sábado, 16 de junho de 2018

O barrete da Catarina, cor contente



Já Rousseau se reclamava da propriedade, causa da corrupção das almas, no seu “Discurso sobre a Desigualdade”: “O primeiro ser que, tendo murado um terreno se lembrou de dizer “Isto é meu”, e encontrou seres suficientemente simples para nele crerem, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores teria poupado ao género humano aquele que, arrancando a estaca ou atulhado o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: «Livrem-se de escutar este impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos, e que a terra não é de ninguém!»
É sobre Catarina Martins que tratam os artigos seguintes – de Alberto Gonçalves e de Rui Ramos – sobre a sua enorme vocação para achincalhar a sua nação branca de quem se contam as glórias de pioneirismo no alargamento do mundo, mas ao que parece, também, de escravização de raças negras, e isto ela não perdoa, denegrindo , denegrindo, nem querendo saber d’ Os Lusíadas para nada, onde Camões conta as glórias do “peito lusitano” e já usa termos tendenciosamente racistas, ao descrever, pela boca do Gama ao rei de Melinde, que  nem sabemos se ficou melindrado, as reacções de um nativo colhedor de mel na montanha, como “selvagem mais que o bruto Polifemo”, às tentativas apaziguadoras do Gama de o chantagear com ofertas de coisas preciosas e a concluir, com grande despudor racista que “a nada disto o bruto se movia”, para logo aquele se deixar amansar com “as coisas mais somenos”, como um “barrete vermelho, cor contente”. É a estes barretes que a Catarina Martins nos quer promover, na igualdade de direitos a que apela, e mesmo castigo dos prevaricadores, e que nem sei se leu no Rousseau que também era alma muito sensível, e assim contribuiu para as mudanças sociais trazidas pela Revolução Francesa, onde se matou e esfolou que foi um ver se te avias. Julgo que à Catarina Martins não se lhe dava de que as raças negras, que são todas de brandos costumes, viessem impor-se agora às brancas portuguesas, sobretudo, como represália por terem sido escravizadas.
Mas quem a descreve bem e conta como foi, é Rui Ramos, com o 10 de Junho da nossa glória, despedaçado pelas investidas polifémicas de Catarina Martins, contra as proezas odisseicas dos portugueses aventureiros denegridas pelo seu parti pris de uma sensibilidade protectora de todos os desventurados e que, nos festejos gloriosos deste ano, se centrou no racismo dos exploradores portugueses, como temática da sua saliência em progressão. Alberto Gonçalves, por seu lado, não a poupa, com o humor próprio da sua verrina superior.

Um dia contra Portugal? /premium
OBSERVADOR, 12/6/2018
Catarina Martins não quer ver "reconhecida" a "enorme violência da expansão portuguesa", quer apenas usar a história para deslegitimar os regimes ocidentais -- e só esses.
Enquanto o presidente da república, em Boston, declarava Portugal capaz, como nenhum outro país, de “compreender, de dialogar, de aproximar pessoas”, por cá, Catarina Martins revoltava-se, muito indignada por os “discursos oficiais” não terem “reconhecido a enorme violência da expansão portuguesa, a nossa história esclavagista”. Que dizer? O 10 de Junho deveria ser um dia de vergonha e de penitência nacional – não o dia de Portugal, mas o dia contra Portugal?
Nada disto é novo. Se a memória não me está a trair, lembro-me de a RTP, em 1974, transmitir um esforço artístico progressista em que os personagens repetiam monotonamente “Diogo é cão, Diogo é cão”. Com as colónias de África em vias de serem trespassados a novas ditaduras, nada mais conveniente do que tratar a expansão portuguesa como uma nódoa para ser lavada rapidamente. A história da expansão entrou então de quarentena. Não por muito tempo, porque a democracia não arranjou mais nada com que tornar Portugal interessante para audiências internacionais (não é certamente com a história do imposto de selo), e a “globalização” valorizou novamente a origem das conexões entre os continentes.
Foi assim que, na década de 90, muitos dos actuais indignados com os Descobrimentos colaboraram, então sem indignação, com a Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses. Portugal foi nesses anos o “pioneiro da globalização”.  Nos últimos tempos, tudo mudou outra vez, quando a “internacionalização” das ciências sociais submeteu a investigação portuguesa à agenda racialista das universidades americanas. De repente, os mesmos que só viam na expansão portuguesa “multiculturalismo” e “encontro com o outro” descobriram que, afinal, tudo foi racismo e exploração, e que é preciso “reconhecê-lo”. Digamos que é uma exigência bizarra, na medida em que nem as fontes clássicas – lembrem-se de Gil Vicente ou de Fernão Mendes Pinto – escamotearam a violência das “descobertas e conquistas” (como se dizia). Sobre a escravidão, nunca houve silêncio. Mas não é a história, com as suas complexidades, que importa a Catarina Martins, mas apenas o uso de uma história caricaturalmente simplificada para deslegitimar os regimes ocidentais, e só esses.
O chamado “anti-colonialismo” não é, por isso, uma ruptura com o colonialismo: é apenas a sua última fase, no sentido em que continua o velho etnocentrismo que um dia exaltou o “homem branco” como o agente da civilização, e agora o trata como o responsável por todo o mal do mundo. A expansão moderna, porém, não foi uma simples história europeia – pensar assim, é precisamente o primeiro erro etnocêntrico. Muitas das sociedades locais com que os portugueses se “encontraram” não eram compostas de nativos sossegados num idílio à Rousseau, mas impérios militares, também eles em expansão, com os seus escravos e as suas violências. Os portugueses escravizaram, mas — em menor escala — também foram escravizados, por exemplo pelos piratas argelinos que atacaram as costas portuguesas até ao século XVIII. Os Otomanos cativaram  imensa gente na Europa e, em conjunto com os árabes, terão tirado tantos escravos de África como os europeus. O que verdadeiramente distinguiu os europeus nesta história não foi apenas o uso de escravos na agricultura da América colonial, mas terem sido os primeiros a abolir a escravidão. A Arábia Saudita só a ilegalizou em 1962, o Omã em 1970 e a Mauritânia em 1980. Talvez os portugueses não tivessem feito o mundo melhor, mas também não o fizeram pior.
Catarina Martins parece muito infeliz por o passado não ser igual ao presente. Não foi, de facto. A essa diferença, chama-se “história”. E para a compreender, não há caminho pior do que o simplismo das glorificações e das criminalizações com pequenos fins políticos.

