sábado, 19 de maio de 2018

Alhos e bugalhos, tudo se come



Não, não tem nada a ver com os assuntos da nossa lavra, mas lembrei-me de “Cem anos de Solidão”, livro bem extraordinário de mito e real, em que as personagens sobressaem no seu primitivismo de criação e força anímica, num ritmo lento e circular, mas progressivo, com origem no casal José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, os fundadores de Macondo e o seu estuante pulsar de vida e de fantasia e inocência de preconceito, ao longo das várias gerações dos Buendía, a que o cigano Melquíades dará o seu contributo de progresso com as invenções do mundo lá de fora, logo adoptadas, como coisa de requinte, pelo primeiro Buendía. Não, não tem nada a ver, a não ser na solidão de um mundo que se repete, o nosso, joguete das suas forças próprias, não já de crendice e fantasia, mas de ambição ou torpeza, e pobreza espiritual, esta mais do povo, que a tendência para a piedade própria faz arrastar pelas vias do sacrifício devoto, de crença no milagre e reconhecimento pela sua concessão, nos caminhos da nossa fatídica peregrinação, habilmente estimulada pelos nossos Buendías de ocasião. Nada a ver, pois, com a tal força estuante das personagens mais ou menos grotescas da epopeia colombiana, nos cem anos de uma solidão heróica e bíblica, mas igualmente solidão, a nossa, no desespero pela repetição das nossas tradições de uma corrupção que já nenhum Melquíades poderá debelar, por muito evoluídas que sejam as suas novidades tecnológicas, impotente que é, na rede da trapaça e do logro da incultura, nosso apanágio.
Mas bem hajam os que se desvelam ainda, a salientar as nossas artes e manhas infindáveis, nos jornais cultores de opiniões, por muito escassos que sejam os seus resultados. Bem haja Alberto Gonçalves pela sua graça mordaz, alimentadora semanal da nossa continuidade menos depressiva, bem haja Luís Rosa, relembrando a nossa dependência humilhada em face da prepotência angolana, nosso destino hoje, como era de prever.
 I
SPORTING
Portugal, terra de fé /premium
OBSERVADOR, 19/5/19
Após a desilusão com um ex-governante, inúmeros portugueses resolveram desiludir-se em simultâneo com um dirigente da bola. É a nossa tradição de seguir fervorosamente determinadas fraudes.
Após a desilusão com um ex-governante, inúmeros portugueses resolveram desiludir-se em simultâneo com um dirigente da bola. Há nisto o respeito por diversas tradições pátrias. A tradição de seguir fervorosamente determinadas fraudes. A tradição de reagir com ameaças e fúria aos avisos de que a fraude é obviamente uma fraude. A tradição de admitir a fraude, de repente e com anos de atraso. Como o bêbado que, já na cama do hospital, tenta travar para não bater no poste, o discernimento dos portugueses raramente falha: demora é uma eternidade a chegar.
Também é ridículo presumir que as pessoas veneram qualquer fraude: só as demasiado evidentes. Os profetas duvidosos não são connosco. Preferimos profetas espalhafatosamente toscos, ou fancaria autenticada. Se um tipo com ar vagamente alucinado, gramática deficitária, promessas épicas e conversa fiada irrompe na cena pública, muitos contemplam o espectáculo e decidem que, sim senhor, está ali alguém a ter em conta. Quando, em dez minutos, se torna notório que o tipo é um rematado trafulha, a adoração e as ofensas aos descrentes aumentam em proporção directa. Quando, além da trafulhice, o tipo acentua os vestígios de loucura, os fiéis encontram-se capazes de morrer por ele, e sobretudo de matar por ele. Na fase em que o tipo começa a descer o Chiado vestido de Napoleão, embora troque o exílio em Elba por uma conta em Barbados, o séquito entra em transe espiritual.
Um dia, pouco antes de ingerir o cianeto que o profeta generosamente providenciou, dá-se uma epifania colectiva, o culto abre os olhos e percebe que fora enganado por um reles farsante. Desalentados, e sem pingo de vergonha, os membros do culto percorrem a via sacra das televisões, dos jornais e do Facebook a confessar o logro em que, coitadinhos, caíram. Por um triz não pedem indemnizações por danos morais.
As características dos profetas caseiros, que depois de longa reverência frequentemente desce ao carisma da lepra, incluem um vasto rol de qualidades: são desonestos nas contas, falsos na palavra, escorregadios no carácter, egocêntricos, avessos à dissidência, convictos, teimosos, ignorantes, infantis, incapazes de empatia e capazes de, no aperto, arrastar com eles o que existir em redor – o termo técnico é doidos perigosos. Às vezes, acumulam as qualidades todas; às vezes, só algumas. Quanto às características dos fiéis, o espectro é reduzido: ou são inacreditavelmente oportunistas ou inacreditavelmente idiotas. Donde a tendência para os fiéis saltitarem entre profetas. Em geral, mal terminam de ser ludibriados por um (ou uma dúzia), atiram-se para o seguinte (ou seguintes) com alma lavada e cara-de-pau. O seguinte, mais um maluco sem escrúpulos, é que é o tal e quem disser o contrário arderá nos infernos.
O engraçado não é que a História de Portugal, na política, na diplomacia, na universidade, na economia, no futebol, na filatelia e no que calha, seja uma sucessão irrepreensível de crenças assim. O engraçado é que continua a ser. Em Maio de 2018, época em que, suponho, restam escassos devotos do “eng.” Sócrates e do sr. Bruno, não escasseia o convencimento de que outros pantomineiros possuem as aptidões adequadas a conduzir-nos rumo à felicidade, ainda que os factos sugiram o exacto oposto. Dois ou três desses espécimes apareceram em ambos os apedrejamentos recentes, e, embora apeteça sonhar com o deles, pressente-se que não vale a pena: por morrer um intrujão, não acaba Portugal. Aliás, o problema é esse.

