domingo, 15 de julho de 2018

Opinar sem responsabilidades do mando



Sempre me pareceram ridículas as poses fotográficas nas visitas de Estado, os apertos de mão forçados, a falta de naturalidade que traduzem esses gestos convencionais, que os fotógrafos das reportagens impõem, mas, nesta era de saliências logo transmitidas pelo éter, os chefes que se visitam não poderiam fazer outra coisa senão posar para a foto, como é da praxe. É fácil condenar quando se está de fora, mas esses sapos são fruto da época, que todos têm forçosamente que engolir, o próprio Trump se sujeita, lá pelas bandas da Ásia, como se tem visto, também cínico ou subserviente, conforme lhe convém. Daí, o achar demasiado severo este texto de Pacheco Pereira, próprio de quem tem como responsabilidade apenas o estar de olho atento, e de moral em destaque, com os burilados literários de mistura, sabendo que, se tivesse ele que governar, faria necessariamente o mesmo e que a sua crítica não passa de pura empáfia rancorosa contra os que governam os mundos. Mas o que também me chocou no seu texto foi a comparação “mau como só uma criança pode ser”, a propósito de Trump. Com tanta “maldade” adulta que se verifica a cada passo, o raio da comparação criou-me engulhos, pela extraordinária perfídia. E trouxe-me uma vez mais à memória aquela “Quadratura” em que, de papel e lápis em punho, PP provou, para os parceiros e as câmaras, que a vitória de Passos Coelho nas eleições de 2015, não era mais que derrota, numa outra perspectiva, criada ali, ante o pasmo e a indignação dos ingénuos, pelo cinismo e fraude transparentes, e isso não o envergonhou, na sua ilha deserta, bom servo, ele próprio, do Senhor das Moscas.
OPINIÃO
Os gnomos de Trump e o Senhor das Moscas
Envergonha-me a cena de submissão que os dirigentes europeus da UE e da NATO têm feito diante de um Trump que os insulta, ataca, ameaça.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 14 de Julho de 2018
Não costumo muito ficar envergonhado com a atitude de outros, em particular quando não tenho muitas expectativas sobre o seu comportamento. Mas envergonha-me a cena de submissão que os dirigentes europeus da UE e da NATO têm feito diante de um Trump que os insulta, ataca, ameaça, mente descaradamente, gaba-se, batendo no peito como os gorilas, faz afirmações inaceitáveis, chantageia-os com tomadas de posição de enorme gravidade para a paz e segurança dos seus países, mostra desprezo pelos seus acordos e alianças, interfere na política interna das democracias (nas autocracias e ditaduras nem uma palavra), ou seja, faz tudo o que não deve fazer por nenhuma regra diplomática, de bom senso, de educação, e eles sorriem, baixam a cabeça, apressam-se a correr para o lugar na fotografia, como gnomos que são.
Ao lado do que aconteceu nesta visita europeia de Trump, as declarações do G7 parecem um acto de heroicidade, pelos vistos já esquecido. Ver Theresa May ao lado de Trump a comportar-se como uma ovelhinha, a permitir que ele minta descaradamente sobre o que disse no dia anterior, a acusar os jornalistas do Sun de manipular as suas palavras, quando estes têm a entrevista gravada e passaram as partes controversas logo a seguir para mostrar quem mente, a aceitar os elogios do mesmo homem que lhe provocou no dia anterior consideráveis estragos num poder já de si muito frágil, diz muito da covardia e da hipocrisia da senhora.
Mas o que é mais grave é que, nessa entrevista a dois, Trump recusou-se a responder a uma pergunta da CNN por ser “fake news”, para responder a Fox News “real news”. May estava ao lado, nem piou, nem sequer tomou a iniciativa de dar ela a palavra ao jornalista da CNN, para mostrar a diferença. Nada. Mas a verdade é que os jornalistas presentes continuaram como se nada se passasse. Havia um ambiente de boa disposição, sorrisinhos, anedotas, tudo bons amigos, babados por estar diante do homem mais poderoso do mundo. Uma vergonha esta complacência com Trump e os seus abusos, que mostra como se pode ser o bruto que ele é e passar impune.
O que faz falta é que alguém diante de Trump e em directo lhe responda de forma clara e inequívoca, que se levante e lhe diga algumas verdades, já que não conseguirá dizer muitas, porque será calado e escoltado para fora da sala. Que faça aquilo que os anarquistas chamavam “a propaganda pelo exemplo”, uma das coisas mais poderosas quando se pode fazer diante de milhões de pessoas que estão a ver ou vão ver, como seja dizer esta simples frase: “O senhor Presidente, sua Excelência, Sir, sua Majestade, sua Eminência, Grande Negociador, etc., por que razão o senhor mente tão sistematicamente, por que razão é um mentiroso?” Não lhe perguntem sobre políticas, que ele aí vai dizer o que quer, dependendo de quem está ao lado e, no dia seguinte, muda tudo na solidão do Twitter ou vice-versa. Mas duvido que hoje abundem as pessoas que possam ter estatuto para estar diante dele, sejam governantes, sejam jornalistas, e que tenham essa pequena coragem, nem muito especial, nem muita coragem, de não ter transigência, nem complacência com Trump e o confrontar.
Eu admito que eles possam ter medo de Trump e, pensando bem, não é uma atitude desprovida de sentido, porque o homem é muito perigoso. Mas o que estes gnomos fazem está muito acima do medo, é um exercício que mistura reverência ao poder, subserviência, e pura e simplesmente vaidade por estarem ali ao lado do Presidente dos EUA, a bater nas costas uns dos outros, e pensando: “Que importantes que nós somos.” Eles não gostam de Trump, riem-se dele em privado, denunciam-lhe as grosserias entre amigos, contam as anedotas malévolas sobre as Stormy Daniels da vida dele, sugerem que ele está nas mãos de Putin, mas lá, diante dele, perdem a bazófia toda.
Desde o primeiro dia que penso e escrevo que com Trump só resulta a intransigência total. Nem salamaleques, nem sorrisos, nem sequer vontade de estar perto. As pessoas dignas do Reino Unido estão na rua a protestar, sob a imagem cruel do balão representando um bebé Trump birrento, mau como só uma criança pode ser.
No fundo, estamos na pátria de William Golding, o autor de O Senhor das Moscas, que retrata como um grupo de crianças regressa à selvajaria quando deixados sós numa ilha. Levantem bem alto o balão e passeiem-no bem visível diante de Theresa May e dos seus confrades europeus, crescidos no corpo e na idade e pequeninos em tudo, servos do Senhor das Moscas.
 


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