É
claro que a aliança foi no fito de obter acesso à governança, mas amizade
sincera, ou mesmo só empatia, julgo que não houve nem há, apesar dos disfarces
de António Costa, sempre hábil a iludir. As duas análises seguintes – uma, no Público,
de David Lopes, outra no Observador, de João Marques
Almeida, assim o demonstram e alguns comentários que lhes mereceram,
demonstram que mesmo o povo já não cai tanto na esparrela das sinuosidades
flauteadas de uma esquerda tão ambiciosa como os demais partidos, apesar dos
disfarces da benemerência e do sentimento, que não educam para a obrigação. A comparação
de Centeno com Victor Gaspar feita por JMA, põe os pontos nos ii
sobre uma integração europeia exigente de responsabilidades e de boas contas,
que não se coadunam com o acordado antes entre os parceiros coligados. Dois
bons textos, que se complementam.
ANÁLISE
Centeno
desafia a esquerda (e prepara o país para o diabo)
O ministro tratou a esquerda como se fosse oposição e deixou-a sem
margem para negociar o próximo Orçamento. Mas Costa e Galamba passaram outra
mensagem. O que vem aí é um desconhecido.
DAVID DINIS
PÚBLICO,
14 de Abril de 2018
Mário Centeno já não olha para a direita quando critica a oposição. Esta
sexta-feira, depois de ter sido chamado duas vezes ao Parlamento para ouvir
críticas à esquerda, o ministro das Finanças apontou mira ao Bloco e PCP.
Mário Centeno levou o discurso escrito, pelo que cada palavra foi
medida: “Há uma alternativa, mas ela corresponde a escolhas de regresso ao
passado em que o país enfrentou o risco de sanções, em que os investidores nos
rotulavam de lixo, em que bancos ruíam e com eles a confiança no sistema
financeiro. Não temos memória curta. Eu não seguirei esse caminho”.
O Bloco não gostou - e não podia ter gostado. Até porque o documento
agora entregue no Parlamento confirma que o ministro das Finanças quer fazer
do último Orçamento do Estado sem uma única medida nova para agitar em ano de
eleições, gastando mais apenas na implementação do que já foi acordado com o BE
e PCP - já em implementação, mas com custos ainda em 2019: a descida do IRS, o descongelamento
das carreiras e o aumento das pensões. De novo, neste Programa de
Estabilidade, só há uma medida: uma nova redução do IRS, prevista para… 2021
e paga quase na íntegra com uma redução dos benefícios fiscais, cuja poupança
também só chega em 2020.
O que Centeno disse, o que o Governo aprovou no documento, tem esta
consequência: não há nada para negociar em Outubro. Marcelo, que tinha
exigido um OE sem eleitoralismos, ficará contente. A esquerda, que terá que
aprovar o último orçamento, ficou em alarme.
Preparar o país para o diabo
Mas esta não foi a única mensagem que o ministro das Finanças deixou
ontem para a esquerda. Durante a sua intervenção e nas respostas aos
jornalistas, vincou que este caminho é o que cumpre o programa de Governo,
anotou que o investimento e despesa previstos no último orçamento foram
cumpridos “em 99%”, avisou que as medidas acordadas para função pública e
pensionistas estão a fazer crescer a despesa com pessoal em 4%. Para os
socialistas mais desconfortáveis, deixou também um lembrete: o que está no
Programa de Estabilidade é exactamente o que ele, Centeno, dizia no cenário
macro que preparou para a campanha eleitoral que levou o partido ao
poder.
Para todos, ficou outra ideia-chave: “O risco de um retrocesso existe
e é maior do que parece”. Ou, noutra passagem: “O país vai resolver os
seus desafios, ao mesmo tempo que constrói as condições para que no futuro a
envolvente económica se deteriorar possamos dispor de todos os instrumentos
orçamentais”. Por outras palavras: a bonança que o crescimento da economia
europeia tem dado ao país não vai durar para sempre. Ou, na forma de uma
fábula: Centeno é a formiga, a esquerda é a cigarra.
A orquestra socialista
desafinou
Mas Centeno não foi a única voz socialista a ouvir-se ontem. Nem uma
hora depois do discurso nas Finanças, António Costa virou a mensagem: “O
Governo não tem uma obsessão com o défice, tem com uma economia melhor e com
mais emprego”, disse o primeiro-ministro.
No Parlamento, João Galamba, porta-voz do PS, falou aos
jornalistas para contrariar “uma ideia instalada” de que o Governo tinha
apertado mais o cinto. E para contrariar o Bloco, “que parte de um equívoco”:
que este Programa de Estabilidade implica um esforço maior de consolidação”.
“É o oposto”, disse Galamba, o socialista que tinha dado uma entrevista ao
Jornal Económico avisando o Governo que era hora de acabar “com brilharetes” e
usar a folga para investir.
Galamba diz que foi isso que aconteceu: “Um abrandamento da consolidação
orçamental”, por virtude dos bons resultados de 2017. E que, com isso, haverá este ano um
“reforço do investimento e do serviço público”.
No Programa de Estabilidade, essa ideia traduz-se num parágrafo: “No
corrente ano, o nível do investimento foi já revisto em alta face à estimativa
do OE 2018. Tal foi possível graças à afectação da poupança em juros de 74
milhões de euros, entretanto conseguida.” São, portanto, mais 74 milhões
de euros em investimento, o que corresponde a 0,038% do PIB. Um anúncio
que vem acompanhado com uma tabela de uma página com as grandes obras públicas
previstas para os próximos quatro anos, todas elas já antes anunciadas e sem
calendário de execução.
