sexta-feira, 11 de maio de 2018

Revenons à ces moutons



Isto disse o juiz a um tal vendedor de panos a quem um tal advogado Pathelin, vivendo em penúria, comprou umas onças de fazenda, com a promessa de lhe pagar em sua casa, oferecendo-lhe, para mais, um bom almoço de gansa ou ganso que, porque denota fantasia, ficou adstrito à expressão “contes de ma mère l’oie” que nós traduzimos por “contos da carochinha” mas que poderíamos perfeitamente apelidar de “contos da minha mãe pata”,  para mais que também usamos a expressão “cair que nem um patinho”, nas nossas relações públicas. De casta inferior o nosso pato, são, contudo, ambos, pata ou gansa, da família dos anatidae, segundo leio na Internet, embora o ganso tenda já para a marca cisne, e foi, de resto ele que levou o minúsculo Nils Holgerson através da Suécia, atrás do bando de gansos selvagens desafiantes, o que lhe dá indiscutível superioridade animal sobre o nosso pato de cuá cuá roufenho. Mas, sem desvios, o que se passou na farsa de Maître Pathelin, de autor desconhecido, mas obra prima de cómico grotesco, com laivos superiores de cómico de carácter, do século XV francês, foi que o logista, autêntico patinho na envolvência matreira de Pathelin, embora ele próprio se julgasse matreiro ao vender mais caro o pano,  foi receber o seu pagamento a casa do advogado, que, bem combinado com a mulher, tremendo na sua cama, fingiu um delírio de moribundo, bastante disparatado, alternando com os pedidos indignados do “drapier” e com as expressões de aflição e negação da compra, de “Guillemette”, esposa condigna de Pathelin, com o seu refrão “parlez plus bas”, para não acordar o coitadinho que no seu leito de moribundo se esvaía, havia tempos. Outra cena, com o seu pastor que lhe rouba as ovelhas, levam o drapier a citá-lo em tribunal. Agnelet, o pastor, procura Pathelin para o defender, o qual lhe diz que a todas as perguntas do juiz responda balindo, num “mé” de idiotia. Assim irá acontecer, mas o “drapier” reconhece, na audiência, “Pathelin” como seu ladrão de panos e entaramela-se nas acusações que misturam fazenda e carneiros, que fazem que o juiz, baralhado, aplique a expressão tornada proverbial “revenons à ces moutons”, que nós traduzimos, sem motivo etimológico reconhecido, por “vaca fria”: “voltemos à vaca fria”.
É a razão do meu título, repeguemos nas questões, baralhemos, estupedifiquemos, repescando, entretecendo, baralhando, retomando, sem porta de saída. Voltemos à vaca fria, voltemos aos nossos carneiros, aos nossos casos, coisa de homens, já antiga, ao que se vê, embora não seja nossa a farsa, que outras são as nossas farsas de atropelo eficiente.
Ah! O juiz ilibou o pastor, por se mostrar decididamente um pobre de espírito com o seu “mé” repontão. Mais esperto do que todos, o pastor soltou o mesmo mé a Maître Pathelin, no acto de ressarcimento dos honorários exigidos pelo advogado.
É o que se faz por cá, finórios que somos, de mé més repontões, a cada sugestão de boas contas.

I - EUTANÁSIA
Deixem-me morrer com dignidade
P. MIGUEL ALMEIDA, SJ
OBSERVADOR, 10/5/2018,
Uma ação ou omissão que tenha como intenção aliviar o sofrimento, mesmo que aproxime o momento da morte, não é eutanásia; é um ato médico no sentido mais profundo do que é ser médico.
1. A vida não tem um valor absoluto. Mais: a vida não é sequer o valor mais alto do ser humano. Pelo menos na perspectiva de uma ética que se quer verdadeiramente humana. E, se podemos fazer esta afirmação dentro do âmbito de uma “ética natural”, mais ainda e com maior propriedade ela tem sentido no contexto de uma ética religiosa. No campo da religião, a fé apresenta-se como um valor claramente superior à vida. Que o digam os mártires de todas as religiões e, nomeadamente, da religião cristã à qual pertenço. O próprio fundador desta religião afirmara que o valor mais alto é dar a vida pelos amigos. E assim Ele próprio o fez. Chegara mesmo a afirmar da sua própria vida: “Ninguém ma tira; sou Eu que a ofereço livremente” (Jo 10, 18). Há, por isso, para o cristão, valores pelos quais vale a pena morrer.
