terça-feira, 5 de junho de 2018

Porquê, nós?



Eu só me pergunto porque é que os países de maior envergadura – cultural, económica, social – não andam, como nós, assanhados em torno de uma prática de arrogância inqualificável sobre a manipulação da vida humana para efeitos de liquidação desta, quando representa estorvo definitivo. Como nos não envergonhamos e tentamos mascarar o crime sob uma capa de falsa misericórdia, quando o que isso denota é uma real insensibilidade e frieza de especulação, a par, evidentemente, da nossa qualidade irremediável de pobretanas, que não vêem outra solução para os problemas de uma economia degradada, a não ser a de desfazermo-nos do que estorva e já não produz, além de incomodar?
Realmente, pensei outra coisa de João Miguel Tavares. O seu artigo, sobre a eutanásia, que apontava para o referendo, entre outras coisas, de repente revelou-se alinhado com a opinião que é a favor da tal eutanásia. Isso  mereceu-lhe vários comentários críticos, entre os quais destaco alguns aclaradores da questão. Tenho pena de João Miguel Tavares, tão vivo e sensato e de repente alinhando entre os avançados do progresso, não sei se para não ser taxado de Velho do Restelo, o que seria desprimoroso para a sua juvenilidade, que gosta, acima de tudo, de provocar para se distinguir. Que pobreza! Que desilusão!
Destaco, é claro, o artigo de P. Gonçalo Portocarrero de Almada, de um bom senso e clareza irrefutáveis, que nos devia envergonhar, se fôssemos capazes dessa vergonha. Mas a tal “democracia” liberalizadora livrou-nos dela, da vergonha, ao encher-nos de arrogância, própria, decididamente, da nossa pobreza de espírito, a par da outra, da pobreza económica, que nos atou à cadeira de rodas da nossa impotência desavergonhada.
OPINIÃO
O “sim” à eutanásia perdeu – mas vai ganhar
Se os referendos não foram inventados para consultar os cidadãos sobre questões tão complexas e íntimas quanto esta, sinceramente não sei para que é que servem.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 31 de Maio de 2018
Sim, é só mesmo uma questão de tempo, mas em democracia é importante que as coisas sejam feitas da forma certa, no momento certo. Mais cedo que tarde, a prática da eutanásia vai ser legalizada em Portugal, pela simples razão de que quem a deseja luta por ela com muito mais energia e afinco do que quem não a deseja. Já aconteceu assim com a legalização do aborto. Contudo, a aprovação da eutanásia no Parlamento em 2018 estaria sempre ferida de falta de legitimidade democrática, e chumbá-la foi a decisão certa: o tema não constava dos programas eleitorais dos maiores partidos; não foi convocado um referendo; o debate não foi tão alargado e profundo quanto o tema merecia; há dúvidas fundamentadas de constitucionalidade que têm de ser esclarecidas; e Marcelo Rebelo de Sousa iria certamente vetar a lei se ela fosse aprovada pela margem mínima. Para quê, então, fazer as coisas mal e atabalhoadamente, se se podem fazer bem e de forma ponderada?
E fazer bem feito significa fazer assim:
Em primeiro lugar, os partidos devem manifestar a sua posição em relação ao tema nos seus programas eleitorais, para que aquelas pessoas que são como Cavaco Silva – ou seja, que recusam votar em partidos que apoiem a legalização da eutanásia; ou que, por outro lado, recusem votar em quem não a apoia – possam dirigir-se às urnas devidamente esclarecidas.
Em segundo lugar, deve ser promovido um referendo sobre esta matéria. Se os referendos não foram inventados para consultar os cidadãos sobre questões tão complexas e íntimas quanto esta, sinceramente não sei para que é que servem. Como explicou Luís Aguiar-Conraria no Observador, não faz sentido que um socialista que se oponha à eutanásia seja obrigado a votar no CDS ou no PCP só porque não concorda com um ponto do seu programa. Tal como um comunista ou um democrata-cristão deve poder votar no PCP ou no CDS, mesmo discordando das opções dos seus partidos nesta matéria. A solução para este impasse (e para as angústias do professor Cavaco Silva) passa obviamente pelo referendo.
Em terceiro lugar, deve existir um debate muito alargado e muito bem esclarecido sobre aquilo que está em causa. Eu já referi isto no meu texto de terça-feira e volto a insistir, porque é um aspecto fundamental, que não vejo sequer estar a ser posto em cima da mesa. Não é admissível estarmos constantemente a ouvir falar em “descriminalização” ou em “despenalização” da eutanásia e depois sermos confrontados com a instituição de um verdadeiro direito à morte assumido pelo Estado e subsidiado pelo Sistema Nacional de Saúde. São duas coisas totalmente diferentes. E há pessoas, como eu, que concordam com a primeira parte (a descriminalização) e discordam profundamente da segunda (a subsidiação).
