sexta-feira, 13 de abril de 2018

Mais do que jornalista



João Miguel Tavares é condenado por alguns porque extrapola da sua missão de informador, que deve ser isento, e entra no âmbito do moralista, a maior parte das vezes zurzindo nas personagens da sua análise, assentes num status que uma esquerda popularucha venera, se for da sua cor política, ou ataca, se o não for. E os que o lêem, se forem da tal esquerda esfuziante de glória, nestes tempos dados a visões limitativas de reflexão, logo disparam contra as suas análises, onde a graça e a inteligência se cruzam, sem ambiguidades e com frontalidade e alguma engraçada irreverência. Mais do que jornalista, João Miguel Tavares é, pois, um escritor que me parece um excelente observador dos comportamentos humanos e com todo o direito de mergulhar no seu descritivo, de arguta interpretação.
Coloco alguns comentários que defendem os seus visados, como esse que insere Lula da Silva no tempo dos que viviam sob a chibata dos capangas de coronéis poderosos, que as telenovelas brasileiras douraram através da arte representativa: Lula da Silva, um “levantado do chão”, certamente que mais importante para o comentador do que o tal “populista que vive do efémero sem passado nem futuro” que “rotula à JMT”.        
Julgo que tão rotulador é o tal comentador Jose, virtuoso defensor do criminoso - desde que este seja aureolado por um passado de penúria e sofrimento - como JMT, ambos vivendo na democracia libertária do jogo opressor da censura de opinião. Com efeito, os retratos de JMT, não só os individuais, como os que definem a sociedade, parecem-me de extremo impacto, na graça e sentido de observação das suas caracterizações e metáforas, como essa das vacas mistas a definir o comportamento ambíguo do actual governo.
Mais do que simples jornalista, JMT é um excelente e valente escritor de opinião, que nos dessedenta, na seca dos tempos. Auguro-lhe um bom futuro, desconhecedora que sou do seu passado. E condeno a arrogância grosseira e mesquinha de Jose, que, virtuosamente, se rende aos pés dos levantados do chão, ainda que caracterizados por actos puníveis – perdoáveis, na atenuação das suas origens, para todos os Joses da parcialidade benemérita.

I - OPINIÃO
De Lula a Bruno de Carvalho: olhar e não querer ver
Na medida em que admitir que eles falharam é admitir que nós falhámos, preferimos fechar os olhos à realidade e aderir acefalamente a quem está sempre disponível para pensar por nós.
PÚBLICO, 10 de Abril de 2018
Lula da Silva faz um discurso interminável em cima do telhado de um sindicato, insultando a comunicação social, enlameando a justiça, afirmando que a sua prisão irá provocar “orgasmos múltiplos” aos seus detractores, e chegando ao ponto de garantir que foram os tribunais brasileiros a apressar a morte da sua mulher. Em qualquer lugar do mundo, este seria o discurso de um demagogo e de um populista. Se acaso Donald Trump fosse preso, diria mais ou menos aquilo, só que de fato e gravata, em inglês e na Trump Tower. A demagogia, a manipulação, o ressentimento e o recurso às teorias da conspiração seriam iguaizinhas. E, no entanto, para a esquerda portuguesa, Lula da Silva, o homem do Mensalão, é um preso político e a pobre vítima – palavras de Catarina Martins, grande pilar do governo da República Portuguesa – de “um golpe da direita reaccionária, racista e fascista”.
Bruno de Carvalho anda há anos a utilizar uma linguagem inqualificável, numa confusão permanente entre a pessoa e o presidente do Sporting, anunciando o nascimento de filhos nos ecrãs do Estádio de Alvalade, totalmente obcecado pelo seu ego e pela sua imagem, implacável com as críticas, ao ponto de ter organizado uma assembleia geral para poder calar mais facilmente as vozes incómodas, e na qual chegou ao ponto de listar que jornais os sportinguistas deveriam ler e que canais de televisão deveriam ver. Em qualquer lugar do mundo, esta seria a postura de um líder populista e autoritário. E, no entanto, Bruno de Carvalho teve 90% dos sócios a apoiar os seus desvarios totalitários até ao dia em que as frustrações se viraram contra o plantel do Sporting. Só nesse momento é que milhares de sportinguistas perceberam enfim que Bruno de Carvalho se estava a comportar como sempre se comportou – e que esse comportamento era inadmissível.
Todos nós acreditamos em pessoas, partidos, religiões, clubes, com os quais estabelecemos relações emocionais profundas. Não tem mal algum, com esta condição: jamais permitirmos que essa rede emocional – seja ela clubística, religiosa ou ideológica – se torne impermeável à realidade e suspenda o nosso próprio pensamento. É a isso que chamo “olhar e não querer ver”. Quando as nossas paixões se sobrepõem aos factos mais elementares ficamos rapidamente nas mãos dos demagogos, dos fanáticos e de todas aqueles que queremos tanto que estejam certos que nunca deixamos que estejam errados, mesmo quando somos confrontados com as estrondosas evidências das suas falhas. Na medida em que admitir que eles falharam é admitir que nós falhámos – porque avaliámos mal o seu carácter ou depositámos esperanças infundadas em alguém –, preferimos fechar os olhos à realidade e aderir acefalamente a quem está sempre disponível para pensar por nós.
Há pessoas dissimuladas que nos enganam. Eu isso percebo. Mas tenho dificuldade em aceitar que possamos ser enganados por aqueles que andam há anos a mostrar aquilo que são, e aquilo que estão dispostos a fazer, mesmo diante de nós. Foi o que aconteceu com Lula da Silva. Com Bruno de Carvalho. Com José Sócrates. Toda a gente sabia quem eram. Não apenas os mal-informados, os distraídos ou os palermas – toda a gente, milhões de seres inteligentes, insensíveis ao autoritarismo, à demagogia ou à corrupção. Orwell dizia que é preciso uma luta constante para ver aquilo que está à frente do nosso nariz. É impressionante a quantidade de gente que todos os dias continua a perder essa luta.

