A palavra a alguns comentadores de ALBERTO GONÇALVES. Mas não esqueçamos o défice, que paira
sobre os nossos destinos, nem a balança comercial periclitante, nem outros
balanços, tantos, tontos, tintos de tanta angústia, de tanta depressão, de tanta
previsão… como efeito do desequilíbrio, da sonsice, da cultura do
empanturramento popular televisionado, que Abril nos trouxe, por conta da
gaivota de uma modinha tonta…
Abril em Portugal, capítulo XLIV
OBSERVADOR, 28/4/2018
Descontado o folclore, e à semelhança do Natal, “Abril” é o que um homem
quiser. E os homens que o fizeram, primeiro, e os homens que o tomaram, de seguida,
quiseram imensas e contraditórias coisas.
São diversas as razões que me impedem de desfilar a cada 25 de Abril. A primeira é a aversão a manifestações públicas, para
cúmulo colectivas. Se já é ridículo que uma pessoa se ache tão interessante a
ponto de ter de expor os seus sentimentos ao resto da humanidade, é duplamente
patético que se sinta obrigada a fazê-lo em bando. Um sujeito sozinho aos
berros nos Aliados ou no Rossio ainda merece algum respeito (e a atenção do
INEM). Acompanhado por milhares de ociosos idênticos, não merece respeito
nenhum.
O segundo motivo
é o absurdo de comemorar datas. Incluindo a do meu aniversário, não conheço
qualquer data digna de festejos ou baderna. Desde o início dos tempos que, de
acordo com os paladares, diariamente acontecem tremores, bons, maus, terríveis,
desmesurados, ínfimos, incompreensíveis e polémicos. Se sairmos à rua a
“assinalar” todos, acabaremos exaustos, resfriados e com a taxa de
produtividade do sindicalista médio. Além disso, não haverá trânsito que
resista.
O terceiro motivo
pelo qual não celebro “Abril” prende-se com o próprio “Abril”. Serei picuinhas,
mas causar-me-ia certa impressão passear em prol da democracia junto de
criaturas que sempre a combateram. Não querendo generalizar, o tradicional cortejo
lisboeta é das maiores concentrações de intolerantes que o país é capaz de
agrupar. E a toponímia é tão irónica quanto os propósitos: boa parte daquela
gente “desce” a Avenida da Liberdade em nome de um conceito que lhe é
fundamentalmente estranho. Por regra, os rostos reconhecíveis na romaria do
25/4 oscilam entre fanáticos de proibições, na melhor das hipóteses, e devotos
de totalitarismos, na pior. Mesmo os que não idolatram abertamente tiranos
célebres e obscuros entretêm-se a conceber interditos e calar “blasfémias”. É
peculiar, por exemplo, que candidatos a censores se congratulem com o fim da
censura. Ou que prepotentes naturais recordem com rancor a prepotência alheia.
No fundo, eles descem a Liberdade porque não saberiam subi-la nem que tentassem.
Por estas e por outras (estas chegavam), o meu contacto com o 25 de
Abril de 2018 limitou-se às cerimónias oficiais. Por diligência minha? Não
endoideci. Sucede que o carro viera da revisão e estava sintonizado numa
estação de rádio, meio que sinceramente julgava extinto. De repente, apanhei
com a voz de uma senhora que evocava “o secretário-geral das Nações Unidas,
António Guterres”. O meu impulso foi mudar a engenhoca para um disco de John
Lee Hooker em que me ando a viciar. Porém, o humor retorcido que Deus me deu
viu-se seduzido pelo descaramento de alguém que, a fim de emitir uma
trivialidade embaraçosa, cita a figura em causa. Citar Gandhi ou Mandela é
apenas aborrecido: citar o eng. Guterres revela um talento burlesco que me
transforma num ouvinte atento.
E atento ouvi a tal senhora falar no “tecto de vidro que impede as
mulheres de chegarem aos lugares topo”, na “nova realidade” em que vivemos
“porque decidimos [ela e os amigos] pôr fim à austeridade”, na dra. Pintasilgo
(com um único “s”). A terminar, o cliché apoteótico: “Cumprir a democracia e
viver a liberdade é evitar fraturas e conflitualidades entre jovens e idosos,
entre empregados e desempregados, entre patrões e trabalhadores, entre o
interior e o litoral. Cumprir a Democracia e viver a Liberdade é não deixar
mais que nenhuma mulher seja agredida ou assassinada numa relação de
intimidade”.
A senhora, soube depois, chama-se Elza (com “z”) Pais e é deputada do
PS. Também soube depois que o portentoso vazio dessa retórica uniu a quase
totalidade dos discursos, com a excepção do do dr. Ferro Rodrigues. O
presidente do parlamento conseguiu ir além do vazio e aproveitou a oportunidade
para defender os compinchas envolvidos em trafulhices demográficas. No final,
alguns parlamentares, de florzinha ao peito, entoaram a “Grândola” fatal. Nas
bancadas, os “capitães” abençoaram a eucaristia. Se se pudesse morrer de ridículo, teríamos
tido uma chacina.
Aqui chegado, para evitar equívocos, esclareço não ser saudosista do
salazarismo. Não aprecio regimes controlados por nacionalistas rústicos,
inimigos do comércio livre, da propriedade privada, do direito à expressão, dos
“desvios” à moral vigente e, em suma, da possibilidade de o indivíduo decidir
estrafegar o seu destino conforme entender. Aliás, são esses os exactos motivos
que me excluem da habitual discussão em volta da propriedade de “Abril”. Ano
após ano, a nossa melancólica “direita” procura reivindicar uma herança de que
a esquerda se apoderou e da qual me excluo sem remorsos. Por mim, podem ficar
com os cravos, o “Zeca”, a gaivota, a aliança povo/MFA e restante folclore.
