quinta-feira, 31 de maio de 2018

Bem pode Bagão Félix esforçar-se


Dois artigos de António Bagão Félix, o mais recente, sobre um assunto que vai estar na ordem do dia, como ameaça sobre um povo desvitalizado a quem a cobardia há muito rege, (salvo a coragem do atacar na sombra – do grupo ou do anonimato) assunto que se retoma por pertencer a uma mente suficientemente humana e digna que nos serve de lição. Li alguns comentários a si feitos, no texto sobre a eutanásia, e mais uma vez encontrei gente cuja desaprovação se limita à grosseria das invectivas despeitadas, como a de chamar “avozinho” a quem lhes é muito superior em inteligência e disciplina, para já não utilizar a Ética, fundamental na definição de “Ser Humano”, posta em causa pelos actuais seres do pseudo progresso, que não querem saber de humanidade para nada, os quais, em perfeita emancipação progressista,  mais e mais se reflectem nas leis que gerem o resto da SELVA, ou seja, na clareza dos instintos, sem peias e sem susceptibilidades de escrúpulos ou vergonhas que se disse distinguirem os seres racionais, que, para mais, articulam os sons, em argumentos a acompanhar os pensamentos, contrariamente aos da selva, que não articulam e se limitam às respectivas vozes e ruídos dos seus apetites ou indignações de poder ou dor.

