quinta-feira, 5 de julho de 2018

“Faz parte”



Da evolução. Da mudança, como se chamou desde sempre. Os trambolhões nas políticas são muitas vezes imprevisíveis, como essa recente da decisão unilateral da mudança de Jerusalém como capital de Israel, por ordem de um poderoso, sem grande protesto do mundo acobardado. Adriano Moreira chama-lhe leviandade, mas o mundo segue, com a embaixada americana para lá mudada. Talvez não faça grande mossa, há sempre outros motivos ou interesses a justificar razões, sejam  cobardias, egoísmos ou sinistras – cínicas - compreensões, “cada um é seus caminhos”. Quanto ao fenómeno do “populismo”, tratado por Paulo de Almeida Sande no seguimento de Miguel Poiares Maduro, foram duas excelentes lições que nos mostram como o populismo acaba com uma efectiva democracia. Mas estes piparotes fazem parte do “progresso”, quando este é mal compreendido por um povo pouco esclarecido e cujos mentores também o são, e, sim, manhosos. Interesseiros, sob a capa do altruísmo, igualmente sinistro. Mas a reviravolta, num mundo cada vez mais na lama, torna-se menos provável. Nem o “sempre em pé” se segura aí.

I - A leviandade
ADRIANO MOREIRA
DN, 26 Junho 2018 
Os factos surpreendentes que se multiplicam e que agravam a situação de risco da circunstância mundial fazem repetidamente lembrar uma advertência do príncipe Otto von Bismarck (1815-1898), um dos doutrinadores e praticantes da chamada realpolitik, conceito formulado por Ludwing von Rochau, quando definiu e realizou o projeto de unificação da Alemanha. Adotando a prudência do possível, advertia que uma simples leviandade poderia facilmente produzir uma catástrofe, designadamente militar, embora o uso da força militar não seja a única força capaz de produzir iguais efeitos.
Ainda hoje há doutrina que apoia o entendimento de que o conceito da Carta da ONU (artigo 2) não incluiu apenas agressão com uso da força armada, mas qualquer intervenção no espaço da soberania de outra potência, embora pareça mais numeroso o apoio da interpretação restritiva no sentido de que apenas tem em vista o uso da força armada. De qualquer modo, o teor do valor dominante da Carta da ONU é a paz, e não é uma interpretação excessiva entender que é reprovada qualquer intervenção exterior que afete a ordem interna de um Estado, ou região com estatuto internacional reconhecido, como foi o caso da frutuosa utilização das cidades autónomas, como foi por exemplo o caso de Tânger, cuja administração esteve em mãos portuguesas com êxito reconhecido.
Também foi o modelo que recebeu apoio e propostas de responsáveis, quando a sonhada formação de dois Estados na Palestina implicou a importância e a preocupação internacional com Jerusalém, um património das várias religiões, e não apenas de judeus e muçulmanos, sendo destacável o que representa para os cristãos de todas as tendências. Acontece que a decisão do atual presidente dos EUA, no sentido não apenas de colocar em Jerusalém a embaixada do seu país, foi também acompanhada da sua proclamação declarando que tal ato significava que a cidade de Jerusalém, na sua totalidade, era a capital de Israel. Extinguindo assim o regime proposto de servir também de capital da autoridade palestina, longamente à espera, paga com sacrifícios, de finalmente ter um reconhecimento internacional geral de Estado, com a inerente proteção internacional. Como era de esperar, pela evidência histórica do longo problema, os conflitos, com o preço das mortes inevitáveis, foi um resultado imediato, provocado pela insólita decisão, dos confrontos entre as duas comunidades, que o processo de instalação da embaixada era impossível não provocar. Mas o que não era de prever era que um estadista responsável entendesse que tinha o poder de declarar legalmente o efeito da sua decisão, que ela fosse internacionalmente acatada, naturalmente festejada em Israel, embora com amortecida crítica internacional, que a rodeou, embora seja seguramente mais surpreendente que o Conselho de Segurança não assumisse que a circunstância exigia a sua intervenção.
O facto de tal decisão com tais efeitos ser feita pelo governante de um Estado com direito de veto, isso não inclui no privilégio a imunidade da intervenção do Conselho quando é a paz e a vida que estão em causa. Ocorre lembrar o incidente da tentativa do Reino Unido-França, ambas as potências com direito de veto, e que ficaram impedidas de conseguir o êxito que esperavam fácil, quando procuraram impedir Nasser de nacionalizar o Suez. Que a atual decisão não tenha ainda provocado a suficiente reação contra as perdas de vidas que sublinham e responsabilizam o autor do acontecimento não impede, porém, de assumir já como suficientemente evidente e preocupante que se tratou de uma leviandade, no prudente conceito de Bismark.
Não é de esperar que as várias religiões - para as quais o carácter sagrado da cidade está acima do pragmatismo de qualquer política consagradora da regra maquiavélica segundo a qual, quando a ilegalidade da ação provocou o efeito desejado, está justificada - deixem de unir-se na defesa do valor comum que partilham. Mas também é de esperar que mais uma vez seja fortalecido o movimento vindo não apenas de entidades políticas, mas também de sociedades civis, independentemente de partilharem alguma das crenças religiosas, para que a presente ONU seja suficientemente reformulada no sentido de poder e dever chamar-se ONU da Paz.
Até esta data não parece que esse objetivo seja partilhado pelo autor da audaciosa intervenção numa área que não é apenas do seu interesse, nem exclusivamente do interesse dos palestinos, nem dos cristãos que hoje são objeto de perseguições e sacrifícios não ignoráveis, trata-se de um lugar de encontro de valores cimeiros de várias crenças que ali encontram o ponto mais valioso da sua comunhão em paz e cooperação.