Mas não é necessário professar uma religião para assumir que há valores mais altos do que a vida: a honestidade, a honra, a integridade, a fidelidade, o amor, a dignidade são valores comuns a todos os cidadãos. Sim, a dignidade. Peço a Deus que, se algum dia tiver que decidir entre a vida e a dignidade, me dê força para optar pela dignidade, pois sei bem que esta é um valor, em muito, superior àquela. Quero morrer com dignidade!
2. Por isso, por favor, quando eu estiver a morrer, não me ponham “ligado à máquina” a preços exorbitantes, com tratamentos extraordinários e desproporcionados, para alongar a minha vida mais uns dias. Se possível, dêem-me analgésicos e paliativos que me tirem as dores e os sofrimentos, mesmo sabendo que, eventualmente, esse procedimento pode abreviar o meu tempo de vida. Usem apenas meios que me possam trazer algum benefício real, que possam ser aplicados sem dor e cujo custo seja razoável. De resto, podem desligar tudo ou cessar outros tratamentos. Deixem-me morrer em paz. Por favor, deixem-me morrer com dignidade!
3. Não troco a minha autonomia por uma autossuficiência mascarada. Quero ser humano até ao fim, pois sei que a dignidade está no facto de ser pessoa. O que é verdadeiramente humano, essa é a questão que nos move. E aqui, o conceito de autonomia pessoal ganha uma importância crucial. Para alguns, a fragilidade, a debilidade, a dependência, a deformação física ou demência, a deficiência, a dor, o sofrimento, podem conduzir à perda de autonomia e, nesse caso, a vida perderia toda a dignidade. Mas não é a vida em abstrato que é digna; é a pessoa humana que é digna. Por isso, enquanto for ser humano, é sempre digno!
Claro que a autonomia é um valor essencial a salvaguardar. Mas, quando considerada como um valor isolado, absolutiza-se e torna-nos menos humanos. O centro do mundo passa a ser exclusivamente o nosso próprio eu, exaltamos a individualidade e perdemos toda a noção de responsabilidade e de bem comum. E respeitar a autonomia de alguém a este nível absoluto corresponde a isolá-la. Isto não é respeito pela autonomia; tem outro nome: indiferença face à autossuficiência. Diante de alguém que se defende dentro do muro da sua autossuficiência, mesmo que doente, preferimos afastar-nos (tantas vezes por não sabermos lidar com a pessoa) e tornar-nos indiferentes em vez de exigentes. E dizemos: “ele é que sabe, é a sua vida, é a sua morte”. E, plenos de uma pena pelo coitadinho mascarada de compaixão, afirmamos: “tem direito à sua última decisão”. Por favor, defendam-me da minha autossuficiência. Ajudem-me a morrer com dignidade!
4. Finalmente, por favor deem-me uma morte assistida. Melhor: uma morte acompanhada. Morrer não é um momento; é um processo. Começamos a morrer desde que nascemos. Mas o último suspiro deve ser uma experiência de grande solidão. Por isso, se for possível não me deixem sozinho nesse momento. Sempre atenua a solidão do ato de morrer. Vou-me conhecendo cada vez melhor e sei que de herói não tenho nada. Que bom que era se morresse com amigos e família à minha volta. As relações são tudo na vida. Haverá morte mais digna do que aquela que espelhe o que foi a vida?
5. Convém deixar explícito que a eutanásia não é a cessação de tratamentos extraordinários ou desproporcionados. Isso é apenas deixar morrer. Tratamentos desproporcionados são eticamente reprováveis. Morrer faz parte da vida, e deixar morrer também. Mais, o uso de analgésicos e tratamentos que aliviem o sofrimento, mesmo que abreviem o tempo de vida, são um bem. A intenção aqui conta muito. A eutanásia é uma ação ou uma omissão que, na intenção, cause a morte com o fim de suprimir o sofrimento. E não o contrário: uma ação ou omissão que tenha como intenção aliviar o sofrimento, mesmo que aproxime o momento da morte, não é eutanásia; é um ato médico no sentido mais profundo do que é ser médico. Porque ser médico, mais do que tratar doenças, é tratar as pessoas.
