O artigo de Nuno Pacheco,
de 8/3, «Surdos dos olhos, cegos dos ouvidos», condenatório,
naturalmente, do AO de 1990, justo
que é, mereceu comentários – de um apoiante, como lamento irónico, concordante com
o discurso de ironia severa de Nuno Pacheco; de um opositor, como ataque
pretensioso e perverso; de um brasileiro, como justificação serena, mas dentro
dos particularismos de grafia e construção frásica que em português constituem
naturalmente erro de palmatória: “Contudo, a pergunta que deve-se
fazer: antes também não haviam exceções críticas?”, além do acento
circunflexo em palavra esdrúxula, em sílaba precedida de consoante nasal: “fenômeno”,
“sinônimo”, “polêmicas.
Mas são os comentários
pedantes de António Marques que merecem natural repulsa,
pela ousadia de referir o caos babélico como origem do seu brinquedo
linguístico, sem ter em conta os processos de formação e evolução linguísticos
que mergulham, entre outros “poços” de colheita etimológica, em línguas
clássicas, cujas raízes se perdem num tronco comum indo-europeu. Pretender fazer
floreados de homonímia por gosto pessoal de confusão, não passa de argumentação
de retórica barata, que provavelmente se propagará a um suposto cepticismo
referente às origens e evolução dos mundos e de tudo o que foi criado, com descrédito
para os próprios genes, em que AM provavelmente não confia.
O certo é que, tanta é a
corrupção do nosso meio ambiente, que não merecemos, talvez, debruçar-nos sobre
esses fenómenos de etimologia e evolução linguística, no caos geral, que os
brincalhões ignorantes e desamorosos se atrevem a proclamar aos quatro ventos,
a dar-se ares, luxuosamente democratas, também no abandalhamento linguístico.
Mas acabo de escutar a informação de uma
locutora televisiva, nos Estados Unidos da América, falando no “expião” russo
que foi envenenado mas recuperou, deixando de “expiar” o seu pecado de "espionagem" e respirámos de alívio, pois não desejamos mal ao senhor nem à sua
filha que pagou sem culpa, expiando os erros do pai e criando mais um homónimo
para o divertimento de António Marques, conquanto o pudéssemos apelidar antes,
de parónimo, para gozo maior do admirador babélico.
OPINIÃO
Surdos dos olhos, cegos dos ouvidos
Chamaram ao livro O Nervo Ótico. Ou seja: a senhora vê com os
olhos mas regista o que vê com um “nervo” auditivo.
PÚBLICO, 8 de Março de
2018
A escritora argentina
María Gaínza (nascida em Buenos Aires, em 1975) estreou-se na novela
com uma obra a que deu o nome de El Nervio Óptico. O livro,
lançado em 2014, não teve ainda edição no Brasil; mas, se a tivesse,
chamar-se-ia O Nervo Óptico. Editado
em Portugal, pela D. Quixote, puseram na capa a fotografia de uma sala de museu
com uma senhora a olhar para em uma
parede com quadros e este título em letras garrafais: O Nervo Ótico. Ou seja: a senhora vê com os
olhos mas, pelo título, regista o que vê com um “nervo” auditivo. Consulte-se o
dicionário Priberam brasileiro, numa edição recente, e o que lá vem é isto:
“ótico adj. 1. Relativo ou
pertencente ao ouvido. 2. Diz-se do
medicamento que se emprega contra doenças do ouvido.” Nenhuma dúvida. E com P?
“óptico [ót] adj. 1. Relativo à óptica
ou à visão. = OCULAR, VISUAL (…).” [Portugal] Grafia de ótico antes do Acordo Ortográfico de 1990.”
Para os brasileiros parece não haver aqui dúvidas quanto à escrita ou quanto à
fala. Repare-se que escrevem “óptico” e, à frente, indicam que se deve ler
“ót”, “ótico”, não “ópt”, “óptico”. Ora, se bem se lembram, um dos mais
fortes argumentos para banir as ditas “consoantes mudas” em Portugal era que
não se liam; e “o que não se lê não se escreve.” Verdade? Mentira. O “óptico”
brasileiro prova-o de forma categórica: não lêem o P mas escrevem-no. Porque
entendem que não se pode ser surdo dos olhos e cego dos ouvidos.
Ou pode? Em Portugal
pode. Com o acordo ortográfico (AO), a palavra é a mesma, ouvidos e olhos
tudo misturado, numa lamentável miscelânea pós-cubista que nada deve à arte.
“Óptico” ou “ótico”? Vai-se aos vocabulários oficiais do acordismo (os do IILP) e
lá está: nos vocabulários nacionais de Portugal, Cabo Verde, Timor-Leste e
Moçambique (até neste, que nem ratificou o AO), ao inserirmos a palavra
“óptica” recebemos por resposta: “A forma óptica não
se encontra atestada neste vocabulário”. Mas está no do Brasil; neste e
no chamado “vocabulário comum”, que mistura tudo sem critério só para fingir
que há unificação na escrita. Há alguma vantagem neste inominável
disparate, que ainda por cima foi inventado aqui, para consumo interno e para
imposição colonial a terceiros pelas áfricas e orientes? Nenhuma vantagem. Um
exemplo: os ingleses pronunciam “no” e “know” da mesma exacta maneira, tal como
“night” e “knight”, ou “right” e “wright”. Imaginam alguém a sugerir que tais
palavras passem a ser escritas da mesma forma porque têm o mesmíssimo som? Não,
loucos desses só existem por cá. O que se passa com “óptico” e “ótico”,
ou “acto” e “ato” é similar: lêem-se da mesma maneira mas são palavras
diferentes, com raízes diferentes e sentidos diferentes. Custa muito entender
coisa tão simples?