II - POLÍTICA
Portugal populista /premium
OBSERVADOR, 3/7/2018
Um político popular está próximo do povo para o aproximar das instituições e da política. Um político populista aproxima-se do povo para o aproximar de si e alienar das instituições e da política.
O espectro do populismo ameaça Portugal.
E se com esta afirmação atraí a atenção do leitor, sugiro que leia o artigo de Miguel Poiares Maduro “o que esconde a palavra populismo”. Vale a pena. Pode ajudar-nos a encontrar resposta à pergunta: há condições para o populismo triunfar em Portugal?
O conceito é equívoco, um problema constante da moderna ciência política, de origens confusas, algures no século XIX (Farmer’s Alliancenos EUA ou a componente nihilista do movimento revolucionário russo?). Retomo e complemento Poiares Maduro:
Para os populistas, as sociedades dividem-se em elites e povo, aquelas “más”, este “bom”. As elites detêm o poder e os populistas querem recuperá-lo em nome do povo “bom”.
Dessa forma, o populista representa e interpreta a vontade do povo, por definição justa e verdadeira. Só ela interessa. Discuti-la é traição (ao povo), sendo por extensão também traição questionar a interpretação dessa vontade feita pelo líder populista.
Nenhum outro poder supera o do populista, não são admitidos mecanismos de controlo e separação de poderes. Nenhum mérito é aceite, salvo os que o populista assinale. Todas as instituições com voz independente perdem a independência… ou a voz.
O populista rodeia-se de “tropas”, nem sempre metaforicamente, fiéis mobilizados, que impõem à maioria (em geral) silenciosa um líder aberto ao povo, popular e empenhado na defesa exclusiva do seu interesse.
O populista em geral não tem uma ideologia clara. Pode ser de direita ou esquerda, quase parasita ideias e propostas que confortam os medos mais básicos da sociedade.
São duas as condições principais para o surgimento de líderes populistas.
Talvez a mais importante, o afastamento entre os cidadãos e a classe política. O “establishment”, as elites no poder, os políticos profissionais (ou ocasionais) percepcionados como corruptos e incapazes, são fonte da insatisfação que corrói a confiança nas instituições.
As crises, sejam económicas, de profunda desigualdade social ou de outra natureza. O populismo é nacionalista ou, mais restritamente, nativista. Já em meados do século XIX o Know Nothing Party (Partido “Não Sei Nada”) lutava contra os direitos dos imigrantes, nomeadamente católicos, em favor dos protestantes nascidos na América.
Finalmente, como identificar um populista?
Pelo tom em geral apocalíptico, profético, quase sempre zangado: Trump, Le Pen, Salvini. Pela referência generalizada a inimigos figadais: elites, neoliberais, UE, imigrantes. Pelo discurso nacionalista do “Portugal primeiro”, da “America First”, “do meu bairro primeiro” (vale tudo). Pela posição contra o sistema, contra os bancos, o aparelho financeiro, a especulação em geral. Contrapõem-se-lhe o bom trabalhador, o cidadão médio, o pequeno empresário.
Um populista opõe-se à religião como forma de alienação das pessoas, é anti-muçulmano, anti-judeu, anti-católico, o que for preciso e sobretudo conveniente. Cultiva elaboradas, quase inverosímeis (convencem muita gente) teorias da conspiração, que atribuem às elites. É em geral eloquente, narcisista, sedutor. Usa uma linguagem simples, uma lógica discursiva voluntarista, promessas vagas, um discurso bipolarizado, polémico, cheio de pronomes pessoais e referências ao povo, à pátria, à vontade nacional, à segurança (coisas boas), às elites, aos financeiros, à integração europeia, aos sabotadores, aos imigrantes (coisas más).
De vez em quando, o populista fala de si próprio na terceira pessoa, enchendo a cena política de si próprio, com os espectadores, o povo, convidado a participar. Mais do que uma ideologia, expressa uma forma de narrativa que vai ao encontro das preocupações e aspirações dos cidadãos e “lhes diz o que querem ouvir”. Como escreve Poiares Maduro, “o populismo reduz a democracia ao voto da maioria”, “acaba com os mecanismos de controlo e separação de poderes”, desvaloriza “os factos e conhecimento” no processo democrático, condena qualquer dissidência como traição e os opositores como sabotadores.
E em Portugal, o populismo pode ser uma realidade?
O contrário seria surpreendente. As condições estão reunidas, candidatos a populistas não faltam. Experimentem aplicar os critérios acima enumerados ao que sucedeu com o Sporting (e o país) nos meses mais recentes e aperceber-se-ão até que ponto, numa escala obviamente menor, se tratou (ou não) de um fenómeno populista.
Um político popular está próximo do povo para o aproximar das instituições e da política. Um político populista aproxima-se do povo para o aproximar de si e alienar das instituições e da política. Não são realidades distintas, são realidades opostas.
O populismo em Portugal é evitável, mas só se quem o pode evitar não menosprezar o risco (os políticos em primeiro lugar). O primeiro passo, importante e urgente, é perceber as razões que o podem criar. E combatê-las, também, ou sobretudo, pelo exemplo.
Caso contrário, o risco converter-se-á em realidade e a realidade não será um lugar agradável para viver.

