Quando
no nosso país se começou a referir a despenalização da eutanásia, naturalmente
me repugnou tal prática, achando que nunca ela passaria numa assembleia de
gente minimamente decente, mas parece que o Bloco de Esquerda, sensível que é à
dor, volta a fazer tal proposta, lançando sobre outrem a pecha de “assassino”,
lavando as suas mãos de tal mácula, como o nobre Pilatos ao condenar Jesus.
De facto, vivemos numa época
de muito crime, a vida quase deixa de fazer sentido quando atentamos no que vai
por esse mundo, que com requinte nos é bastamente referenciado nos media,
apesar de tantos testemunhos de bondade e solidariedade também, mas o
desrespeito pela vida dos condenados por doença não deixa de nos impressionar.
Por isso, um bem haja a
I - JURAMENTO de HIPÓCRATES
1983
No momento de ser admitido
como Membro da Profissão Médica:
Prometo solenemente
consagrar a minha vida ao serviço da Humanidade. …. Não permitirei que
considerações de religião, nacionalidade, raça, partido político, ou posição
social se interponham entre o meu dever e o meu Doente. Guardarei respeito absoluto pela Vida Humana desde o
seu início, mesmo sob ameaça e não farei uso dos meus conhecimentos médicos contra
as leis da Humanidade. Faço estas promessas solenemente,
livremente e sob a minha honra. FÓRMULA DE GENEBRA Adoptado pela Associação Médica Mundial, em 1983
II- EUTANÁSIA
Quero ser médica e não homicida
OBSERVADOR, 13/4/2018
Como médica portuguesa,
formada na Bélgica e na Suíça a trabalhar em Bruxelas, não poderia deixar de
enviar o meu testemunho do que se passa em dois países onde a morte assistida
já foi despenalizada.
As discussões sobre o
fim de vida, a eutanásia e o suicídio assistido em Portugal nos últimos dois
anos, levaram três partidos da Assembleia da República a apresentarem
anteprojetos de lei a favor da despenalização da morte provocada (estes
anteprojetos falam de morte provocada e portanto não natural; o termo de morte
assistida leva a incompreensões pois uma morte natural, com acompanhamento
médico como no caso dos cuidados paliativos, é uma morte assistida) e tem
contribuído para que sejam publicados diversos artigos de opinião sobre a
matéria. Como médica portuguesa, formada na Bélgica e na
Suíça, e atualmente a trabalhar em Bruxelas, não poderia deixar de enviar o meu
testemunho do que é se formar e trabalhar em dois países europeus onde a
despenalização da morte provocada por vontade do doente, já existe.
Querendo com este texto mostrar um pouco da realidade da medicina e da
sociedade nestes países, exporei alguns casos vividos em primeira pessoa
durante a minha prática clínica. Na minha trajetória profissional, muitas
foram as situações em que pacientes me pediram para pôr fim às suas vidas,
quase sempre sem se encontrarem nas condições previstas por lei para o fazerem;
também fui confrontada com famílias que sofriam pela doença dos seus
familiares, e que me pediram a eutanásia destes.
A primeira lei
permitindo a despenalização da eutanásia na Bélgica, data de 2002 e permitia
que a eutanásia pudesse ser realizada sob certas condições: doente
adulto, com doença incurável ou condição clínica acidental irreversível, em
sofrimento físico e/ou psíquico constante, insuportável e incontrolável. Em
2014, no que se chama atualmente em bioética a “rampa deslizante” belga, a lei
foi alargada aos menores de acederem à eutanásia se fizerem um pedido de
eutanásia reiterado, que se encontrem numa situação de sofrimento insuportável
devido a uma patologia incurável, e com o acordo dos pais.
Como interna e depois
como médica, tive pedidos de eutanásias de diversos pacientes e também de
algumas famílias. Durante a minha especialização, segui um paciente que se
encontrava em estado muito avançado da sua patologia oncológica. Muito
rapidamente, esse senhor acabou por entrar num coma irreversível, e a sua
agonia (em medicina, define o período que precede a morte, que na grande
maioria dos casos é sem dor) durou pelo menos 3 dias, questionando-me a mim
como a toda a equipa quanto ao sentido daquela situação. Quero ressalvar que
não houve nenhuma obstinação terapêutica nem nenhuma dor que não fosse
corretamente tratada. Todavia, e visto que o paciente já não se encontrava
consciente, mas que a sua agonia era considerada por alguns colegas como longa
demais, houve quem dissesse que era necessário ajudar aquele paciente a
falecer. Sabendo muito bem o que acontece em tantos hospitais belgas, não
fiquei espantada com a proposta. A intenção existia, mas acabou por não ser
posta em prática, porque o paciente acabaria por falecer de morte natural, em
presença das enfermeiras que cuidavam dele.
Poucos anos mais tarde,
tratei de um paciente que tinha feito um pedido de eutanásia por sofrimento
insuportável e que tinha sido avaliado por dois colegas médicos. No dia em que
aquele senhor ia escolher a data para a sua eutanásia, ele começou por ficar
desorientado e confuso, não podendo dar a conhecer a data que tinha escolhido.
Eu chego durante esse período naquele serviço hospitalar e torno-me a sua
médica responsável. Passados poucos dias, o doente deixa de estar confuso e
a pouco e pouco retomo a discussão com ele, para saber se o processo de
eutanásia devia continuar. Ao perguntar-lhe se queria manter o pedido de
eutanásia, aquele doente confessou-me não querer morrer, mas que as muitas dores
que sentia lhe eram insuportáveis e por isso pedia a morte. Tenho que admitir
que não esperava esta resposta, sobretudo porque partia do principio que tudo
tinha sido feito anteriormente para atenuar as dores. Acabei por me aperceber
que o seu tratamento não estava ajustado à intensidade dos sintomas, e depois
da adaptação terapêutica, o paciente acabou por retirar o seu pedido de
eutanásia e voltar para casa com cuidados paliativos a domicílio.
