sexta-feira, 30 de março de 2018

“Tristes palavras ao vento” ou "Babel e Sião"



O artigo de Nuno Pacheco, de 8/3, «Surdos dos olhos, cegos dos ouvidos», condenatório, naturalmente, do AO de 1990, justo que é, mereceu comentários – de um apoiante, como lamento irónico, concordante com o discurso de ironia severa de Nuno Pacheco; de um opositor, como ataque pretensioso e perverso; de um brasileiro, como justificação serena, mas dentro dos particularismos de grafia e construção frásica que em português constituem naturalmente erro de palmatória: “Contudo, a pergunta que deve-se fazer: antes também não haviam exceções críticas?”, além do acento circunflexo em palavra esdrúxula, em sílaba precedida de consoante nasal: “fenômeno”, “sinônimo”, “polêmicas.
Mas são os comentários pedantes de António Marques que merecem natural repulsa, pela ousadia de referir o caos babélico como origem do seu brinquedo linguístico, sem ter em conta os processos de formação e evolução linguísticos que mergulham, entre outros “poços” de colheita etimológica, em línguas clássicas, cujas raízes se perdem num tronco comum indo-europeu. Pretender fazer floreados de homonímia por gosto pessoal de confusão, não passa de argumentação de retórica barata, que provavelmente se propagará a um suposto cepticismo referente às origens e evolução dos mundos e de tudo o que foi criado, com descrédito para os próprios genes, em que AM provavelmente não confia.
O certo é que, tanta é a corrupção do nosso meio ambiente, que não merecemos, talvez, debruçar-nos sobre esses fenómenos de etimologia e evolução linguística, no caos geral, que os brincalhões ignorantes e desamorosos se atrevem a proclamar aos quatro ventos, a dar-se ares, luxuosamente democratas, também no abandalhamento linguístico.
 Mas acabo de escutar a informação de uma locutora televisiva, nos Estados Unidos da América, falando no “expião” russo que foi envenenado mas recuperou, deixando de “expiar” o seu pecado de "espionagem" e respirámos de alívio, pois não desejamos mal ao senhor nem à sua filha que pagou sem culpa, expiando os erros do pai e criando mais um homónimo para o divertimento de António Marques, conquanto o pudéssemos apelidar antes, de parónimo, para gozo maior do admirador babélico.

OPINIÃO
Surdos dos olhos, cegos dos ouvidos
Chamaram ao livro O Nervo Ótico. Ou seja: a senhora vê com os olhos mas regista o que vê com um “nervo” auditivo.
PÚBLICO, 8 de Março de 2018
A escritora argentina María Gaínza (nascida em Buenos Aires, em 1975) estreou-se na novela com uma obra a que deu o nome de El Nervio Óptico. O livro, lançado em 2014, não teve ainda edição no Brasil; mas, se a tivesse, chamar-se-ia O Nervo Óptico. Editado em Portugal, pela D. Quixote, puseram na capa a fotografia de uma sala de museu com uma senhora a olhar para  em uma parede com quadros e este título em letras garrafais: O Nervo Ótico. Ou seja: a senhora vê com os olhos mas, pelo título, regista o que vê com um “nervo” auditivo. Consulte-se o dicionário Priberam brasileiro, numa edição recente, e o que lá vem é isto: “ótico adj. 1. Relativo ou pertencente ao ouvido. 2. Diz-se do medicamento que se emprega contra doenças do ouvido.” Nenhuma dúvida. E com P? “óptico [ót] adj. 1. Relativo à óptica ou à visão. = OCULAR, VISUAL (…).” [Portugal] Grafia de ótico antes do Acordo Ortográfico de 1990.” Para os brasileiros parece não haver aqui dúvidas quanto à escrita ou quanto à fala. Repare-se que escrevem “óptico” e, à frente, indicam que se deve ler “ót”, “ótico”, não “ópt”, “óptico”. Ora, se bem se lembram, um dos mais fortes argumentos para banir as ditas “consoantes mudas” em Portugal era que não se liam; e “o que não se lê não se escreve.” Verdade? Mentira. O “óptico” brasileiro prova-o de forma categórica: não lêem o P mas escrevem-no. Porque entendem que não se pode ser surdo dos olhos e cego dos ouvidos.
Ou pode? Em Portugal pode. Com o acordo ortográfico (AO), a palavra é a mesma, ouvidos e olhos tudo misturado, numa lamentável miscelânea pós-cubista que nada deve à arte. “Óptico” ou “ótico”? Vai-se aos vocabulários oficiais do acordismo (os do IILP) e lá está: nos vocabulários nacionais de Portugal, Cabo Verde, Timor-Leste e Moçambique (até neste, que nem ratificou o AO), ao inserirmos a palavra “óptica” recebemos por resposta: “A forma óptica não se encontra atestada neste vocabulário”. Mas está no do Brasil; neste e no chamado “vocabulário comum”, que mistura tudo sem critério só para fingir que há unificação na escrita. Há alguma vantagem neste inominável disparate, que ainda por cima foi inventado aqui, para consumo interno e para imposição colonial a terceiros pelas áfricas e orientes? Nenhuma vantagem. Um exemplo: os ingleses pronunciam “no” e “know” da mesma exacta maneira, tal como “night” e “knight”, ou “right” e “wright”. Imaginam alguém a sugerir que tais palavras passem a ser escritas da mesma forma porque têm o mesmíssimo som? Não, loucos desses só existem por cá. O que se passa com “óptico” e “ótico”, ou “acto” e “ato” é similar: lêem-se da mesma maneira mas são palavras diferentes, com raízes diferentes e sentidos diferentes. Custa muito entender coisa tão simples?
Hoje é Dia da Mulher e provavelmente esta crónica devia falar de outras coisas. Mas já que o livro aqui citado (devido ao assassinato do seu título) foi escrito por uma mulher, juntemos-lhe textos recentes de duas escritoras, ambos a propósito. No Expresso de 3 de Março, numa crónica intitulada “Ninguém para o AO (lê-se à vontade do freguês)”, escreveu Ana Cristina Leonardo: “Continuamos a não conseguir distinguir ‘óptica’ (vista) de ‘ótica’ (audição), palavras que se tornaram homónimas em nome da uniformização da língua, mas só em Portugal, já que no Brasil a distinção se mantém e também em nome da uniformização da língua. Confused? Não, que ideia, é tudo claro como água! No dia anterior, 2 de Março, já Alexandra Lucas Coelho escrevera, no Sapo24, um texto revoltado e notável, intitulado “Este país partido ao meio pela própria língua”. Um pequeno excerto: “Supostamente este acordo era para aproximar os países de língua portuguesa. Mas o que separa os países de língua portuguesa são muitas outras coisas, muitas delas de facto políticas, muitas delas de facto incómodas, muitas delas de facto sistematicamente ignoradas, ou menosprezadas, enquanto um acordo totalmente desnecessário, supostamente a bem da lusofonia, nos mói o juízo há 28 anos.”
Diz-se que água mole em pedra dura… O resto já sabem. Mas não há água, mole ou dura, que lave tais misérias e nos deixe definitivamente em paz. Só mesmo uma enorme vaga, temível como as da Nazaré, será capaz de arredar tanto disparate do nosso quotidiano, deixando a língua viver e respirar como lhe compete. Tardará muito? Talvez não.