Se Costa e Galamba acenaram com a lista, a esquerda ignorou-a na noite
passada. O Bloco
anunciou uma resolução, levando a votos o regresso ao défice de 1,1% (“o que
foi negociado no OE2018”) e que a tabela de investimentos passe dos 74 milhões
para 800 milhões. O distanciamento é medido: não pede a reprovação do
documento. Mas vinca uma certeza: a coesão desta maioria perdeu-se esta
semana. Ouvindo Centeno, foi de parte a parte. Ouvindo Costa e Galamba, talvez
não. Como diz a maldição chinesa: os próximos tempos serão interessantes.
O Bloco transformou Centeno no novo Vítor Gaspar
0BSERVADOR, 15/4/2018
As funções europeias de Centeno revelaram o seu real pensamento: ele
está muito mais próximo de Vítor Gaspar do que da escola de Louçã que manda no
Bloco. Não há ninguém nas esquerdas que não o saiba.
Um dos fenómenos mais
bizarros da vida política portuguesa é a existência de duas Catarinas Martins
(como se uma não chegasse). A ‘Catarina Martins I’ vota a favor dos
orçamentos deste governo. E já votou a favor de três, todos eles da
responsabilidade do ministro das Finanças. Mas, depois, a ‘Catarina
Martins II’ anda pelas ruas das nossas cidades, com as televisões
atrás, a protestar contra o orçamento que a versão número um da senhora
aprovou. A nossa Catarina Martins deve achar que os portugueses são
estúpidos ou então julga que a política não é mais do que um palco de teatro. Em
Portugal, o populismo, a demagogia e o oportunismo juntaram-se no Bloco de
Esquerda e são levados ao palco pela Catarina.
Mas, como se aproximam
as eleições, o Bloco decidiu aumentar os protestos, começando a atacar Mário
Centeno com uma violência verbal nunca vista nos últimos três anos. Aliás, os
termos usados fazem-nos recuar a 2012 e a 2013, aos anos de Vítor Gaspar à
frente das Finanças. O Bloco tem que se distanciar do governo para
conseguir um resultado eleitoral que permita manter a sua influência política.
Simultaneamente, fará tudo para impedir a maioria absoluta do PS, o que o
condenaria ao regresso a uma oposição sem qualquer poder. A senhora Catarina
Martins está farta do papel de ‘Catarina Martins II’, e de andar pelas ruas
acompanhada por meia dúzia de gatos pingados, e quer ser a ‘Catarina Martins I’
a tempo inteiro para partilhar os orçamentos socialistas após 2019.
A ida de Centeno para
presidente do Eurogrupo agravou o conflito. Na altura, muitos dos
nossos ‘especialistas’ em política europeia desvalorizaram o impacto das novas
funções de Centeno, com o argumento extraordinário de que a Europa estava fora
do acordo da geringonça. No meio de tanta ‘sabedoria’, não entendem o
fundamental. A Europa tem um lugar central em tudo o que esteja ligado a
recursos financeiros no nosso país.
Ao contrário do que
acontece com a líder do Bloco, o ministro das Finanças sabe que não podem
existir um ‘Mário Centeno I’ e um ‘Mário Centeno II’. As suas funções em
Bruxelas não permitem que isso aconteça. É simplesmente impensável que o país
do líder do Euro grupo possa arriscar um processo por incumprimento das regras
do défice. Aliás, o PM também sabe isso, e sabia-o quando tudo fez para que
Centeno conseguisse o lugar, por isso apoiará o seu ministro até ao fim da
legislatura. As funções europeias de Centeno também revelaram o seu
verdadeiro pensamento. Centeno está muito mais próximo de Vítor Gaspar do que
da escola de Louçã que prevalece no Bloco. Não há ninguém nas esquerdas que não
o saiba.
O conflito com Centeno
não significa o fim da geringonça nem sequer que o Bloco não aprove o orçamento
para o próximo ano. Mas as relações entre as esquerdas serão mais tumultuosas e
a política nacional será mais incerta daqui até ao fim do ano. Veremos muito
mais a Catarina Martins das ruas do que a Catarina Martins deputada. Mas,
apesar dos protestos, o verdadeiro sonho da líder do Bloco é ser um dia
Catarina Martins a ministra da Cultura, para poder beneficiar dos orçamentos
aprovados em Lisboa e em Bruxelas.
Notas de rodapé
1. O Bloco e os sectores mais radicais do PS
transformaram o Parlamento na sua sala de festas para onde convidam os seus
amigos para celebrarem a aprovação de leis patéticas que na prática muito pouco
mudarão. São sobretudo uma justificação para folclores parlamentares. Apenas
se lamenta que deputados experientes e responsáveis do PS participem nessa
farsa. É o preço a pagar pela
geringonça. Pelo meio, a qualidade da nossa democracia diminui.
2. Foram
necessários bombardeamentos pelos americanos, britânicos e franceses, para o
PCP e o Bloco acordarem para a guerra da Síria, apesar desta ter começado há
mais de cinco anos. Assad, Putin e Erdogan podem fazer os ataques que quiserem,
e as nossas extremas esquerdas nem reparam. Aparecem os americanos e os seus
aliados europeus em cena, e os nossos neo-marxistas ficam logo indignados. No
fundo, nunca deixaram de ser os idiotas úteis das ditaduras de Moscovo. Mesmo
quando a Mãe Rússia está mais próxima do fascismo do que do comunismo. Mas,
para as esquerdas radicais, isso não passa de um pormenor. O que interessa é
atacar o Ocidente e os seus regimes capitalistas e liberais.
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