Mas o “avozinho” Bagão Félix não se comove com a pretensa desfeita. Apresenta os seus argumentos de racionalidade, próprios da sua qualidade humana, e, para mais, de calibre superior, tanto na questão da eutanásia como na questão das línguas e as suas traves-mestras, com a competência e sanidade mental e a subtil ironia do costume. Só que, hélas! o seu saber e inteligência e, mais ainda, a sua ironia, não atingem os tais da harmonia silvícola, ou, de preferência, selvícola, de ruído e instinto e de rugido específico.
I - OPINIÃO
Eutanásia: um modo totalitário travestido de liberdade
PÚBLICO, 25 de Maio de 2018
Não há mal de que provenha bem (São Paulo, Carta aos Romanos)
Volto às iniciativas legislativas sobre a legalização da eutanásia que, na próxima semana, vão ser discutidas na Assembleia da República.
Diz o artigo 24º nº 1 da Constituição da República Portuguesa: “A vida humana é inviolável”. Disposição votada por unanimidade na Assembleia Constituinte e jamais alterada nas sucessivas revisões constitucionais.
É caso para perguntar aos deputados proponentes qual destas palavras é que não entendem: VIDA? HUMANA? INVIOLÁVEL? Quanto a este último vocábulo, dizem os dicionários que significa “que não se deve ou não se pode violar”, “sagrado”, “invulnerável”. Há dúvidas? Quanto à vida humana, será que a vida de uma pessoa, mesmo que em situação de grande dor e sofrimento, deixou de ser vida? Ou que passaremos a ter a noção de vida humana, não como um conceito absoluto, mas moldável e relativizado com fronteira (?) definida pelo mutável e circunstancial direito positivo? Será que os deputados proponentes acham que se podem arrogar o direito de definir por nós todos o que sendo vida pode deixar de ter valor de vida, qual algoritmo infalível? Curiosamente foi este bem soberano da lei natural – a vida -  que muitos dos mesmos deputados invocaram na discussão da legislação sobre o aborto, dizendo então que até às x semanas (x em função das conveniências) não se tratava ainda de vida, para, assim, disfarçarem a violação daquele preceito constitucional. Pois agora, nem essa enganosa argumentação colhe. Vida é vida, mesmo que em circunstâncias dramáticas. Vida é vida que não pode ser terminada legalizando a morte através de terceiros e por actos ditos clínicos.
E porquê tanta pressa em querer aprovar estes projectos? Onde estavam estas intenções nos propósitos eleitorais dos partidos proponentes nas últimas eleições? Como, numa matéria tão sensível e disruptiva, podem deputados fazer aprovar uma lei para a qual não foram mandatados democraticamente? Ou será que eutanásia não sufragada nos seus programas partidários é o mesmo que uma qualquer outra lei avulsa sobre um qualquer outro tema? Ou será que a insuficiência ética pode ser substituída pela suficiência jurídica, como se o direito positivo pudesse contrapor-se ao direito natural? Acharão os deputados proponentes que podem legiferar sem sequer se terem preocupado em proporcionar um amplo debate sobre a matéria? Acharão que as pessoas estão esclarecidas devidamente e que sabem distinguir, por exemplo, a eutanásia de legitimas práticas de “encarniçamento terapêutico”?
Dizem-nos que o Estado apenas se limitaria a salvaguardar a sua neutralidade (!) em nome dos direitos de liberdade e de autonomia individuais. Uma completa falácia. A eutanásia não representa um exercício de liberdade, mas a supressão da própria raiz da liberdade. O direito à morte é tão absurdo como dizer que temos o “direito à doença”, no entanto, com a diferença da irreversibilidade no primeiro caso. O Estado, ao permitir a prática da eutanásia, está a decretar que o direito à vida é disponível e renunciável. Onde paramos?
Dizem-nos também que a pessoa a eutanasiar tem de dar o seu consentimento livre e consciente. O homicídio a pedido não deixa de ser homicídio por ser autorizado e pedido por uma pessoa. A inviolabilidade da vida humana não cessa com o consentimento do seu titular. Aliás, a anuência nunca será, só por si, condição suficiente para justificar situações de violação dos direitos humanos inalienáveis da pessoa. Por exemplo, a escravatura é sempre um vil e inaceitável atentado à dignidade da pessoa, mesmo que alguém a possa ter aceitado em situações de coacção. Tal como outras formas ignóbeis de exploração do trabalho.
Hoje e cada vez mais, há meios clínicos e farmacológicos para, através de cuidados paliativos, aliviar situações extremadas de dor e sofrimento, mesmo que assim sendo até se venha a diminuir o tempo restante de vida do doente. Não se compreende que com o ineludível e crescente avanço nesta matéria, se venha a querer legalizar a eutanásia. Ela nunca se justificaria, mas ao menos é lógico pensar que alguém a pudesse melhor compreender há décadas quando quase não havia meios de cuidar e ajudar as pessoas em situações extremas.
Perante esta realidade a mensagem perversa que se está a transmitir à Sociedade é a de que a legalização da eutanásia é um meio alternativo e, sub-repticiamente, se está a deixar construir a ideia de um Estado-Pôncio Pilatos que, da escassez de meios paliativos, lava as suas mãos. O que é mais conforme a dignidade da pessoa: uma “morte digna” provocada por via da eutanásia ou um “fim de vida digno” em nome da ética de cuidar?
Numa sociedade cada vez mais envelhecida, perante a dor e sofrimento, a prioridade das prioridades deverá ser o desenvolvimento de uma rede alargada de tratamento da dor, de cuidados geriátricos e continuados e de cuidados paliativos. Sim, alargada até para estar disponível para os mais pobres, os mais sós e as pessoas que vivem fora dos grandes centros (que já sofrem no corpo e na alma a “eutanásia social” a que vão sendo sujeitos). A legalização da eutanásia contribuiria para esbater a consciência social da necessidade e urgência de criar uma verdadeira rede. Transmite-se a ideia de que, face ao “fardo” da velhice e da doença e aos nunca resolvidos défices do sistema público de saúde, para quê gastar tantos recursos com doentes terminais quando o tempo final das suas vidas pode ser encurtado.
Importa alertar para a rampa deslizante que se seguiu, abastarda e levianamente, em alguns dos poucos países que legalizaram a prática de eutanásia. Neles, tudo começou com muitas restrições. Mas hoje, na Holanda, Bélgica e Suíça (aqui apenas no “suicídio assistido”), já há muitos casos abrangendo derivas eugénicas com bebés e crianças com deficiências graves, adultos com grave deficiência, doentes psiquiátricos (para 25% destes, os pareceres dos médicos psiquiatras não foram sequer no sentido de justificar o pedido de eutanásia) e outros doentes por pressão subtil de familiares. E já se discute até o direito à eutanásia por cansaço de viver!
Enfim, certa esquerda (cá e lá fora) sabendo que não é capaz de proteger e aprofundar os direitos sociais como sempre proclamou, vira-se para criar pretensos direitos de cidadania, mais baratos ou sem custo, mediaticamente mais apelativos e para os quais bastam uma lei e umas assinaturas. A legalização da eutanásia é um desses apregoados direitos. Uma expressão neototalitária através de um relativismo ético pelo qual cada desejo se arrisca a transformar num direito. Neste caso, através de terceiros a quem se pede que a tal direito não contraponham o seu dever e a sua deontologia!
Estamos perante um retrocesso civilizacional e o perigo de desestruturar a sociedade no seu pilar fundamental. Atrasados em tantos aspectos da nossa vida colectiva, queremos ser pioneiros nesta insondável cultura da morte, apresentada eufemisticamente como avanço social.  É a nossa triste dianteira!
P.S. O Primeiro-ministro de Portugal não quis dizer na AR qual a sua posição sobre a eutanásia, apesar de sempre nos brindar com a sua opinião sobre todas as minudências. Pura arte de fazer política…