A nossa primeira obrigação nestas matérias é manter a clareza da linguagem e a resistência às demagogias – e tão demagogos são aqueles que para criticar a legalização da eutanásia inventam espantalhos que pura e simplesmente não existem na lei (tipo: a aniquilação de todos os doentes incómodos); como são aqueles que enchem a boca com os grandes méritos da descriminalização, quando aquilo que na prática estão a fazer é criar uma estrutura estatal e um mecanismo burocrático de execução de doentes a pedido, dentro dos hospitais públicos. Não se pode invocar o liberalismo para dizer “deixem passar a eutanásia, porque só a pratica quem quer”, e depois, no final, requisitar os impostos de toda a gente para pagar a conta.
Alguns Comentários:
https://imagens.publicocdn.com/imagens.aspx/beaa8e9a-2321-4fd3-af07-a6badcbc56db?tp=USGustavo Garcia, 01.06.2018: Que lamentável artigo. Descobrimos que JMT considera, e bem, moralmente aceitável que se pratique a eutanásia (e, portanto, se despenalize) mas moralmente inaceitável que se permita a um cidadão ter acesso à mesma através de um SNS que esse mesmo cidadão também paga! Só para que não sejam os tostões de JMT a "subsidiar" (não é nada disso, ainda por cima) a decisão de um outro cidadão. Absolutamente ridículo.
 José P.,  Lisboa 01.06.2018: Que pena... Quando li o subtítulo apeteceu-me dizer: "tão esperto, o rapaz". Depois comecei a ler e pensei: Boa, até me identifico com o exposto. Debate, clarificação, referendo. Que pena ter acabado tão mal. JMT acha que deve haver debate e referendo, ok, mas vai dizendo que, para ele, o importante é saber quem é que paga a conta. Pena não ouvir, por exemplo, a opinião de Manuela Ferreira Leite. Entenderia que, neste caso, se há variável que não deve entrar na equação, é essa. O estado deve estar para ajudar a lutar pela vida, ou para aquilo que o coletivo considerar necessário, num quadro social "frágil e de pessoas pobres". Rever-se-ia JMT numa eutanásia dos ricos em Portugal? Os pobres que se atirem da ponte? Não consigo entender esse nível de egoísmo.
tiago_volkov, 31.05.2018: Tenho sérias dúvidas neste assunto, e, como cidadão, quero ter algumas dúvidas esclarecidas. Porquê eutanásia? Porquê agora? O que despoletou essa necessidade? O que é morrer com dignidade? Porque é que viver com sofrimento permite-se eutanasiar? Como medir o sofrimento que justifique eutanasiar? Qual a diferença entre eutanásia e suicídio? Quem está a pedir a eutanásia, sãos ou doentes à espera que a doença os leve? E tenho mais dúvidas, mas por agora estas. Se alguém puder explicar ou ajudar a entender. Por princípio e porque tenho dúvidas, voto não.
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A ‘morte digna’ da eutanásia /premium
OBSERVADOR, 2/6/2018
Nova votação sobre a eutanásia?! Porque não repetir também o referendo do aborto?! Para alguns antidemocratas, as derrotas são precárias, mas as vitórias são definitivas.
Não se percebe a indignação dos defensores da eutanásia pelo facto de os projectos-lei, que propunham a sua legalização, terem sido rejeitados pela Assembleia da República, no passado dia 29. Não só porque foi uma decisão democrática, mas também porque os ditos projectos-lei tiveram, como os defensores da eutanásia propugnam, uma morte rápida e sem dor, ou seja uma ‘morte digna’. Mas, voltar à carga, já na próxima legislatura, não será um caso de ‘distanásia’ legislativa, ou de ‘encarniçamento’ antidemocrático?!
Alguém escreveu: “Direita chumba. Esquerda avisa que vai ter de repetir, até passar”. É salutar esta persistência, quando se trata do insucesso escolar, mas não a propósito de uma decisão democrática. Ou será que só são democráticas as votações que se ganham?! Será também de repetir o referendo sobre o aborto?! Para alguns antidemocratas, as derrotas são sempre precárias, mas as vitórias definitivas …
Esta vitória não foi da direita nem da esquerda, mas de todo o povo português, pois esteve prestes a ser traído pelos seus políticos que, sem o seu consentimento, nem sequer tácito, se propunham tomar uma decisão da maior transcendência. É curioso que, aqueles que consideraram esta questão como sendo de consciência, não tenham achado que, precisamente porque não tinha sido consultada a consciência dos seus eleitores, os não poderiam representar nessa decisão. Ou será que, a única consciência que conta, é a dos deputados?! Como só na próxima legislatura será possível voltar a propor a despenalização do homicídio a pedido, nenhum partido político, quando se apresentar às próximas eleições legislativas, poderá evitar esta questão, nem comodamente relegar o tema para a consciência de cada deputado. De facto, para que serve um partido que, em questões destas, não toma partido?!
