domingo, 15 de julho de 2018

Um suspiro de alívio


Não há mais que temer. O Orçamento passou, é tudo uma questão de fé, agora. No Santo António, no nevoeiro sebastianista, e, last but not least, no Jesus Cristo com falta de biblioteca e de saber financeiro reduzido, mas um salvador eficaz, diz-se na cartilha. Tout va bien qui finit bien. Oremus. Com Helena Pereira e com João Miguel Tavares, apesar do cepticismo de ambos. Cantemos também. Com Zeca Afonso, o nosso bardo, que ajudou ao arranque da nossa felicidade endividada:

O Que Faz Falta
Quando a corja topa da janela O que faz falta Quando o pão que comes sabe a merda O que faz falta O que faz falta é avisar a malta O que faz falta  O que faz falta é avisar a malta  O que faz falta
Quando nunca a noite foi dormida O que faz falta Quando a raiva nunca foi vencida O que faz faltaO que faz falta é animar a maltaO que faz falta O que faz falta é acordar a malta O que faz falta
Quando nunca a infância teve infância O que faz falta Quando sabes que vai haver dança O que faz falta O que faz falta é animar a malta O que faz falta O que faz falta é empurrar a malta O que faz falta
Quando um cão te morde a canela O que faz falta Quando à esquina há sempre uma cabeça O que faz falta O que faz falta é animar a malta O que faz falta O que faz falta é empurrar a malta O que faz falta
Quando um homem dorme na valeta O que faz falta Quando dizem que isto é tudo treta O que faz falta O que faz falta é agitar a malta O que faz falta O que faz falta é libertar a malta O que faz falta
Se o patrão não vai com duas loas O que faz falta Se o fascista conspira na sombra O que faz falta O que faz falta é avisar a malta O que faz falta O que faz falta é dar poder à malta O que faz falta

EDITORIAL
O Orçamento de 2019 já passou
PÚBLICO, 14 de Julho de 2018
Para já não há crise. Mas percebe-se bem como a "geringonça" anda com o carro na reserva e está à beira de ficar sem gasolina depois das legislativas de 2019.
O debate sobre o Estado da Nação a que ontem assistimos foi verdadeiramente um debate sobre o estado da "geringonça". E o que nos disse? Primeiro, que o Orçamento do Estado para 2019, na prática, já passou. Depois de uma espécie de ultimatos e contra-ultimatos na praça pública, BE e PCP conseguiram fazer mais de quatro horas de debate sem encostar o Governo à parede nas matérias que lhes eram tão caras apenas há uns dias: as alterações às leis laborais e a contagem integral do tempo de serviço dos professores. Ninguém teve interesse em fazer do hemiciclo um campo de batalha. Sinal de que as negociações de bastidores estarão a correr bem e que as divergências poderão ser dirimidas em conjunto com o Orçamento? Foi, aliás, comovente como os partidos da chamada "geringonça" voltaram a aparecer tão bem alinhados num rewind do discurso anti-Governo de Passos de 2015.
Em segundo lugar, percebeu-se bem como a "geringonça" anda com o carro na reserva e está à beira de ficar sem gasolina depois das legislativas de 2019. Esta é a conclusão a tirar depois de ouvir o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, a pedir ao PS para não "recuar" ou fazer "marcha atrás" na reposição de direitos e investimentos públicos e o primeiro-ministro a responder-lhe que, segundo o Código da Estrada, "mesmo numa auto-estrada, a velocidade máxima deve ser ajustada às condições da via". PCP e BE não perdoam ao Governo ter ido além das metas orçamentais impostas por Bruxelas e os bloquistas chegaram mesmo a acusar ontem Costa de fazer letra morta do relatório sobre a sustentabilidade da dívida pública. Esta será a inevitável discussão entre os partidos de esquerda no pós-legislativas e, tal como Augusto Santos Silva vincou na entrevista ao PÚBLICO e à Renascença esta semana, o Governo tem que "agradecer" aos parceiros de esquerda por lhe terem permitido cumprir com todas as metas do Tratado Orçamental. Ora, dificilmente BE e PCP quererão ser colocados outra vez na posição de agradar a Angela Merkel, Valdis Dombrovskis e, já agora, Mário Centeno. Talvez tanto quanto o PS ambiciona uma maioria absoluta.
Por último, uma nota para a forma como António Costa se dirige a Catarina Martins e a Jerónimo de Sousa. Ontem, o primeiro-ministro disse, alto e bom som, que a "geringonça" foi feita primeiro entre o PS e o PCP, a que se "juntou" o BE. Não era um recado inocente, pois não?

