Mais um texto revelador de um
espírito isento e aberto, de erudição filiada em ideais democráticos aprofundados
nas leituras específicas, repudiadas em tempos idos e que se mantêm hoje, em
seguidismo de aparência farfalhudamente generosa, mas, entre nós cá, bastante
desordeira e de uma utopia feita preferentemente de emoção e carinho de
visibilidade e espectáculo, mais do que de estudo e reflexão. Não, certamente, o
que se passa com Francisco Assis, com a visão multifacetada, não
ofuscada pelo radicalismo das ideias feitas, revelando o papel apaziguador da
mulher de Soljenitsin - o denunciante da política criminosamente totalitarista
de Estaline - a qual defende o papel de Putin
na condução dos destinos do seu mundo, a que o da Europa deverá estar
vinculado, em defesa dos princípios de poder numa sociedade educada, o que
Francisco Assis parece aprovar. O comentário seguinte presta-lhe homenagem, que
transcrevo:
Setúbal 22.03/18
Artigo de opinião lúcido.
De rara acuidade, num Ocidente que se limita a copiar "ad nauseum"
preconceitos contra a Rússia,
ainda vista como o Grande Inimigo do mundo ocidental. E há que ter presente: no
mundo ocidental movem-se interesses geoestratégicos e industriais-militares que
precisam de um ou de vários inimigos. Ou os povos poderão indignar-se
(revoltar-se mesmo) contra os gastos militares em sociedades com tantas
carências sociais. Só temos um planeta, a nossa casa comum. Muitos parecem
esquecê-lo. Reforço a ideia: excelente artigo, tanto sobre a Rússia, como sobre
o Brasil. Precisamos de gente que não tenha medo de pensar. José Gil dizia que
o mal dos portugueses é a sua «não-inscrição». Neste artigo vemos alguém que se
inscreve. É bom sinal.
Também num livro de António
Ferro, que colho entre os que meu pai deixou, encontro as entrevistas daquele
a Salazar, comprovativos do saber e inteligência do estadista, pese embora a
ironia generalizada hoje contra António Ferro que se tornaria o “propagandista do
Salazarismo”. A verdade é que, do que tenho lido, sinto quanto Salazar foi, de
facto, um espírito arguto e erudito, e não resisto a transcrever um passo desse
livro de António Ferro, denunciador dos ideais comunistas, que Soljenitsin
tão bem explicitou no seu “Gulag”, entre outras obras que não li:
«MEDIOCRIDADE»
«Junto agora um
post-scriptum ao capítulo:
- Não acha picante o falso
ardor com que certas personalidades e órgãos da democracia defendem o
comunismo? Como se o comunismo não fosse um dos maiores inimigos da democracia…
- Claro está, concorda
Salazar. Quem defenda o comunismo, ou quem pretenda converter-se a essas
ideias, tem de renunciar, se a sua atitude é sincera, à defesa da liberdade…
Liberdade e Comunismo são duas ideias antagónicas.
Acrescento:
- Contradição tão assombrosa,
afinal, como se essas personalidades e órgãos começassem, de repente, a
defender a Ditadura…
…- Retórica, mentalidade
de comício, processos eleiçoeiros, que nos inferiorizam, que são os maiores
obstáculos para uma obra desempoeirada, renovadora e sã. Poinsard, que fez um
inquérito à vida portuguesa há vinte e tantos anos, a convite do Sr. D. Manuel,
viu-nos como somos, à luz duma boa observação. Fazendo justiça às nossas
qualidades, acreditando no nosso futuro, ele impressionou-se principalmente com
o nosso provincianismo, com a nossa mediocridade, mediocridade na indústria, no
comércio, na agricultura, na vida política, no jornalismo, na arte e na literatura
de então. Muito se tem falado desde esse momento, mas é preciso não parar, é
preciso lutar continuadamente contra a falta de elevação nas ideias e nas
atitudes, contra essa mediocridade de processos, que atinge, por vezes, as
inteligências mais altas e os valores mais sérios…. » (António Ferro, "Salazar")
Sim, Salazar sabia, e hoje
ainda confirmaria, e não só com o ensino como está, mas …
O artigo de OPINIÃO de FRANCISCO ASSIS:
Da Rússia ao Brasil
Marielle Franco foi executada porque há uma parte significativa dos
poderes fácticos brasileiros que se recusa a aceitar tudo aquilo que ela
representava.
PÚBLICO, 22 de Março de 2018
1. Três dias depois da anunciada reeleição de Putin para a presidência da
Rússia, Natalia Soljenítsin, a viúva do grande escritor que tanto contribuiu
para a degradação da ideia comunista no Ocidente e para o fim da União
Soviética, concedeu uma entrevista a um jornal diário francês. Natalia
contribuiu significativamente para a construção da monumental obra do marido.