II - OPINIÃO
O inglês… mesmo que sem acordos ortográficos
Na Eurovisão tivemos a busca efémera do sucesso a sobrepor-se à soberania da língua. Sinal dos tempos...
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 18 de Maio de 2018
Lisboa recebeu o Festival da Eurovisão 2018. Fê-lo com inegável brilho. Não costumo acompanhar, em detalhe, estes eventos. Porém, desta vez, e por ser cá, fi-lo mais de perto. Anotei a hegemonia da língua inglesa, mesmo num concurso por países. Senão vejamos: num total de 42 países, cantaram em inglês 28 (incluindo Rússia e Alemanha!), embora só em três seja a primeira língua (Reino Unido, Irlanda e Austrália). Os países que se exprimiram na sua língua oficial foram quase todos do Sul da Europa e de influência mediterrânica: além de Portugal, França, Itália, Espanha, Grécia, Albânia, Sérvia, Montenegro, Eslovénia, a que se juntaram Arménia, Geórgia, Hungria. Enfim, a busca efémera do sucesso a sobrepor-se à soberania da língua. Sinal dos tempos...
Apesar de ser apenas o terceiro idioma em número de falantes nativos (cerca de 380 milhões de pessoas, atrás do chinês mandarim e do espanhol), o inglês deixou de ser uma "linguagem inglesa" para ser global. É a língua franca da globalização, uma espécie de latim hodierno.
Começou por ser a primeira língua de expansão colonial. Hoje é o idioma base da informática, tecnologias, gestão, economia, negócios, Internet e redes sociais, telecomunicações, ciência, comércio internacional, diplomacia, aviação, medicina, entretenimento. E também de um pretenso elitismo profissional de “Zeinal Bavas”, para ver quem mais não consegue dizer em português o que em inglês exprime majestaticamente.
As jovens gerações são cada vez mais educadas na expressão generalizada do bilinguismo: a língua materna e inglês.
Na Internet, o inglês ultrapassa mesmo as línguas faladas na China, sendo Portugal aqui o 5.º idioma mais representado:
Curiosamente, com a consumação do "Brexit", o inglês fica numa posição algo estranha. Só a Irlanda, e vá lá, Malta, o terão como idioma oficial, ainda que a par do gaélico e do maltês.
A União Europeia tem 24 línguas oficiais e de trabalho: cinco românicas (português, francês, espanhol, italiano e romeno), cinco germânicas (inglês, alemão, neerlandês, sueco e dinamarquês), oito eslavas (polaco, checo, eslovaco, búlgaro, lituano, letão, croata e esloveno), três fino-úgricas (húngaro, finlandês e estoniano), uma céltica (gaélico irlandês), uma helénica (grego) e uma semita próxima do árabe, mas escrita em caracteres latinos (maltês).
Se a estes 24 idiomas oficiais juntarmos outras expressões com algum peso histórico, étnico, político ou regional, a “torre de Babel” ainda mais se complica. Citando apenas algumas das mais conhecidas: catalão e galês (consideradas línguas co-oficiais), corso, sardo, bretão, gaélico escocês, basco, luxemburguês, albanês, língua cigana (romani).
Com a saída do Reino Unido, só quatro línguas se repetirão: o alemão (Alemanha e Áustria), o francês (França, Bélgica na Valónia e Luxemburgo), o neerlandês (Holanda e Bélgica na Flandres) e o grego (Grécia e Chipre).
Por curiosidade, em termos populacionais, o “pódio linguístico” da União passará a ser o seguinte: em 1.º lugar, o alemão (90 milhões de pessoas), em 2.º lugar, o francês (72 milhões) e em 3.º lugar, o italiano (61 milhões). O inglês, representado apenas (e parcialmente) pela Irlanda e Malta, surge em 18.º lugar (4,5 milhões)!
Segundo o sitio da União Europeia, há nos serviços da Comissão cerca de 1750 linguistas e 600 membros de pessoal de apoio, 600 intérpretes a tempo inteiro e 3000 intérpretes externos. Feitas as contas, os possíveis arranjos entre as línguas, para efeitos de tradução e de interpretação, são 552!
Lembro-me de, em algumas reuniões em que participei, como no Ecofin, a diferença de tempo entre a intervenção original e a tradução (às vezes, imperfeita, senão mesmo errada) ser longuíssima e de muito se perder nesse ínterim. Por exemplo, passar de lituano para português ou de finlandês para grego implica passar por uma língua intermédia (em geral, o inglês) para, por fim, chegar ao destino dos receptores.
A pluralidade e diversidade linguísticas na União são uma riqueza, ao mesmo tempo que ainda constituem uma barreira para o seu entrosamento. Talvez a solução esteja na imagem das faces do poliedro dada pelo Papa Francisco: “a união de todas as parcialidades que, na unidade, mantém a originalidade das parcialidades individuais. Nele (poliedro), nada se dissolve, nada se destrói, nada se domina, tudo se integra.
Bom seria que, na União Europeia, houvesse uma efectiva política linguística que, embora admitindo a hegemonia do idioma inglês, não transformasse todas as outras em meras adjacências linguísticas.


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