Descontado o folclore, e à semelhança do Natal, “Abril” é o que um homem
quiser. E os homens que o fizeram, primeiro, e os homens que o tomaram, de
seguida, quiseram imensas e contraditórias coisas. Um protesto corporativo. Um
golpe de Estado. Uma democracia à “europeia”. Um paraíso soviético. Um inferno
cubano. Um manicómio. Somados os pesos e os contrapesos, sobrou-nos o meio
termo. Se nos livrámos de trocar uma ditadura rançosa por uma ditadura
sanguinária, não nos livrámos da propensão para o atraso de vida que nos tolhe
há séculos.
Quarenta e quatro anos passados, estamos assim, dependentes, tolhidos,
patriotas, tontos e entregues a uma casta renovável e sortida de burgessos com
manha, cuja solitária habilidade é a de convencer-nos da justiça dos seus
privilégios.
Celebrar isto? Vou ali e não volto, como diria o secretário-geral das
Nações Unidas.
ALGUNS COMENTÁRIOS
Antonio Dâmaso: Hoje tenho uma PEQUENA discordância do Alberto. A
certa altura diz o Aberto "INFERNO CUBANO" - O ALberto não conheceu
Cuba. Vou tentar elucidar o Alberto: - Cuba do camarada Fidel viveu do turismo
sexual, não tem petróleo como a Venezuela, as mulheres eram o seu
"petróleo". Em cada hotel, havia um recepcionista, com poder, que
tinha o portefólio das "guias pessoais". Eram mulheres muito bonitas,
entre os 20 e os 40 anos (como na bola, a idade conta) que acompanhavam durante
uns dias os homens, com algum dinheiro, que visitavam Cuba. Eram tratadas como
"princesas", durante os dias "de serviço" tinham tudo nos
hotéis, piscina, comida, tudo o que pedissem. A conta era para o
"patrão" nesses dias, mas era barato para europeu com euros, libras
ou francos no tempo deles. As mulheres "guias pessoais" gostavam
deste parte-time, levam dinheiro para uma vida desafogada, tinham uma semana de
férias de 2 em 2 meses + ou -, as mães ou amigas tomavam conta dos filhos, não
aturavam os maridos ou namorados, com um pouco de sorte tinham sexo de alta
qualidade. Contribuíam para o equilíbrio da revolução do camarada Fidel.
O Alberto vem dizer que aquilo era um inferno. O
Alberto nunca conheceu. Aquilo era um paraíso. Que confusão na cabeça do
Alberto.
Paulo Carnaxide: O último parágrafo diz tudo: foi o que Ferro e
César fizeram descaradamente perante a trafulhice. Isto para não falar dos
inúmeros indivíduos que ao longo destes 44 anos se serviram do estado para
ganhar milhões de euros, e compor as suas vidas e a dos seus à conta dos
contribuintes.
Alexandre Barreira: .....mas o melhor
que a "desmocracia"......me deu......foi da possibilidade....de levar
o bobi.....à tasca.....e dar uma "gorjeta".....para
apanharem.........o "suvenir".......!!!!!!
Jorge Marques: Antes do 25 de Abril, havia "Portugal" e
"as Colónias". E havia
"Lisboa" e "a Província". Também havia "os portugueses", e os "inimigos da
Nação". Mas éramos todos
portugueses (incluindo os das Colónias, apesar de serem "pretos" e
"brancos").
Hoje somos
classificados e ordenados por escalões de IRS, há os L, G, B, e T mais os
"hetero", os católicos e os IURD, mais os muçulmanos e não sei
quantas outras confissões, os maiores e menores de várias idades para vários
efeitos, quem vive no apartamento há mais ou menos de 25 anos, quem tem e não
tem casa própria, as crianças com necessidades educativas especiais mais as
hiperactivas e todas as outras crianças especiais, automobilistas,
motociclistas, ciclistas e peões, mais os utilizadores de transportes públicos
(cinco classes sociais com direitos diferentes), os diplomados de letras e de
ciências mais os arquitectos, os engenheiros, os juristas, os informáticos, os
nutricionistas, etc., quem tem "direitos" (que são vários, todos
diferentes), os "europeus" e os "refugiados", os políticos
e os outros, a esquerda, o PS e os "fascistas", etc. etc. Nem sei se
ainda há portugueses ou se ainda é permitido sê-lo.
Jorge Marques: Uma nota em relação ao salazarismo: Salazar era nacionalista mas não era rústico, era católico; ele não era
inimigo do comércio livre mas sim das multinacionais e dos défices da balança
externa; e também não era inimigo da propriedade privada apesar de ser amigo do
interesse público. Os “desvios” à moral
vigente que são hoje tolerados não anulam a norma que é hoje imposta em termos
ideológicos, nem as limitações que hoje existem à liberdade de expressão. E quanto à possibilidade de o indivíduo decidir estrafegar o seu destino
conforme entender, a única coisa que não era permitida era estrafegar-se em
público. Porque tirando isso, houve muita gente que se estrafegou de todas as
maneiras possíveis e imaginárias naquele tempo. OK, havia duas coisas que você não referiu: a PIDE e a Guerra Colonial. Mas se hoje não temos guerra, pode crer que as nossas secretas e o fisco
não ficam nada a dever à tradição pidesca. A diferença é que hoje já não são precisos calabouços para controlar as
pessoas...
Maria Alva: Uma grande verdade, bem
elucidativa do cinismo de algumas comemorações: "passear (na Avenida da
Liberdade) em prol da democracia JUNTO DE CRIATURAS QUE SEMPRE A
COMBATERAM". Tal como os inflamados
discursos parlamentares sobre a Liberdade de representantes de partidos que,
até ao 25 de Novembro, tudo fizeram para a combater.
Até prá semana, AG.
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