Tal como ele de formação matemática, renunciou a uma brilhante carreira nesse
domínio para se consagrar a um trabalho conjunto que adquiriu proporções
extraordinárias.
O seu olhar sobre o presente russo é de tal ordem lúcido e penetrante
que nos ajuda a compreender uma realidade que à primeira vista se nos revela
deveras estranha. A
sua análise começa por uma referência à interpretação que Alexander Soljenitsin
fazia da revolução de Fevereiro de 1917 que aboliu o regime czarista e abriu as
portas para uma frágil e muito curta experiência democrático-liberal. Essa
interpretação assentava na tese da pré-existência de um confronto fatal entre o
poder e os sectores mais educados da sociedade russa. Esse confronto revelou-se
de tal forma radical que inviabilizou qualquer possibilidade de obtenção de um
compromisso. Foi
nesse contexto dramático que germinaram as condições favoráveis à instauração
de um regime radicalmente novo de natureza totalitária e anti-humana. Passando para o presente, Natalia
Soljenitsin considera que a Rússia tem como principal desafio precisamente o de
evitar a reedição de um quadro de contraposição insanável entre aquilo que ela
define como a sociedade educada e o poder. Por isso mesmo não se coloca numa
posição de rejeição absoluta do actual poder que Putin encarna. Reconhecendo o
seu carácter autocrático, ela entende que através do diálogo será possível
encaminhá-lo num sentido democrático. Explica o sucesso de Putin pelos erros
cometidos internamente na primeira fase do período pós-soviético e pela atitude
arrogante adoptada pelos países ocidentais, a qual teve o efeito de provocar um
sentimento de humilhação nacional. É particularmente dura em relação à
NATO, nomeadamente no que se refere à forma como tratou a questão da Crimeia
muito antes dos recentes acontecimentos que conduziram à reintegração deste
território na nação russa.
Natalia Soljenitsin tem razão no diagnóstico que elabora sobre o passado
recente e o presente, revela uma condescendência excessiva em relação ao poder
autocrático de Putin, mas alerta para algo de extrema importância: o Ocidente
não deve cortar as pontes para um diálogo com a Rússia. Putin tornou-se uma figura proeminente
porque restaurou a primazia do poder central contra a arrogância de uma parte
da nova oligarquia e impôs a ordem nas ruas. Fê-lo de uma forma autoritária,
prescindindo da construção de um Estado de Direito, com o que isso significa de
denegação do respeito pelos Direitos Humanos e de favorecimento de um
clientelismo profundamente anti-democrático. Apesar de tudo isto ser
verdade, e de dever ser devidamente denunciado e contrariado, o mundo Ocidental
deve manter a preocupação de não atirar os russos para a área de influência
chinesa. Para evitar que tal aconteça, exige-se um esforço diplomático
especialmente subtil, firme na afirmação dos valores democrático-liberais e
inteligente na compreensão da singularidade nacional de um país que ainda vive
num período assombrado pela memória dos seus múltiplos traumas históricos. Não
é fácil superar os efeitos provocados, entre outras coisas, por uma tragédia
totalitária que ocupou quase todo o século XX.
Não é possível ter a certeza de que Natalia Soljenitsin tenha razão nas
suas advertências e nos seus prognósticos, mas vale a pena meditar no que ela
diz, até por respeito pelo que foi o seu percurso excepcional de grande
combatente contra o totalitarismo soviético. O desastre russo seria também de
um certo modo um grande desastre Ocidental. Talvez ainda possamos ir a tempo de
o evitar.
2. É cada vez mais penoso escrever o que quer que seja sobre o Brasil. O
assassinato da Vereadora Marielle Franco, ocorrido às nove da noite, em
pleno centro do Rio de Janeiro, revela o grau de apodrecimento institucional
a que chegou um país que é uma das principais potências políticas e
económicas do mundo contemporâneo. Nalguns aspectos o Brasil aproxima-se
assustadoramente do estatuto de um Estado falhado, incapaz de garantir a
segurança dos seus cidadãos, completamente vulnerável na protecção dos
defensores dos direitos Humanos. Marielle Franco foi executada porque há uma
parte significativa dos poderes fácticos brasileiros que se recusa a aceitar
tudo aquilo que ela representava: a emancipação dos habitantes das favelas, das
mulheres, da população de remota origem africana, das minorias sexuais. Esse
Brasil atávico e preconceituoso é o principal obstáculo à plena afirmação de um
país que pelo seu outro lado criativo e ousado suscita a admiração de uma
grande parte do mundo. A morte de Marielle foi especial, como singular foi
a sua vida, e como tal despertou uma comoção universal única. Permitiu lembrar
outras mortes mais anónimas, igualmente trágicas que têm marcado o quotidiano
de um país imerso numa violência insuportável. O pior de tudo é que não se
vislumbra qualquer sinal positivo para o futuro imediato do Brasil.
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