III - Opinião
O que esconde a palavra populismo
DN, 30 Junho 2018 
A palavra do momento é "populismo" mas poucos a definem, para além da conotação pejorativa que lhe atribuem. O perigo é que se confundam as razões da popularidade do populismo com o próprio populismo. Devemos atender às primeiras e combater o segundo.
O populismo é, na sua origem, uma ideologia que faz coincidir na vontade popular não apenas a democracia mas também a verdade. A conceção dominante de democracia adotou, no entanto, uma conceção pluralista da procura da verdade. Por isso, organizámos a democracia, não apenas como vontade da maioria, mas como um processo deliberativo em que diferentes posições sobre o que é o bem comum são contrapostas e discutidas no seu mérito ainda que, em ultima análise, arbitradas através do voto maioritário. Para esta conceção liberal da democracia, que valoriza a democracia representativa, a vontade maioritária deve partir da qualidade dos argumentos e tem de coexistir com o respeito pelo pluralismo.
O populismo apresenta-se, historicamente, para combater estas dimensões elitista e pluralista. Os movimentos populistas apresentam uma visão do Mundo dividido entre as elites (que ocupam o poder) e o povo (concebido como uma unidade de uma só vontade). A tarefa dos populistas é retomar o poder, em nome do povo, contra essas elites. É fácil compreender o apelo que isto representa em contextos históricos, como o atual, em que uma parte substancial da sociedade se acha não representada pelo sistema político. É também fácil perceber as consequências perversas a que o populismo conduz. Primeiro, a vontade do povo (expressa pela maioria) é, por definição, a verdade e logo não pode estar sujeita a nenhum mecanismo de controlo de poder. O populismo reduz a democracia ao voto da maioria e acaba com os mecanismos de controlo e separação de poderes. Segundo, uma vez que essa verdade não depende do mérito, visto como reflexo do poder das elites, os factos e conhecimento são desvalorizados no processo democrático. Por tudo isto, o populismo não deixa margem para dissidências. Os que discordam são inimigos. Os que se opõem são sabotadores. Todos os factos que não suportem a narrativa são explicados como parte da conspiração das elites e, logo, apenas confirmam essa mesma narrativa, ao demonstrar como tal conspiração é ampla e poderosa.
É irrelevante se um populista acredita na missão que diz prosseguir ou se simplesmente a manipula ao serviço de uma estratégia de poder pessoal. A consequência é a mesma: uma concentração absoluta de poder. É essa concentração absoluta de poder que inevitavelmente se vira contra aqueles que concederam esse poder. É por isso que o populismo, partindo da democracia, acaba por a destruir.
* PROFESSOR UNIVERSITÁRIO



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