6. Por isso, recusando-me a considerar que aqueles que são a favor da eutanásia são todos assassinos, estúpidos ou más pessoas, apenas deixo aqui o meu testemunho do desejo de viver com dignidade até ao fim. A eutanásia rouba-me a dignidade. Porque a morte não é um assunto privado, só meu. Quando morre um pai ou uma mãe, um irmão ou um filho, a mulher ou o marido, sabemos bem que essa morte não é só daquele que morreu. Não é um assunto só seu. Nós não nos constituímos acima de tudo como indivíduos, mas como parte de um grupo, de um corpo. Ao contrário do que a aparência quer gritar, é a interdependência que existe entre nós que nos torna verdadeiramente humanos. Diria mesmo que é a fragilidade própria da nossa contingência que nos faz ser mais pessoas. Porque nos diz que precisamos uns dos outros para sermos nós próprios. E isto não nos rouba a autonomia, mas defende-nos da autossuficiência. Bendita fragilidade humana que nos aproxima uns dos outros. As relações – não a aparência, não a saúde, não a autonomia absoluta – tornam-nos mais humanos e, por isso, mais dignos.
Portanto, unir a escolha da própria morte à dignidade é uma falácia. Uma lei que defendesse esta suposta “morte com dignidade”, estipularia que os doentes, pelo simples facto de o serem, perdem toda a responsabilidade para com os outros e podem chegar ao direito de nem sequer ter que notificar os amigos ou os parentes próximos para tomarem a sua “última grande decisão”. Retirar todas as responsabilidades a uma pessoa doente é considerá-la menos pessoa, é desrespeitá-la, inclusivamente nessa autonomia que se diz querer defender. E, isso sim, é subtrair-lhe toda a dignidade. Morrer com dignidade é ser responsável até ao fim.
Padre jesuíta

II - CASO JOSÉ SÓCRATES
O orgulho e a vergonha /premium
OBSERVADOR, 10/5/2018
A única forma de tornar a tal “vergonha” credível é não pretender que ela pode conviver com o “orgulho” da governação Sócrates. Até esse momento a posição oficial do PS só pode suscitar incredulidade.
Uma epidemia de sensibilidade percorre o PS. E não, não é a da habitual indignação altaneira fundada na firme superioridade moral. A sensibilidade em questão manifesta-se em paixões pouco habituais por aquelas plagas, como a vergonha, a vergonha por José Sócrates se ter introduzido no seu seio e ter manchado a ancestral honra do PS. É um pudor estranho, vindo de quem vem. Tanto mais que essa espécie de virgindade surpreende porque, como dizia o outro, vem de pessoas que já conhecemos muito bem antes de serem virgens. Aliás, houve uma altura não muito longínqua em que a libertinagem, por assim dizer, era a regra.
Claro que tudo isto é pura encenação que não engana ninguém. A manobra táctica para anular um peso inconveniente antes das eleições é patente. Mas a famosa habilidade de António Costa (que ecoa, de resto,  célebre “espertice” de José Sócrates) encontra aqui mais uma oportunidade de encantar os admiradores. A coisa é cosida com fio grosso, a artificialidade dos sentimentos é óbvia. Mas quanto mais óbvia a simulação, mais facilmente ela passa. Só há uma coisa necessária para simular assim a vergonha: falta de vergonha. Admito que num ou noutro caso, nas periferias do PS, a falta de vergonha não seja o ingrediente originário e seja necessário imaginar no fundamento desta rejeição tardia de Sócrates algo de mais profundo e eventualmente mais patológico. Mas no caso do PS a falta de vergonha basta. De resto, não funcionou ela muito bem com o próprio Sócrates? A falta de vergonha não seduziu por muito tempo o PS, desde que este, para nossa desgraça, abraçou por inteiro os “espertos”, e agora os “hábeis”?
