domingo, 22 de julho de 2018

“No mundo nom me sei parelha”



Uma noite em cheio, como recuo no mergulhar nas notícias que nos atordoam, deixando-me enfeitiçar pelo espectáculo de comemoração do 90º aniversário de Line Renaud, organizado por France 2 e transmitido pela TV5 esta noite de 27/7. Um serão maravilhoso que deixa, contudo, também um sabor amargo, pelo confronto que não podemos deixar de estabelecer entre os nossos espectáculos, definitivamente de cariz popularucho, e a elegância, bom gosto, simpatia e beleza de um espectáculo em grande escala, com orquestra, figuras várias perpassando, recordando os êxitos de Line Renaud presente e bonita, a quem foi oferecida a surpresa da presença de tantos seus amigos que cantaram as suas canções, terminando com o êxito “Une cabane au Canada” e uma bela representação final de “French Can Can”. Line Renaud bem viva sempre, quer na referência aos amigos, quer no discurso de agradecimento por tão expressiva festa, em que o próprio Presidente Macron não deixou de participar, não em presença mas com o seu discurso de simpatia televisionado, por uma actriz e cantora de tanta notoriedade e que tanto se empenhou no combate à Sida.
Mas o programa acabou, leio algumas notícias dos Públicos: de Diogo Queiroz de Andrade, de 11/7, de João Miguel Tavares, de 21/7. O primeiro sobre as afinidades perigosas de Trump com Putin, e a destruição da EU. o segundo, sobre as afinidades de nós, portugueses, com nós próprios. For ever. A mais recente, essa do aproveitamento dos dinheiros para o refazer das casas ardidas de Pedrógão, utilizado para refazer outras, que nem sequer foram chamuscadas. Somos ou não somos espertos?
 E assim vamos andando, de esperança em realidade, de realidade em desesperança…