Notas de rodapé
1. Face aos acontecimentos de Alcochete ou Alfragide, o dr. Costa tomou as providências devidas e anunciou uma Autoridade Contra a Violência no Desporto. Em primeiro lugar, fica claro que quando um gangue invade propriedade alheia e comete espancamentos, o exercício é de carácter desportivo (excepto, como lembrou o meu amigo Hélder Ferreira, se o gangue for de “etnia” cigana e a propriedade um hospital: nesse caso o assunto nem chega a ser violento nem é assunto). Em segundo lugar, saúda-se que finalmente haja punições para a barbárie no sector, lacuna legal que até aqui permitia a relativa impunidade de quem matava adeptos com petardos, automóveis ou penáltis transviados. Em terceiro lugar, espera-se que os castigos se estendam aos populistas em cargos públicos que condenam a selvajaria da bola e de seguida assistem a jogos ao lado dos respectivos responsáveis. Certo é que o dr. Costa esteve impecável.
2. Uma consequência positiva do drama “sportinguista” é a exclusividade informativa, que retirou das notícias as “reportagens” sobre a embaixada americana em Jerusalém e a má vontade israelita em não se deixar exterminar pelos seus indefesos vizinhos. Aquilo é gente ruim. Como lembrava Serge Gainsbourg, quem afundou o Titanic foi Iceberg – sempre um judeu.
3. Virar a página da austeridade é um processo complexo e permanente. Implica, por exemplo, subir a cada semana o preço dos combustíveis, além de aumentar outros impostos conhecidos e criar alguns novinhos em folha. É curioso que a receita para o sucesso se confunda tanto com um fracasso – e um roubo sem precedentes. Felizmente, é para isso que existem os “media”: para evitar confusões.
 II


