelo populismo em muitos países, em Itália já havia instabilidade política muito antes de haver euro e o populismo italiano nasceu com o colapso do regime político provocado por escândalos de corrupção que tiveram origem puramente doméstica. Do lado das soluções, poucos italianos acreditam que uma saída do euro ou da UE resolvam alguma coisa para a Itália e ainda menos eleitores acreditam que a Liga de Matteo Salvini ou o Movimento 5 Estrelas conseguissem mesmo sair do euro, ainda que o quisessem. A possibilidade de saída do euro perde agora mais votos do que ganha. Em consequência, os partidos que antes pegavam na saída do euro recuam agora nas suas promessas ou baralham as pistas (falando sobretudo dos imigrantes africanos) para que não se perceba que estão a recuar.
Estas eleições italianas decorrem depois de dois acontecimentos pedagógicos para toda a Europa: o voto do Brexit e a chegada de Marine Le Pen à segunda volta das eleições francesas no ano passado. Ora, o Reino Unido sempre foi o país com condições mais favoráveis para sair da União Europeia — não está no euro, não está em Schengen, goza de uma série de exceções no direito europeu, e está do lado de lá do Canal da Mancha. Mesmo assim, o governo britânico não consegue entender-se com a saída. Não há nenhum problema britânico que esteja a ser resolvido enquanto a classe política britânica anda obcecada com o Brexit. Quanto a Le Pen, a sua chegada à segunda volta das eleições francesas contra Macron representou a melhor ocasião que alguma vez um defensor da saída do euro teve para poder explicar perante o eleitorado os seus argumentos. O falhanço foi total; aquilo que era suposto ser um ponto forte da sua campanha acabou por se tornar numa armadilha para Le Pen. A partir daqui, tanto em Itália como noutros países europeus não falta gente descontente com a União Europeia — mas isso não quer dizer que haja alguém que acredite mesmo poder resolver os problemas do seu país acrescentando-lhe mais problemas ainda com uma saída do euro ou uma desintegração da UE.
Ao nervosismo ora ansioso ora expectante de europeístas e eurocéticos eu gostaria de contrapor outro modo de análise: um europeísmo crítico. Trata-se de um europeísmo, porque assume que o projeto europeu tem um potencial de enorme valor que é melhor salvar do que desperdiçar. Mas é um europeísmo crítico, porque lhe reconhece os inúmeros problemas e se esforça por, a cada um deles, apresentar propostas de solução. Para o caso que nos importa hoje, é um europeísmo crítico também em relação à omnipresença da ideia de crise. Se tudo é sempre crise, é porque a palavra perdeu o significado. Ora, tal como é importante reconhecer quando a União Europeia tem problemas graves que lhe podem ser fatais (tal como se passou com a crise do euro em 2011 ou a crise do estado de direito na Hungria e na Polónia hoje), também é igualmente importante reconhecer quando as crises deixam de ser ameaças existenciais.
Não quero com isto dizer que estejamos bem. Não estamos — nem na UE, nem nos estados-membros. Quero somente explicar que há momentos em que o nervosismo se justifica, e outros em que não se justifica, porque nos faz perder oportunidades de ver as coisas com mais clareza. O nervosismo atual é mau conselheiro. Os velhos hábitos tardam em desaparecer, e os jornais e os analistas políticos continuarão a fazer títulos catastrofistas sobre o fim da Europa, mas os eleitorados europeus seguiram em frente. Continuaremos ainda a ver grandes votações em partidos populistas — o problema do populismo não é um exclusivo da UE, o que basta verificar olhando para os EUA, o Brasil, a Turquia ou a Rússia — mas a notícia mais importante em 2018 não é a do “fim da Europa”. É a da sobrevivência da Europa a uma crise que chegou a ser quase fatal.



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