I -EDITORIAL
Trump encena o mundo perfeito de Putin
Mais uma aparição europeia do Presidente americano que confirma que os EUA já não são um aliado da Europa nem da democracia liberal. É tempo de arrepiar caminho.
DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE
PÚBLICO, 13 de Julho de 2018
O Presidente americano foi igual a si mesmo na cimeira da NATO: disruptivo, disfuncional, ameaçador, demagogo. Na verdade, Donald Trump parece nem sequer entender como funciona a organização, repetindo mentira atrás de mentira e revelando um épico desconhecimento histórico que só envergonha os americanos. O problema é de fundo: Trump não entende a lógica das alianças estratégicas nem acredita em aliados. Para o Presidente americano uma aliança implica a exploração de um ou vários dos seus membros e a estabilidade é coisa incómoda, pelo que uma parceria mutuamente benéfica está excluída da sua mundividência.
Não há lógica nas suas atitudes porque, na verdade, o homem não se gere por princípios de racionalidade. Quando Trump diz a Macron que o melhor seria que a França abandonasse a União Europeia e lhe promete em troca um acordo comercial mais vantajoso com os EUA, está a tentar a mesma forma de relacionamento directo que tentou com Kim Jong-Un. Quando ataca Merkel pelas suas relações comerciais com a Rússia, está a tentar desestabilizar a imagem global de um aliado de forma a lucrar com a agitação. É a lógica do “quanto pior, melhor” aplicada a nível global.
Todos os líderes ocidentais desviam o olhar e assobiam para o lado enquanto esperam que o mandato de Trump termine. Esta pode ser a única atitude possível a curto prazo, mas é a abordagem errada. Em vez disso, seria melhor perceberem que a dependência dos Estados Unidos é algo que tem mesmo de terminar, seja na égide da defesa ou na persecução de valores comuns. Os EUA já não são um parceiro fiável dado o extremismo do seu clima político, que condiciona qualquer acordo de longo prazo e funciona como uma permanente ameaça com impacto potencialmente global. 
E há aqui um outro enquadramento grave. É que se Vladimir Putin tivesse sonhado com uma nova ordem mundial, dificilmente seria diferente disto: uns Estados Unidos isolacionistas, a NATO e a União Europeia em risco de dissolução e os acordos de comércio livre em cacos. Acrescente-se a isto a rédea solta que os russos têm na Síria e a facilidade como que espalham os seus exércitos de hackers, para que este seja o melhor mundo possível para o Kremlin. A questão passa então a ser porque é que este é também um mundo interessante para Donald Trump.
II - OPINIÃO
Este país não é para gente honesta
Enquanto esta mentalidade perdurar, não há nada a fazer. Teremos sempre Pedrógão. Como teremos sempre a PT.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 21 de Julho de 2018
Olhar para as capas das revistas Sábado e Visão na passada quinta-feira, bem juntinhas numa banca de jornais, era uma dor de alma. Na capa da Sábado tínhamos Ricardo Salgado, José Sócrates, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava, e por cima o título “O assalto à PT – Saiba como eles destruíram a maior empresa portuguesa”. Lá dentro havia pormenores inéditos sobre a queda da PT e a informação – para que todos tenhamos uma boa noção do valor ali destruído – de que em 20 anos a empresa distribuiu “11,7 mil milhões de euros de dividendos” por “pequenos e grandes accionistas”. A capa da Visão, por seu lado, trazia a investigação sobre o chocante aproveitamento dos dinheiros de Pedrógão para a reconstrução irregular de casas: “O truque de alterar a morada fiscal, depois dos incêndios, funcionou: várias habitações foram reabilitadas, apesar de já estarem em ruínas antes do fogo ou de nem serem residência permanente dos proprietários.”
Aquelas duas capas, postas lado a lado, dizem mais sobre Portugal do que uma estante inteira de livros de Sociologia, História e Ciência Política. Elas explicam exemplarmente o fracasso do país, a sua incapacidade de convergir com os países mais avançados, a nossa eterna presença na cauda da Europa, esta sensação angustiante de estarmos sempre a perder o comboio do desenvolvimento. Sobre o escândalo da PT, do BES ou do governo Sócrates já muito foi dito e escrito. Não vale a pena repetir-me, ainda que todos os dias me continue a perguntar como foi possível. Mas a investigação sobre as casas de Pedrógão, onde é revelado um desvio de fundos na ordem do meio milhão de euros – valor significativo quando olhamos para o montante global da reconstrução (dez milhões), mas ridículo face à dimensão das grandes golpadas – na recuperação de habitações inelegíveis ou não-prioritárias, é tão relevante para a explicação dos constrangimentos do país quanto o desaparecimento da PT.
O esquema que está na base do desvio de dinheiro de Pedrógão – a alteração da morada fiscal, para fazer passar uma segunda morada por primeira – é comum a outras situações. Os deputados da nação fazem o mesmo para receber indevidamente subsídio de deslocação – e os serviços do Parlamento dizem que não é nada com eles. Tal como a recente mudança nas regras de acesso às escolas provocou uma corrida à alteração da morada fiscal no cartão de cidadão – parece que ainda ficou mais fácil do que antes aldrabar o local onde se vive.
Há mais. Perante todas as suspeitas, veja-se a postura do presidente da Câmara de Pedrógão Grande, Valdemar Alves. Primeiro, não respondeu às perguntas da Visão. Depois, disse à TV que era “uma afronta” e “uma perseguição”. Seguiram-se queixas de “denúncias de má-fé” e de ser um “trabalho jornalístico encomendado”. E concluiu dizendo que é “inveja do trabalho que foi feito”. É o método socrático da cabala aplicado na perfeição.
Eis a triste verdade: Portugal não é para gente honesta. Isto não significa que não existam pessoas honestas, mas que a relação dos portugueses com o Estado é em simultâneo de dependência e de desconfiança, o que se traduz numa cultura de arranjinhos, à qual só os parvos não aderem. Ninguém sente que o dinheiro do Estado é de todos – o dinheiro do Estado é de ninguém. Apropriarmo-nos dele através de golpes grandes ou pequenos demonstra inteligência, não falta de carácter. E enquanto esta mentalidade perdurar, não há nada a fazer. Teremos sempre Pedrógão. Como teremos sempre a PT.



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