Hoje é Dia da Mulher e
provavelmente esta crónica devia falar de outras coisas. Mas já que o livro
aqui citado (devido ao assassinato do seu título) foi escrito por uma mulher,
juntemos-lhe textos recentes de duas escritoras, ambos a propósito. No Expresso de 3 de Março, numa crónica intitulada “Ninguém
para o AO (lê-se à vontade do freguês)”, escreveu Ana Cristina Leonardo:
“Continuamos a não conseguir distinguir ‘óptica’ (vista) de ‘ótica’ (audição),
palavras que se tornaram homónimas em nome da uniformização da língua, mas só
em Portugal, já que no Brasil a distinção se mantém e também em nome da
uniformização da língua. Confused?” Não, que
ideia, é tudo claro como água! No dia anterior, 2 de Março, já Alexandra
Lucas Coelho escrevera, no Sapo24, um texto revoltado e notável,
intitulado “Este país partido ao meio pela própria língua”.
Um pequeno excerto: “Supostamente este acordo era para aproximar os países de
língua portuguesa. Mas o que separa os países de língua portuguesa são muitas
outras coisas, muitas delas de facto políticas, muitas delas de facto
incómodas, muitas delas de facto sistematicamente ignoradas, ou menosprezadas,
enquanto um acordo totalmente desnecessário, supostamente a bem da lusofonia,
nos mói o juízo há 28 anos.”
Diz-se que água mole
em pedra dura… O resto já sabem. Mas não há água, mole ou dura, que lave tais
misérias e nos deixe definitivamente em paz. Só mesmo uma enorme vaga, temível
como as da Nazaré, será capaz de arredar tanto disparate do nosso quotidiano,
deixando a língua viver e respirar como lhe compete. Tardará muito? Talvez não.
COMENTÁRIOS
11.03.2018
“Tardará muito? Talvez não.
“Será como a esperança de que D. Sebastião regresse, um dia, e apareça numa
manhã de nevoeiro?...
Mem Martins 08.03.2018
O exemplo não é grande
coisa. Imaginemos que há uns anos, antes do AO90, alguém publicava o título 'O
nervo ótico'. Um leitor atento diria que havia um erro ortográfico: não
existia, na altura, nenhum nervo ótico. O que é que mudou? Hoje não existe em
Portugal nenhum 'nervo óptico'. Tão simples quanto isso. Mas, mesmo que
existissem esses dois nervos, a nossa habilidade com homónimas sentir-se-ia em
casa. No dia internacional da mulher era interessante focar a desigualdade e
não o empertigamento. Declaração de interesses: sou meio surdo, ao jeito do
VJS, mas não fiquei ofendido.
Coimbra 08.03.2018
Não existe nervo ótico?
Essa é boa. Como é que a informação captada pelos ouvidos chega ao cérebro?
Pode chamar-lhe nervo auditivo ou acústico. Mas se quiser chamar-lhe nervo ótico
não estará errado, pois é de um nervo ótico que se trata. Estará apenas
confuso — graças ao AO90. Sermos habilidosos com homónimas não é
desculpa para que se inventem mais.
Mem
Martins 08.03.2018
Caro Rui Valente, confesso
que gosto de homónimas. Não sei se há alguma palavra que não o seja (?),
mesmo fora do contexto da brejeirice. Desde que Deus perdeu o controlo da
situação - e a compostura - em Babel, temos essa liberdade de nos entretermos
com as palavras confundindo referências e referentes, codificando para
descodificar, mentindo para dizer a verdade. Fora isso é muito pouco o que
fazemos de interessante na vida. Só mesmo uma inteligência artificial em
silício (não em cilício) poderá fixar uma angustiante língua eterna que elimine
de vez as homónimas e o 'bondoso caos'(Lídia Jorge). Mas amanhã não há de ser a
véspera desse dia. Sem homónimas qual era o Rio que ficava?
Anti Comunistas da Extrema-Direita 08.03.2018
"As palavras óptica,
óptico, ótica, ótico estão corretas e existem na língua portuguesa. São
palavras polêmicas, sendo necessária muita atenção em sua utilização.
Privilegia-se o uso das palavras óptica e óptico para fenômenos
relacionados com a visão e o uso das palavras ótica e ótico para fenômenos relacionados
com a audição. Contudo, as palavras ótica e ótico são muito utilizadas como sinônimas
de óptica e óptico.
Anti Comunistas da Extrema-Direita 08.03.2018
"Além disso, segundo o
Novo Acordo Ortográfico, que entrou em vigor em janeiro de 2009, as consoantes
c e p que não se leem nas palavras deverão ser abolidas. Apenas as consoantes
que se leem deverão ser mantidas. Assim, ocorre a existência de palavras com
duas grafias, devido às divergências de articulação entre os falantes.
Escrevendo-se óptica ou óptico, o p deveria ser pronunciado, o que raramente
acontece, não sendo feita distinção na pronúncia nas mesmas. "
Anti Comunistas da Extrema-Direita08.03.2018
Contudo, a pergunta que deve-se
fazer: antes também não haviam exceções críticas?
Nenhum comentário:
Postar um comentário