Não vale a pena perder muito tempo a epilogar sobre tudo o que foi escrito sobre esta matéria e que representa, no conjunto, o que qualquer cidadão que não viva noutra galáxia pensa espontaneamente. Nada do que o PS disse a várias vozes, de Carlos César ao histriónico João Galamba, é sério ou para levar a sério. Aquela gente vive num universo em que a conveniência política, definida em termos que pertencem estritamente ao jogo que entre si praticam, traz consigo quase inevitavelmente o desprezo pelo entendimento comum e pelas condutas de boa-fé. Consequência directa dessa atitude são, por exemplo, os fogos do ano passado e a trapalhada que se anuncia para este ano. A esperteza e a habilidade têm coisas destas.
Mas se não vale a pena discorrer mais sobre o assunto, há algo sobre o qual faz provavelmente sentido reflectir. Imaginemos que José Sócrates é, de facto, como tudo parece indicar, o personagem que reúne em si todas as condições para inspirar o presente horror do PS. E imaginemos que, com a excepção de Manuel Pinho, os seus governos eram formados por gente sem sombra de comportamento repreensível nestas coisas. Imaginemos também – é uma suposição necessária – que nenhuma dessa gente por um só segundo suspeitou, ao longo desse demorado convívio, de nada de estranho em Sócrates e por isso, com a ajuda prestimosa de, entre outros, Pinto Monteiro e Noronha de Nascimento, sempre o defendeu de todas as suspeitas públicas com vigorosa virtude. Por mais problemática que seja esta última suposição, a verdade é que, a aceitá-la em conjunto com as outras duas, a actual posição do PS é formalmente defensável. A habilidade de Costa continua a ser isso, uma habilidade, mas formalmente justificada.
Pensemos, no entanto, noutro aspecto. No que me toca, e partilho essa experiência com muita gente, o que a partir de uma certa altura me assustou em Sócrates, vário tempo antes da sua fatídica reeleição, pouco ou nada tinha a ver com as suspeitas de corrupção, mas estritamente com as suas políticas catastróficas, que nos viriam a conduzir direitinho para o abismo. Mesmo no que respeita à corrupção e a outros crimes sortidos, o que me fazia impressão e medo era a extraordinária máquina de apoio e protecção com que Sócrates contava na justiça e noutros lugares, uma máquina tão poderosa e omnipresente que levou um dia Paulo Rangel a cunhar com acerto a expressão “asfixia democrática”. Mas em primeiro lugar eram as políticas em si que patentemente anunciavam a catástrofe iminente.
Agora, a questão: quem, entre a recente legião de sensíveis envergonhados, que, a começar pelo actual primeiro-ministro, transitaram dos governos Sócrates para o de António Costa, se levantou para dizer o óbvio? Que se saiba, ninguém. Virgens numa matéria, a da corrupção, serão, e até inocentes de qualquer suspeita, mesmo que isso nos obrigue a supor neles uma quase idiotia a roçar a oligofrenia, que parece ser contradita por uma aparente inteligência e verbo fácil. Mas virgens em matéria de acordo com as mais irracionais – e irracionais a olho nu e desprevenido – políticas praticadas por Sócrates certamente não são. Dir-se-á que confundir políticas discutíveis (é um eufemismo) com a grave matéria da corrupção releva da ignorância ou da má-fé. Mas não estou a fazer confusão nenhuma. Distingo muito bem uma coisa da outra. Limito-me a dizer que há políticas que são catastróficas para além de qualquer dúvida razoável. E que pactuar com elas e, com cara de pau, continuar a insistir na sua justeza (não foi o legado político de José Sócrates um legado que suscita “orgulho”, nas palavras de Carlos César?), anula por inteiro as proclamações de “vergonha”.
Se me permitisse um conselho às pessoas que no PS procuram refundar um partido saudável, ele seria: não procurem uma solução esquizofrénica que, por um passe de mágica, faça com que as duas faces da mesma moeda pertençam a moedas diferentes. Não funciona: é mais uma habilidade que, mais cedo ou mais tarde, se pagará caro. A única maneira de tornar a tal “vergonha” credível é não pretender que ela pode conviver com o “orgulho”. Até essa admissão, a posição oficial do PS só pode suscitar incredulidade. E, em momentos de maior sensibilidade (todos temos direito a eles), nojo e desprezo.




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