COMENTÁRIOS
Algures 10.04.2018
Quanto à sugestão do sr Orwell , o JMT olha apenas para a espuma das coisas, e ignora as questões de fundo. Tem razão quanto à posição demagógica do Lula, mas o acompanhamento que podemos fazer à distância, sem conhecimento dos verdadeiros pormenores e trâmites, levam-nos a conclusões que resultam apenas da posição ideológica de cada um. Já quanto ao BC, personalidade exótica, o JMT prefere olhar mais para a forma do que para o verdadeiro conteúdo. O homem tem obra no Sporting, e é um lutador contra o estado "lampiânico" em que se transformou o país, o que lha traz imensos inimigos ...

  10.04.2018
Um homem só vale muito pouco. Valem os actos praticados que ficam para além do Homem persistentes e inquietos nas memórias de milhões de outros humanos. Ver e rotular seres humanos em modo de fotografia é um acto que classifica mais quem daí decide um rótulo que do instante fotografado. Ainda Portugal vivia "a noite negra do fascismo" e o Benfica/Sporting era o alfa e o ómega do entretenimento dominante e do outro lado do Atlântico havia outra ditadura feudal ao som da bola, da chibata em corpo escravo, do fuzil de jagunço em corpo camponês e bataclan p'ra Coronel se aliviar da vida dura. Aí se erguia do chão da exclusão Inácio Lula da Silva para chegar ao topo do mundo. Esse percurso não cabe num rótulo instantâneo. Um populista que vive do efémero sem passado nem futuro rotula à JMT.

  10.04.2018
Excelente. Uma obra-prima de acutilância lógica, incontornável e indesmentível. Parabéns e obrigado.

II- OPINIÃO
MÁRIO CENTENO E A INVENÇÃO DA VACA MISTA
A vaca mista é uma vaca para todos os gostos, e isso torna extremamente difícil a vida a todos os partidos políticos, com excepção do PS.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 12 de Abril de 2018
Nós conhecíamos a vaca gorda e a vaca magra. Mário Centeno inventou a vaca mista. Temos de admitir: é uma invenção de génio. Ninguém pode dizer que o país esteja a viver num tempo de vacas magras, porque a economia cresce, o desemprego desce e a sobretaxa do IRS desapareceu. Mas também ninguém pode dizer que o país esteja a viver num tempo de vacas gordas, porque as cativações continuam, a carga fiscal é a maior de sempre e as crianças fazem tratamentos oncológicos nos corredores do Hospital de São João. Dir-se-á, então, que estamos a viver num tempo intermédio. Mas não é bem isso – estamos, isso sim, a viver num tempo de sobreposição, em que o gordo e o magro coabitam, e é nesse espaço de indefinição, habilmente gerido, que o poder e a popularidade do Governo se têm afirmado, e continuam a crescer.
Vivemos tempos de vacas mistas. A vaca mista é muito diferente da vaca intermédia, que não é gorda, nem magra. O golpe de génio de Mário Centeno está no aproveitamento dessa diferença: a vaca mista consegue ser simultaneamente magra e gorda, dependendo do modo como se olha para ela. Não é uma questão de alimentação, mas de iluminação. Virando o foco para as reposições, temos o Governo do “virar da página da austeridade”, da reposição dos rendimentos, do enterro definitivo do diabo. Virando o foco para as cativações, temos o Governo da disciplina financeira férrea, das execuções orçamentais que vão além dos planos de estabilidade, do Mário Centeno presidente do Eurogrupo. Qual dos dois é o verdadeiro? Ambos são, e nenhum é, porque aquilo que passou a importar não é a adesão à realidade (o peso efectivo da vaca) mas a gestão das expectativas (qual das vacas preferimos valorizar).
A vaca mista é uma vaca para todos os gostos, e isso torna extremamente difícil a vida a todos os partidos políticos, com excepção do PS. Perante um défice melhor do que o previsto, o Bloco de Esquerda engrossa a voz e diz não querer apoiar mais um Governo com vontade de superar as metas estabelecidas com Bruxelas. Catarina Martins disse mesmo: “Para Centeno brilhar, os serviços públicos não podem ficar às escuras.” E Mariana Mortágua escreveu um título ameaçador no Jornal de Notícias: “Não há governos de minoria absoluta.” Mas perante os sucessos económicos de Mário Centeno, tanto o Bloco como o PCP estão num impasse de difícil resolução. A política de cativações vai contra tudo aquilo que sempre defenderam, e a diminuição da dívida pública era suposto ser uma impossibilidade (quem se recorda ainda do famoso Manifesto 74, que em 2014 defendia fervorosamente a reestruturação?). No entanto, irá agora a esquerda deitar tudo a perder, entrando em ruptura violenta com o PS a pouco mais de um ano das legislativas, e deixando os socialistas a usufruírem sozinhos da popularidade da governação? Não creio.
O PSD está numa posição ainda pior. Rui Rio continua caladíssimo, e a seu favor podemos ao menos admitir isto: não há grande coisa que ele possa dizer. Se pedir aumentos para os funcionários públicos vai juntar-se à extrema-esquerda e fazer uma figura ridícula, porque a história de um partido não se apaga de um dia para o outro. Se pedir mais rigor nas contas públicas vai ter o ministro das Finanças a perguntar: “Mais rigor ainda?” A vaca mista de Mário Centeno encostou às tábuas tanto a esquerda como a direita do PS. Sim, é bicho dissimulado e ambíguo. Mas não há como negar o extraordinário golpe político que foi a sua criação. 


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