terça-feira, 3 de abril de 2018

Um belo artigo



De João Miguel Tavares. O articulista costuma destacar-se pelos seus juízos penetrantes e desassombrados sobre o estado das nossas políticas e os seus fautores, que nos aprazem pelo que revelam de uma sadia formação moral além de um profissionalismo de eficiência na recolha de informação, não obcecada pelos ditames de um esquerdismo faccioso e primitivo.
Mas este artigo sobre o herói francês Arnaud Beltrame, ao enveredar pelo capítulo da psicologia e da ética, no desvendar dos impulsos que levam à prática de actos heróicos de sublimidade inesperada e comovente, mostra quanto o estudo e a inteligência analítica são igualmente premissas da sua comunicação. Por isso lhe ficamos gratos por, num mundo de ruído e crueldade e inanidade humanos, ter escrito este artigo de homenagem a um herói tout court”.

OPINIÃO
Homenagem a um herói francês
O mais extraordinário nos grandes actos de heroísmo é a dispensa de coerência entre o gesto e a vida.
JOÃO MIGUEL TAVARES
Público, 27 de Março de 2018
Nunca encontrei uma boa explicação para o facto de chorarmos nos filmes não nos momentos de violência extrema, mas nos momentos de redenção – porque é que um final feliz nos comove mais do que um brutal massacre? Alguns psicólogos justificam esse comportamento argumentando que a violência extrema leva a uma suspensão momentânea da nossa vulnerabilidade, de forma a sermos mais eficazes na reacção imediata ao perigo. Apenas quando voltamos a sentir-nos seguros – o tal final feliz – é que nos sentimos libertos para vazar as nossas emoções.
Mas a segurança não explica tudo, até porque ela é incapaz de justificar uma outra evidência que encontramos nos filmes: também os gestos de grande bondade nos comovem muito mais do que os actos de maldade, como se existisse um misterioso mecanismo darwiniano através do qual a espécie humana se preserva não tanto pela capacidade em aniquilar o outro, mas de o proteger além de tudo o que é razoável, até à doação da própria vida. Talvez isso justifique a durabilidade de certas religiões – os evangelhos não contam outra história que não essa –, e também explique porque nos curvamos respeitosamente ao ouvir o nome de Arnaud Beltrame, o tenente-coronel da polícia francesa que se ofereceu para trocar de lugar com uma mulher que trabalhava na caixa de um supermercado de Trèbes. E que morreu por causa disso.
Muitos perfis que se escreveram sobre Beltrame tentam mostrar a coerência da sua decisão, relacionando-a com o cumprimento do dever – embora não houvesse ali dever algum: os protocolos de reacção a ataques terroristas certamente não prevêem a troca de reféns por polícias – e com um longo percurso de dedicação à profissão e à pátria. Mas o mais extraordinário nos grandes actos de heroísmo é a dispensa de coerência entre o gesto e a vida. Haverá certamente pessoas magníficas que não teriam coragem para tomar tal atitude, tal como é possível que uma pessoa normal, anónima, que nunca se tenha destacado ao longo da existência, consiga subitamente erguer-se acima da sua própria condição para um acto de suprema (e, em última análise, irracional) entrega ao outro. Tal como o bom ladrão na cruz, Beltrame não precisa de ser santo – um só gesto (uma só frase?) pode redimir uma vida.
O mundo divide-se entre pessoas que preferem cães ou gatos, Pepsi ou Coca-Cola, ou que vêem o copo da vida meio cheio ou meio vazio. Eu tenho a sorte (acho que é sorte) de o ver meio cheio. Mesmo reconhecendo que isto de estar vivo um dia vai acabar mal, tenho andado pelo mundo com uma certa capacidade para a alegria, a que alguns chamam erradamente “optimismo”. O copo meio cheio não é uma ficção. Ele é alimentado por acontecimentos reais e por pessoas concretas, como Beltrame, cujo gesto não salvou apenas a mulher do supermercado de Trèbes – com o seu exemplo, salvou um pouco toda a humanidade.
Aquilo que me surpreende não são os fanáticos, não são os adeptos da violência, não são os que usam da força para maltratar os mais fracos. Essa é a lei ancestral da selva. Aquilo que me surpreende sempre é a bondade desinteressada, é a flor que nasce no meio do estrume, ou como no meio do sofrimento há tanto – o sabor da cereja, diria Kiarostami – para nos manter agarrados à vida. Em França há um lugar onde se canta, por esta altura: “Il n’est pas de plus grand amour que de donner sa vie pour ceux qu’on aime.” Mas há um amor ainda maior do que esse: dar a vida por quem nem sequer se conhece. A minha vénia a Arnaud Beltrame.

Comentário:
PEDROAVALENTE
 INICIANTE
Dos testemunhos mais importantes que tenho visto. Quem fala aqui em esquerda ou direita está fora do espírito universal do artigo. Gosto particularmente, porque, apesar de apreciar a habitual lucidez de ideias e clareza de comunicação do João Tavares, infelizmente os seus artigos passam muitas vezes a ideia de que o Mundo é um copo mais meio vazio do que meio cheio. Um local em França onde se canta esta passagem é a comunidade de Taizé. Muitos que lá estiveram concordam que a razão da durabilidade das religiões é a mesma que leva as pessoas a dar a vida: É através delas e de acções como esta que o Homem encontra a essência da humanidade, a bondade e entrega incondicionais, e com isso arrebata a plenitude da paz interior. E dar testemunho disso ajuda o Homem a reencontrar a sua essência.


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