De conhecimento histórico. Por isso me agradou tanto este breve artigo
de Raquel Varela sobre a tal “Primavera de Praga” de que ouvia
falar através da rádio, em tempos de trabalho profissional que açambarcava as
vivências, na distância, na incapacidade ligeira de abarcar todo o
conhecimento, mau grado a expressão tornada proverbial “nada do que é humano me
é estranho”, o que é, de resto, valente pretensiosismo, de perfeita falsidade.
Não, não fazia ideia do desenvolvimento cultural e industrial da Checoslováquia,
só muito mais tarde li “A insustentável leveza do Ser”, demasiado complexo
para a minha própria leveza desatenta, mas que me apetece retomar agora, com a
referência deste artigo a Milan Kundera, na recriação, por R.V. da breve resistência
checa ao domínio soviético – “Primavera de Praga” se lhe chamou, como
resistência natural de todo o nacionalista que se preza, a um poder
estrangeiro.
OPINIÃO
A “Primavera de Praga”, 1968
Há 50 anos a Checoslováquia
era a 8.ª potência industrial do mundo. Chegaram, porém, os tanques, não o
socialismo.
RAQUEL VARELA
Público, 4 de Abril de 2018
A invasão pelas tropas
russas da Checoslováquia teve lugar na noite de 20 para 21 de Agosto de 1968.
Às 11h da noite, entre 400 a 500 mil soldados do Pacto de Varsóvia atravessaram
a fronteira.
Uma série de reformas
tinham mudado a face da Checoslováquia a partir de Janeiro de 1968, a “Primavera
de Praga”: liberalização da imprensa, rádio e TV, e a partir de Abril um plano
económico (O Programa de Acção) que diminuía o controlo centralizado do Estado
sobre a economia, atribuindo mais poder aos comités de fábricas. Este
era um dos pontos nevrálgicos das reivindicações da oposição popular,
trabalhadores e intelectuais porque um plano altamente centralizado (e
não um plano democrático) malogrou a prestação de serviços essenciais, não
tinha em conta as necessidades da população. Foram também nestes meses
renovados os estatutos do partido, permitindo o debate interno, sufocado
desde o final dos anos 40. Anunciava-se um novo congresso para 9 de
Setembro de 1968 que, com a pressão social externa ao partido, ia reforçar
as posições reformadoras de Alexander Dubcek, eleito em Janeiro de 1968.
Ao contrário dos outros
países da Europa de Leste, libertados do nazismo pelo Exército Vermelho,
a Checoslováquia tinha uma longa tradição comunista, organizada num partido
legal, durante o regime de democracia liberal, vigente no país entre 1918 e
1938.
O Partido Comunista
Checoslovaco tinha desenvolvido alguma independência do Comintern até
1929. Nessa altura, um congresso de bolchevização — frequentemente as
purgas nos partidos estalinistas eram acompanhadas pelo uso simbólico da
palavra “bolchevismo” (projecto político morto no fim da década de 20) — impôs
a linha estalinista de “socialismo num só país”, e a defesa da URSS como “um
centro monolítico do movimento revolucionário internacional”. Começam então
uma série de conflitos que levam à perda paulatina de membros, 70% terão então
abandonado o Partido. Com a mudança, em 1935-1936, para a linha da
“frente-popular” antifascista, o Partido volta a crescer de forma
significativa. Porém, o núcleo duro das suas lideranças tinha sido formado na
fidelidade à URSS, educado aliás na própria URSS. Os comunistas mais ligados ao
país — do interior — eram vistos por estas lideranças “exteriores” com
desconfiança.
A URSS vai pressionar o
Partido no interior para que em 1945 a Checoslováquia seja libertada
pelas tropas de Exército Vermelho, enquanto as lideranças no interior apostavam
num levantamento liderado pela resistência. De facto, os comités de resistência
clandestinos organizaram, em algumas fábricas, o levantamento popular de 5 de
Maio de 1945, contra a direcção exterior do Partido. E o mesmo aconteceu com o
levantamento eslovaco, em Agosto de 1944, que foi realizado à revelia das
chefias checas e eslovacas pró-soviéticas. Soma-se a isto a divisão de Yalta e
Potsdam, o “tratado de Tordesilhas” que dividia o mundo em áreas de influência
dos EUA e da URSS.
Na sequência da
libertação, entre 1945 e 1949, o país vive um período de abertura, as letras e
artes são o sector mais dinâmico — não por acaso a literatura ou o cinema checo
estarão entre as principais vanguardas artísticas europeias até ao final dos
anos 60. Os artistas e intelectuais vão opor-se à linha oficial do partido de
uma “arte proletária”. Este foi apenas um dos debates que levaram a uma
intervenção dramática de purgas no partido, entre 1949 e 1954, que impuseram
uma férrea ditadura, até 1968.