OPINIÃO
Uma maioria absoluta para António Costa
O país descrito por António Costa é magnífico, sem dúvida alguma – o meu problema é não saber onde ele fica. Alguém me arranja um mapa que vá dar àquele Portugal?
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 14 de Julho de 2018
Ao ouvir António Costa discursar sobre o Estado da Nação, senti-me transportado para os Alpes suíços, cercado de bonança existencial, fragrâncias primaveris, brisa fresca, cabrinhas a balir e vacas voadoras. Só faltou aparecer Heidi, mais o seu avozinho. O país descrito por António Costa é magnífico, sem dúvida alguma – o meu problema é não saber onde ele fica. Alguém me arranja um mapa que vá dar àquele Portugal?
Esperem, eu talvez saiba que mapa é esse: é um mapa puramente retórico, uma narrativa de reversão da austeridade, que a realidade não confirma. Um mapa irreal mas suficientemente eficaz para sustentar a relação com o Bloco de Esquerda e com o PCP (e o debate desta sexta-feira, ao contrário de que muitos esperavam, não teve quaisquer arrufos entre parceiros e Governo), e também suficientemente eficaz para alimentar a patética conversa de que havia um senhor muito mau, chamado Passos Coelho, que andou quatro anos a empobrecer o país e a destruir o Estado Social, e que depois foi substituído por um senhor muito bom, António Costa, que anda há três anos a enriquecer o país e a reconstruir o Estado Social. Desculpem colocar isto desta forma, em linguagem infanto-juvenil, mas nada disto faz sentido para quem tiver idade mental superior a oito anos.
António Costa utilizou há dias a fábula da Carochinha e do João Ratão, para dizer que o PS não andava desesperado à procura de noivo para casar. Mas o PS não é a Carochinha. O PS é o João Ratão, que era guloso e caiu no caldeirão – para chegar ao poder, Costa assumiu uma solução de governo que tem vantagens políticas, no sentido em que responsabiliza uma extrema-esquerda que até 2015 levou 40 anos a dizer “não” sem jamais ter de assumir as consequências daquilo que propunha; mas que, ao mesmo tempo, amarra o país a um modelo de governação incapaz de assumir medidas reformistas, ou um qualquer programa estratégico que não passe por devolver dinheiro, carreiras ou tempo de serviço.
A solução encontrada pela dupla Costa/Centeno foi indiscutivelmente engenhosa. Mas a única coisa que ela, na prática, vai conseguir, é adiar a convergência de Portugal com a Europa por mais uma década. O governo mudou a austeridade de sítio – dos ordenados para as cativações; dos impostos directos para os impostos indirectos –, e a esse movimento chamou “fim de austeridade”. Não é só uma mentira – é uma narrativa ínvia com ressonâncias de verdade (muita gente recebe hoje, efectivamente, mais dinheiro do que em 2014), que envenena a clareza necessária para a tomada de opções políticas sérias, e turva a percepção dos portugueses sobre o real Estado do país e as suas dificuldades estruturais.
Repetir infindáveis vezes que “o país está melhor”, esquecendo que o país apenas se aproximou do PIB que existia em 2011, serve apenas para alimentar um sentimento de dever cumprido, quando Portugal não fez nada do que precisava para travar um inexorável processo de decadência económica em função da pressão demográfica. Em 2018, os portugueses pagam mais por um Estado pior, como já vai sendo tragicamente visível na sucessão de notícias sobre hospitais em colapso. Em 2019 pagarão ainda mais por um Estado ainda pior – e assim sucessivamente. Mas também lentamente. Nada disto é da noite para o dia. E é por isso que já aqui escrevi que a reeleição de António Costa não será um prémio, mas um castigo. Se o país está tão bem, ele que saboreie os frutos daquilo que anda a semear.    


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