Estes episódios que
agora relato, entre tantos, demonstram claramente o quanto é perigoso
despenalizar práticas que provocam a morte dos cidadãos, e quanto é
utópico querer controlar estas mesmas práticas, seja pelas autoridades seja por
comissões externas. As recentes polémicas da Comissão de
Controlo da eutanásia na Bélgica são disso prova[1]. A justificação
segundo a qual a despenalização da morte provocada impedirá eutanásias
clandestinas e ilegais é falsa. Sabemos na Bélgica, na Holanda
e na Suíça, que não é assim. Os promotores da eutanásia na
Bélgica dizem em alto e bom som que o número de eutanásias não pedidas (e,
portanto, fora do quadro da lei) ultrapassa as 1000 mortes por ano. No artigo
que escreveu a um jornal generalista belga em 2014, um professor de cuidados
intensivos e antigo presidente da Sociedade belga de cuidados intensivos
defendia a possibilidade de se realizarem eutanásias sem pedido do paciente,
com a justificação da medíocre “qualidade de vida” de tantos pacientes nos
cuidados intensivos, pedindo mais poder para o médico definir quem merece viver
e quem merece morrer, coisa que ele admite já acontecer nos hospitais belgas[2].
Quem conhece bem o tema da
eutanásia e do suicídio assistido, não se espanta com estas derivas. Elas
provêm de uma conceção puramente utilitarista do fim de vida, que se esconde
por detrás da noção de “qualidade de vida”, que é completamente indefinível
porque é subjetiva e própria a cada pessoa. Para além de que
estas leis, mesmo que excessivamente restritivas, fazem crer à sociedade e aos
médicos, a pouco e pouco, que a morte provocada é um direito do cidadão, não
vai contra os fundamentos da nossa sociedade e é simplesmente mais uma proposta
terapêutica como qualquer outra.
Não obstante estas
situações graves às quais fui confrontada durante a minha carreira até hoje,
pude trabalhar com equipas de cuidados paliativos. Pude aprender com elas
como enfrentar o fim de vida de uma pessoa, como cuidar médica- e humanamente
destes doentes e das suas famílias. O seu aparecimento na medicina
vem em grande parte da interdição de matar, que é constitutiva da medicina.
Isso levou tantos profissionais de saúde a investigar, a procurar o melhor
que a medicina pode fazer para atenuar a dor física e o sofrimento moral de
tantos doentes. Todavia, numa visão utilitária do paciente e da
medicina, querem nos fazer crer que a resposta mais humana que podemos dar a um
outro ser humano que sofre, é a morte, sobretudo se ele a pedir. Parece-me por
isso muito fácil e certamente menos caro para o governante, inscrever uma lei no Diário da República a
permitir a morte provocada dos seus cidadãos, do que a refletir, instituir e
pagar por uma rede eficaz de cuidados paliativos à disposição dos cidadãos e
dos profissionais de saúde. Esta quase ausência
no panorama do SNS é inadmissível, quando os cuidados paliativos foram
desenvolvidos há décadas e são propostos pela Organização Mundial da Saúde como
a única forma de cuidar e de acompanhar os doentes em fim de vida. Justificar
por isso a eutanásia e o suicídio assistido com o “morrer mal”, quando pouco
foi feito para permitir um acompanhamento adequado em fim da vida, é
simplesmente insultuoso para os portugueses e para os profissionais de saúde.
Eu não quero ser homicida; eu quero ser médica.
Pensar por isso que
Portugal não cairá nas mesmas derivas que já existem nos países onde a
eutanásia e o suicídio assistido foram despenalizados, é pura inconsciência da
parte dos nossos governantes. Abrir a porta a estas práticas em Portugal, mesmo
nas condições mais restritivas que sejam, já será o início da rampa deslizante
que obrigará mais tarde a mesma porta a ser escancarada em nome de um “direito
a morrer” para todos o que o pedirem. Os promotores da morte “assistida”
sabem-no muito bem.
Só existem por isso duas soluções para combater a má morte e
ambas estão ao alcance do Estado e da sociedade: obrigar o
Estado a investir num sistema nacional de cuidados paliativos eficaz assim como
na formação de todos os profissionais de saúde para a sua prática; e incentivar
social- e economicamente o fortalecimento dos laços familiares e de
proximidade, de maneira a que as famílias em conjunto com as equipas médicas de
cuidados paliativos, possam acompanhar os seus doentes, educando assim as
gerações seguintes ao cuidado de quem está doente e que sofre. Isto para que ninguém
possa, um dia, pedir a morte e aceder a ela por estar só, por sofrer sem ter os
cuidados médicos justos ou ainda por se sentir um fardo para a sua família e
para a sociedade, que ela própria ajudou a manter com o seu trabalho e com a
sua participação enquanto cidadã.
Bruxelas, 12 de Abril de 2018
Médica
especialista em Clínica Geral e Familiar
[1]« Malaise au
sein de la commission de contrôle de l’euthanasie: un médecin a mis fin aux
jours d’une patiente sans respecter la procédure légale » – RTL Info du 6Janvier 2018. [2] Jean-Louis Vincent : « Maintenons
la santé mais pas la vie à tout prix»; Journal LeSoir de 25 de Fevereiro de 2014.
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