Uma “irritante” falta de espinha direita /premium
LUÍS ROSA
OBSERVADOR, 14/5/2018
Para um país em que a corrupção é combatida sem tréguas, deixar que lhe dobrem a espinha não é uma hipótese em cima da mesa. Foi isso que Angola tentou fazer a Portugal no caso Manuel Vicente.
1. Estava escrito nas estrelas que o caso Manuel Vicente tinha de acabar como acabou: a transferência para Angola das suspeitas de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais imputadas pelo Ministério Público ao ex-presidente da Sonangol.
Era inevitável pela pressão diplomática absurda que o novo presidente angolano João Lourenço exerceu sobre Portugal por causa de um aliado político chamado Manuel Vicente. Era inevitável pela forma como o Presidente da República (PR) Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro (PM) António Costa não recusaram desde logo tais jogos de pressão — pelo contrário, aceitaram entrar no jogo de Lourenço. E era inevitável porque a nossa classe política é incapaz de ter uma relação com Angola que não tenha como ponto de partida a subordinação total e absoluta dos valores do Estado de Direito Democrático aos interesses económicos conjunturais de uma relação com um regime que já foi uma Ditadura e que hoje é uma espécie de semi-democracia.
Mas não tinha de ser assim.
Começando pelo fim. É lamentável a forma subserviente como  Marcelo e Costa  felicitaram a decisão judicial poucos minutos depois de a mesma ser conhecida.
Pior: Marcelo, sempre mais exuberante (para o bem e para o mal), não só correu para o telefone para agendar uma conversa com João Lourenço conversa com João Lourenço  para o dia seguinte, como aderiu mesmo à classificação de “irritante” (da autoria do ministro dos Negócios Estrangeiros Santos Silva) para classificar de forma indireta as suspeitas de que Manuel Vicente, enquanto presidente da Sonangol, terá pago 760 mil euros a um procurador da República para arquivar dois inquéritos abertos contra si por suspeitas de branqueamento de capitais na compra de diversos imóveis.
Em suma, o PR e o PM não conseguiram esconder o seu alívio por uma decisão judicial que vai de encontro ao objetivo inicial do poder político: evitar que a Justiça portuguesa prosseguisse o seu trabalho, com o Ministério Público a exercer a ação penal que lhe compete e os tribunais a julgarem as suspeitas que estavam em causa contra Manuel Vicente.
E é lamentável por três razões simples:
Em Portugal, e ao contrário de Angola, vigora o princípio da separação de poderes. Princípio esse que foi sempre invocado por Marcelo e por Costa para não se pronunciarem sobre o caso Manuel Vicente. É pena que não tenham mantido a sua coerência até ao final — nem que fosse apenas por uma questão formal e de imagem do Estado e até que a Procuradoria-Geral da República confirmasse que não havia possibilidade de recurso;
Ao comentarem, como comentaram, o tal “irritante”, o Presidente da República e o primeiro-ministro estão a desvalorizar as graves suspeitas de que um cidadão estrangeiro (Manuel Vicente) terá alegadamente corrompido um magistrado português. Na prática, o Chefe de Estado e o líder do poder executivo estão a dizer aos seus concidadãos (e à Justiça) que as suspeitas de corrupção não podem ser encaradas da mesma forma quando estão em causa figuras poderosas estrangeiras.
Em suma, Marcelo e Costa estão a dizer: a Justiça não é igual para todos.
2. Este posicionamento do poder político ao mais alto nível só pode agravar o pessimismo com que muitos cidadãos encaram a atitude do regime português perante a gravidade das imputações da Operação Marquês e as consequências do caso Manuel Pinho revelado pelo Observador.
É totalmente contraditório o PS declarar o estado geral de vergonha perante o caso José Sócrates, a classe política em peso arrasar com o independente Manuel Pinho por ter recebido cerca de 15 mil euros mensais de um dos principais grupos empresariais portugueses enquanto foi ministro da Economia e muitos desses novos indignados ficarem aliviados por o desembargador Cláudio Ximenes ter entendido que a transferência do caso Manuel Vicente para Luanda é a melhor solução para o arguido.
Estes dois pesos e duas medidas não fazem sentido — e demonstram igualmente o nível de oportunismo das elites portuguesas, nomeadamente daqueles que têm muitos interesses nos negócios com Angola.
Não está em causa as boas relações (que devem sempre existir) entre Portugal e Angola ou a proximidade entre os povos e as economias. Está em causa, sim, um conjunto de valores que Portugal, enquanto Estado-membro da União Europeia, não pode abandonar. E entre eles está um combate sem tréguas à corrupção, à fraude fiscal e ao branqueamento de capitais — particularmente, se estiverem em causa representantes do poder político como alegados autores de tais ilícitos.
Infelizmente, não foi este o sinal dado pelo Presidente Marcelo, pelo primeiro-ministro António Costa e até pelo líder da oposição Rui Rio. Para manter boas relações com Estados amigos como Angola, não é preciso uma tremenda e “irritante” falta de espinha política por parte dos mais altos dignatários do Estado português. Ou melhor: deixarem que nos dobrem a espinha não pode ser uma hipótese em cima da mesa.
3. Mas João Lourenço, o homem que prometeu uma “cruzada contra a corrupção, também não sai nada bem deste filme.
O novo presidente angolano resolveu dar a mão a um gestor que tinha caído em desgraça junto de José Eduardo dos Santos. Presidente da Sonangol entre 1999 e 2012, Vicente modernizou a empresa pública que gere os recursos petrolíferos do país, foi indigitado sucessor de Eduardo dos Santos como vice-presidente de Angola em 2012 mas acabou por perder influência junto do clã Dos Santos. Detentor de muitos segredos sobre a indústria petrolífera angolana, foi com surpresa que se soube em Portugal que Manuel Vicente terá feito parte da comitiva que João Lourenço levou em janeiro para Davos para o Fórum Económico Mundial — e onde António Costa promoveu um encontro com Lourenço.
Tudo seria normal se João Lourenço tivesse seguido o rumo de José Eduardo dos Santos — o que não aconteceu. Em nome da tal “cruzada contra a corrupção”, demitiu os filhos do seu antecessor das posições-chave que ocupavam na economia angolana, afastou do seu inner circlegenerais como Kopelipa e Dino que representam a promiscuidade entre o Estado e o setor privado e passou a defender mais transparência para a vida pública angolana.
Este homem, contudo, é o mesmo que utilizou todos os instrumentos diplomáticos ao seu dispor para promover o arquivamento de suspeitas graves de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais imputadas a Manuel Vicente. É que, não tenhamos dúvidas, as suspeitas contra Vicente vão ser arquivadas em Angola pouco tempo depois de ‘aterrarem’ em Luanda.
Porquê? Porque a existência de uma aministia de todos os crimes económicos que são imputados a Vicente impede que a ação penal seja prosseguida contra o ex-presidente da Sonangol. E sim, caro leitor, leu bem: o ex-presidente José Eduardo dos Santos aprovou uma amnistia geral dos crimes de corrupção, fraude fiscal, branqueamento de capitais e de outro tipos de crimes com a exceção dos crimes de sangue.
Que credibilidade terá, a partir do mais do que provável arquivamento do caso Manuel Vicente em Angola, a “cruzada contra a corrupção” de João Lourenço? Não será esse um indício forte de que em Angola apenas está em causa a substituição de uma clique por outra? O futuro dirá.



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