Só dois partidos assumiram institucionalmente a defesa da vida: o CDS e o PCP. O primeiro, porque se reconhece nos princípios do humanismo cristão; o segundo, porque defende a inviolabilidade da vida humana – foi aliás o PCP que propôs este princípio na Constituição – e não ignora os efeitos sociais catastróficos que a legalização da eutanásia acarreta e que os pouquíssimos países europeus que a legalizaram – Holanda, Bélgica, Suíça e Luxemburgo – conhecem por experiência própria.
O partido do governo, ainda mergulhado na profunda crise moral que resulta do caso Sócrates e não só, posicionou-se à margem do humanismo, alinhando com o extremismo do Bloco de Esquerda, seu parceiro na coligação parlamentar. Tendo em conta que a quase totalidade dos seus deputados votaram a favor da eutanásia, pergunta-se: há coerência num católico que vota num partido que defende teses tão anticristãs?!
A matriz social-democrata do PSD era, em Sá Carneiro, compatível com os princípios do personalismo cristão e da Doutrina Social da Igreja, em que o fundador do partido se revia. Não assim o seu actual presidente que, não só é partidário da eutanásia, como também fez campanha pela sua legalização, colaborando activamente na publicação que, em prol desta causa fracturante, o ex-coordenador nacional do Bloco de Esquerda patrocinou. É sintomático que a própria bancada parlamentar do PSD não tenha acompanhado, nesta sua opção, o presidente do partido, cuja liderança ficou assim ainda mais fragilizada. Não parece que essa sua opinião pessoal, que não foi partilhada pela maioria dos seus deputados, seja a da maioria do seu eleitorado, nem consta que tenha sido legitimada por nenhuma instância partidária.
De facto, só duas deputadas do PSD votaram a favor dos quatro projectos-lei que propunham a despenalização do homicídio a pedido, as mesmas que votaram também a favor de outras causas fracturantes, como as barrigas de aluguer e o aborto, sendo uma delas a responsável pela humilhante derrota do partido em Lisboa, nas últimas eleições autárquicas. Se, nas próximas eleições legislativas, o presidente do PSD se mantiver favorável à legalização da eutanásia, ou o respectivo grupo parlamentar não se empenhar na defesa da vida, é previsível que, como Cavaco Silva já disse, o que resta do seu eleitorado cristão emigre definitivamente para outro partido, ou opte pela abstenção.
Estão também de parabéns os médicos portugueses que, pela voz autorizada do seu bastonário e de todos os que o precederam nesse cargo, rejeitaram liminarmente a eutanásia. Outro tanto se diga do ‘Stop eutanásia’ e outros movimentos cívicos, como “Toda a vida tem dignidade”, que promoveram debates sobre esta questão, não obstante a parcialidade pró-eutanásia de quase todas as televisões e jornais de referência.
Embora de forma pacata e sem se envolver nas lutas partidárias, também a Igreja católica está de parabéns, sobretudo pelo seu sereno e fundamentado contributo para o esclarecimento de todos os cidadãos e, em especial, dos seus fiéis, como é sua indeclinável obrigação. Foi muito oportuno e pertinente o documento a este propósito divulgado pela Conferência Episcopal Portuguesa, em 2016, com o título “Eutanásia: o que está em jogo? Contributos para um diálogo sereno e humanizador”, com um muito pedagógico “Anexo” com “Perguntas e respostas sobre a eutanásia”. Também foi muito enriquecedor o contributo público de vários sacerdotes, nomeadamente os jesuítas P. Miguel Almeida e P. Miguel Gonçalves Ferreira.
Mas, não é verdade também que alguns ‘católicos’ não só se manifestaram publicamente a favor da eutanásia como até foram proponentes de algum dos projectos-lei a favor da legalização do homicídio a pedido?! Certamente, mas a identidade cristã não se afere pelo que cada um possa dizer de si mesmo, mas pelos seus actos porque, como diz São Tiago, é pelas obras que se conhece a verdadeira fé (cf. Tg 2, 14-26).
A este propósito, recorde-se a parábola dos dois filhos: um diz que sim, mas faz o contrário, enquanto o outro diz que não, mas depois arrepende-se e faz o que deve (cf. Mt 21, 28-32). Nos Actos dos Apóstolos narra-se também a exemplar punição do casal que, fingindo ser cristão, o não era nas suas palavras e acções (cf. Act 5, 1-11). O Catecismo da Igreja Católica, ao mesmo tempo que desautoriza a pena de morte (cf nº 2267 e “A Igreja e a pena de morte”, no Observador de 4-3-2017), também afirma que, “quaisquer que sejam os motivos e os meios, a eutanásia directa”, que “consiste em pôr fim à vida de pessoas deficientes, doentes ou moribundas”, é sempre “moralmente inaceitável” (nº 2277). Portanto, quem a defenda consciente e deliberadamente, mesmo que tenha sido baptizado, obviamente não é católico. Mas está sempre a tempo de se arrepender e converter ao Evangelho da vida.

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