COMENTÁRIOS
11.03.2018
“Tardará muito? Talvez não. “Será como a esperança de que D. Sebastião regresse, um dia, e apareça numa manhã de nevoeiro?...
  Mem Martins 08.03.2018
O exemplo não é grande coisa. Imaginemos que há uns anos, antes do AO90, alguém publicava o título 'O nervo ótico'. Um leitor atento diria que havia um erro ortográfico: não existia, na altura, nenhum nervo ótico. O que é que mudou? Hoje não existe em Portugal nenhum 'nervo óptico'. Tão simples quanto isso. Mas, mesmo que existissem esses dois nervos, a nossa habilidade com homónimas sentir-se-ia em casa. No dia internacional da mulher era interessante focar a desigualdade e não o empertigamento. Declaração de interesses: sou meio surdo, ao jeito do VJS, mas não fiquei ofendido.
Coimbra 08.03.2018
Não existe nervo ótico? Essa é boa. Como é que a informação captada pelos ouvidos chega ao cérebro? Pode chamar-lhe nervo auditivo ou acústico. Mas se quiser chamar-lhe nervo ótico não estará errado, pois é de um nervo ótico que se trata. Estará apenas confuso — graças ao AO90. Sermos habilidosos com homónimas não é desculpa para que se inventem mais.
Mem Martins 08.03.2018
Caro Rui Valente, confesso que gosto de homónimas. Não sei se há alguma palavra que não o seja (?), mesmo fora do contexto da brejeirice. Desde que Deus perdeu o controlo da situação - e a compostura - em Babel, temos essa liberdade de nos entretermos com as palavras confundindo referências e referentes, codificando para descodificar, mentindo para dizer a verdade. Fora isso é muito pouco o que fazemos de interessante na vida. Só mesmo uma inteligência artificial em silício (não em cilício) poderá fixar uma angustiante língua eterna que elimine de vez as homónimas e o 'bondoso caos'(Lídia Jorge). Mas amanhã não há de ser a véspera desse dia. Sem homónimas qual era o Rio que ficava?
  Anti Comunistas da Extrema-Direita 08.03.2018
"As palavras óptica, óptico, ótica, ótico estão corretas e existem na língua portuguesa. São palavras polêmicas, sendo necessária muita atenção em sua utilização. Privilegia-se o uso das palavras óptica e óptico para fenômenos relacionados com a visão e o uso das palavras ótica e ótico para fenômenos relacionados com a audição. Contudo, as palavras ótica e ótico são muito utilizadas como sinônimas de óptica e óptico.
  Anti Comunistas da Extrema-Direita 08.03.2018
"Além disso, segundo o Novo Acordo Ortográfico, que entrou em vigor em janeiro de 2009, as consoantes c e p que não se leem nas palavras deverão ser abolidas. Apenas as consoantes que se leem deverão ser mantidas. Assim, ocorre a existência de palavras com duas grafias, devido às divergências de articulação entre os falantes. Escrevendo-se óptica ou óptico, o p deveria ser pronunciado, o que raramente acontece, não sendo feita distinção na pronúncia nas mesmas. "
 Anti Comunistas da Extrema-Direita08.03.2018
Contudo, a pergunta que deve-se fazer: antes também não haviam exceções críticas?



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