Uma enorme violência /premium
OBSERVADOR, 15/6/2018
Como se viu no Dez de Junho, na visão erudita de Catarina, a Grande, o mundo era um lugar de harmonia e paz até ao momento em que os ocidentais decidiram afundá-lo em infâmia.
Mesmo na época remota em que as televisões ainda não estavam convertidas à propaganda do Estado e aos flagelos no Sporting, nunca sequer espreitei uma cerimónia do Dez de Junho. Não o faria agora, quando qualquer criatura honrada foge dos canais indígenas com o pavor com que fugiria da gripe espanhola. Desgraçadamente, a gripe espanhola apanhou-me através da internet, que numa emboscada me atirou à cara as comemorações do dia de Portugal, de Camões, da Raça, das Comunidades, dos Pastéis de Nata e do entulho que calha. Apesar de carregar aflito em botões sortidos, não escapei à impressão de que, este ano, os nossos estadistas andaram a afirmar a grandeza pátria por Ponta Delgada e, supremo enxovalho, pela costa leste dos EUA. Há coisas piores, mas não muitas.
Uma delas é a amadora dramática que preside ao Bloco de Esquerda, a qual, em vez de ocupar o Dez de Junho com as humilhantes fanfarras da praxe, preferia consagrar a data à “enorme violência” da expansão soviética, perdão, da expansão islâmica, perdão, “da expansão portuguesa” (assim é que é) e à “história esclavagista, a responsabilidade no tráfico transatlântico de escravos”. Na visão erudita de Catarina, a Grande, o mundo era um lugar de harmonia e paz até ao momento em que os ocidentais decidiram afundá-lo em infâmia.
Há quem acredite em unicórnios. Catarina, a Colossal, acredita que a propensão para o Mal é um exclusivo do “homem branco”, cujo fardo não tem fim e cujas proezas tecnológicas facilitaram a subjugação e a exploração do “outro”. O “outro”, claro, é o bom, generoso, pacífico e meigo selvagem, que antes de 1500 passava os dias a acariciar passarinhos e raramente a enfiar em estacas as cabeças dos inimigos – ou a escravizá-los com gentileza. Não vale a pena lembrar que, na vergonhosa e aparentemente interminável cronologia da escravatura, o papel dos europeus é relativamente fugaz. Na perspectiva de Catarina, a Desmesurada, o selvagem não só é bom como é ingénuo. E tonto. E mais estúpido do que uma porta.
Trata-se de um evidente exagero. Ao pensar as relações humanas com a profundidade reflexiva de um calço, Catarina, a Imensa, é que, na melhor das hipóteses, é boa. E inocente. E tonta. E porta. E também profundamente racista, conforme notou Rui Ramos aqui no Observador. Para inúmeras Catarinas, as pessoas do Terceiro Mundo e arredores não são bem pessoas, complexas, contraditórias, às vezes lamentáveis, às vezes incompreensíveis. São estereótipos passivos e unidimensionais, prontos a acolher as projecções alucinadas de oportunistas que os utilizam em seu proveito. Ao negar a essencial humanidade de africanos ou ameríndios, a heróica gesta anti-racista de Catarina, a Vasta, recorre aos exactos preconceitos do racismo convencional e chega a conclusões pouco diferentes.
Não quero ser demasiado severo. Provavelmente, Catarina, a Descomunal, não tem culpa. Com certeza julga os habitantes das demais civilizações pelos padrões disponíveis nos acampamentos do BE, onde simpáticos zombies sofrem portentosos enxovalhos e não dão um ai. No próximo acampamento, já em Julho, esses maravilhosos selvagens sairão de uma missa em prol da lapidação das adúlteras e da tortura dos gays (“Boicote a Israel e Celebração da Palestina”) para almoçar tofu no Espaço Queer ou hummus no Espaço Feminista. E, inocentes, não perceberão o absurdo. À tardinha, hão-de frequentar o workshop “Desconstrução da Masculinidade Tóxica” e, cândidos, não perceberão a idiotia. À noite, vão dançar na Festa Anti-Racista e, castos, não perceberão o insulto. E insulto maior é presumir que o “outro” é igual a eles.
Não me custa admitir que os discursos do Dez de Junho servissem para uma catarse nacional, limitada a calamidades actuais para a efeméride não ultrapassar os seis meses. Só uns três seriam necessários ao reconhecimento da enorme violência que o BE comete sobre a inteligência alheia.
Nota de rodapé
Parece que o “Diário de Notícias” vai acabar enquanto tal. Felizmente, segundo a directora-executiva daquilo (olá, Catarina), trata-se de uma boa notícia, dado que a conversão a semanário e ao “on line” manterá a óptima tendência “dos últimos anos”, em que, após “uma fase complexa”, o DN voltou a ser “um jornal sério, conservador, sem ofender as pessoas e com bastante atenção àquilo que são os pólos de decisão do país”. Repito: “um jornal sério, conservador, sem ofender as pessoas e com bastante atenção àquilo que são os pólos de decisão do país”. Não sei se lamente o descaramento, se exalte a sinceridade.


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