A Checoslováquia foi o
país onde as purgas foram mais violentas. Porquê? Segundo Jirí Pelojkán,
director da TV Checoslovaca em 1968, e oposicionista de esquerda, porque era aí
que o socialismo era mais forte. E, portanto, uma ameaça à
burocracia incrustada no poder: “Foi na Checoslováquia que houve condições
mais favoráveis para o socialismo em toda a Europa Oriental; por causa da
industrialização do país, porque tinha uma ampla e formada classe trabalhadora
[...]. Deste ponto de vista, parece estranho que a maior purga em qualquer
partido comunista seja a que aconteceu na Checoslováquia em 1949-54. Eu acho
que foi precisamente porque a Checoslováquia teve as condições mais favoráveis,
parecia ser a mais independente na procura do seu próprio caminho de
desenvolvimento. Isso não se adequava à liderança soviética. Eles queriam
monopolizar a Europa Oriental e impor o modelo soviético. Por esta razão, foram
obrigados a atacar mais forte o Partido Comunista da Checoslováquia.
Partidos como o polaco, húngaro ou búlgaro eram apenas pequenos grupos de
vanguarda que haviam estado subterrâneos, na clandestinidade, por 20 a 30 anos.
Não era tão difícil para eles aceitar a hegemonia soviética. [...] Naturalmente,
parecia paradoxal e chocante para nós que o número de vítimas da repressão
fosse o mais alto na Checoslováquia, apesar de todas as nossas tradições
democráticas. Nada em escala comparável ocorreu em outros lugares da Europa do
Leste.”
Durante 1967, o país
sofre os efeitos da crise económica de 1963. Crescem as manifestações de
estudantes e de intelectuais contra a falta de liberdade e a exigirem reformas.
Este era o “Estado dos trabalhadores”, mas os mesmos nem conheciam as contas
das fábricas — das quais, em teoria, eram donos colectivos. Há uma forte
questão nacional que adensa a crise, a questão eslovaca.
Na sequência da pressão
popular, Dubcek é, em Janeiro de 1968, eleito. Era um reformista,
mas não um dissidente. Não era um homem anti-soviético, e tentou gerir a
pressão da sua base social para a mudança sem melindrar a URSS. Um equilíbrio
que se demonstrou impossível. Não queria apoiar-se nos “comités de iniciativa”,
que seriam a base para estabelecer conselhos de trabalhadores, os únicos que
podiam ter resistido aos tanques soviéticos.
Assim, quando a URSS
invadiu o país, Dubcek e os homens à sua volta não propuseram nenhum tipo de
resistência, mesmo civil, como uma greve geral, limitando-se a ficar, e não o
escondendo publicamente, paralisados e desalentados com a invasão. A qual era
realizada, segundo os russos, para “evitar a liberalização económica” do país.
A “Primavera de Praga” era vista publicamente pela URSS como uma adesão do
país ao capitalismo. Mas a maioria das forças sociais no país estavam de facto
a lutar pela democratização e não pela liberalização económica, embora um
sector fosse favorável a uma mudança para um Estado capitalista. A realidade
era que o exemplo checo ia ter repercussões imediatas na Polónia e na Ucrânia.
Em tempos de crise do Pacto quando a URSS já não controlava a Jugoslávia e a
Roménia.
Os privilégios da casta
dirigente da URSS e seus satélites estavam potencialmente postos em causa se
avançasse para um Estado socialista com base em conselhos operários, o que era
mais realista em 1968 do que nunca porque a guerra tinha dado um impulso à
industrialização pesada que colocava mais perto, e não mais longe, a
abundância, como condição e expressão de uma sociedade socialista. A
Checoslováquia era a 8.ª potência industrial do mundo. Chegaram porém os
tanques, não o socialismo.
Em Novembro de 1968, um estudante
checo declara que “todo o país tem-se sentido doente”. Os líderes têm feito
tudo o que os russos querem. E não é claro — diz ele — se o fazem obrigados ou
por vontade própria. Milan Kundera, na Insustentável Leveza do Ser,
romance premiado que se passa durante a Primavera de Praga, expressa a profunda
desilusão com o rumo da vida política na Checoslováquia: “Se digo totalitário,
é porque tudo quanto possa fazer perigar o kitsh é banido da vida
[...]. O gulag seria [...] a fossa séptica para onde o kitsh despeja
a porcaria.”
As tropas russas
chegaram e ocuparam, com escassa resistência. Morrem 50 a 100 pessoas, nada de
comparável, por exemplo, com a resistência húngara de 1956, em que morreram
20.000. Mas nada foi como antes no mundo comunista. O Maio de 68 e a
Primavera de Praga impulsionaram ainda mais a ruptura social-democrata dos PCs
fiéis à URSS. Se mostraram a sua força na contenção dos movimentos sociais, em
Paris, Berlim ou Praga, não evitaram, com essa contenção, o seu constante
declínio desde então.
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