sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Cai neve na natureza…


A nossa balada preferida. De uma neve que se acumula e esfria cada vez mais os corpos e as almas. De todo um povo, e não só das criancinhas  que nela enfiavam os pezinhos descalços, em compridos sulcos. Um nome a fixar: Ainda os exames de Português: o analfabetismo funcional» e «Epístola a Tiago e João:  Os Maias, a língua e a literatura para os jovens». Os temas já aqui têm sido abordados, mas são-no, pelo autor, de forma extremamente arguta e convincente. Não vou desenvolver, que a sua leitura é imprescindível, a sua argumentação magistral, tanto no que se refere à espessa camada da nossa cada vez mais crassa iliteracia, de um ensino desviado da leitura, culpa também da manipulação de tecnologias alienantes, de que a escola, afinal, não é a única responsável, mas também no que se refere à exclusão de leitura de uma obra perfeita nos seus vários quadrantes, “OS MAIAS”, e que uma democracia distraidamente - ou propositadamente - embrutecedora pretende eliminar do conhecimento dos alunos. Leiamos os textos de
I - OPINIÃO
Ainda os exames de Português: o analfabetismo funcional
Os nossos alunos debatem-se, sem terem consciência disso, com dificuldades de raciocínio discursivo muito sérias. Na forma e no conteúdo escrevem como falam: mal.
PÚBLICO, 24 de Julho de 2016
Este artigo é ainda a continuação do que escrevi anteriormente a propósito do que se lê no Exame Nacional de Português. Impõe-se, a meu ver, um debate na sociedade portuguesa sobre o que ensinar – com a presença de jovens vindos das mais diversas instituições universidades e escolas secundárias. Um debate de mais de um dia em que se reflictam variáveis diversas. Qual a natureza do processo ensino-aprendizagem, quais são os desígnios educativos da Escola em Portugal (formar para os cursos superiores? Importa reflectir, muito em particular, sobre a disciplina de Português, axial porque determina as competências básicas no início do percurso educativo, essencial também no que tange à tão desejada inter e transdisciplinaridade dos currículos. Esse debate deve ser feito com visibilidade, mas não segundo o formato televisivo do talk-show e, já agora, conduzido por quem domine o assunto e pense sobre os problemas da educação. O assunto é grave e sobriedade exige-se.
Questionemo-nos sobre o sentido do “Ranking das escolas” (que nome!!), mas fundamentalmente sobre a igualdade de oportunidades dos nossos jovens. É de justiça social e de democracia que falamos quando pensamos o que a educação. A que cultura acedem os nossos alunos senão à cultura inculta do hip-hop, à indústria pornográfica via internet? Que modelos seguem senão os que lhes são facultados pelo futebol e o humorismo mais bestial? Terão todos os alunos o mesmo acesso aos bens culturais (o livro é o parente pobre dos meios de comunicação, preferindo-se o telemóvel, o google e quejandos...) que lhes permitam ler e escrever com conhecimento ou ter curiosidade científica? Dos bancos das escolas aos das universidades que mentalidade se tem vindo a impôr senão a das praxes, a das “viagens de finalistas” (do quê? Finaliza-se o quê?) regadas a álcool, boçalidade e drogas? Que comportamentos disruptivos caracterizam o quotidiano das escolas? Quais as razões do insucesso nas avaliações? O que se esconde por detrás do bulying? Qual o fundo emocional da apatia dos alunos face ao saber? Que valores legitimam o oportunismo (a vulgarização da cábula e da balda às aulas)? Que responsabilidades cabem aos professores, aos pais, aos demais agentes da educação, incluindo sindicatos? Onde iremos parar com a politização crescente de um sector que deveria ser supra-partidário?
Na vertigem em que vivemos, rodeados por uma violência generalizada, como pode a Escola ser o reduto do humanismo e da sensibilidade numa Europa que fez da amnésia o seu único programa educativo? No caso de uma disciplina como a de Português, transversal a todas as aprendizagens, impõe-se reflectir com seriedade e agir com decisão: há leituras obrigatórias que nenhum professor pode ignorar para se preparar enquanto docente e há práticas didácticas que devem ser utilizadas com bom senso (o recurso às novas tecnologias não pode conduzir ao esquecimento ou secundarização dos textos, sua análise e comentário orais e escritos). Há que pôr fim à burocratização da profissão docente, libertando os professores da carga de reuniões sobre “estratégias pedagógicas” (que pedagogia existe sem conhecimento do que se publica e escreve nessa área: não terá Juan Carlos Tedesco razão ao falar da inoperância do sistema?). Escrevi sobre o Exame Nacional, elenquei alguns erros mais frequentes. Sirva o presente artigo como explanação do que anteriormente veio a lume.
Os nossos alunos debatem-se, sem terem consciência disso, com dificuldades de raciocínio discursivo muito sérias. Na forma e no conteúdo escrevem como falam: mal. Exemplos: ausência de preposição “sobre” (e a confusão entre “sob” e “sobre”) em frases do género “O sujeito reflecte [sobre] o efeito da passagem do tempo” (Questão 4 do Grupo I); a ausência do termo “verso” em frases como “No [verso] “qualquer grande esperança é grande engano””; a colocação de hífen em verbos com terminação no presente do indicativo no plural (“le-mos”, “sabe-mos”!!); a confusão entre advérbios de lugar e de tempo: escrevem os alunos “onde” referindo-se a noções de tempo (“no Salazarismo onde”), e o advérbio de tempo “quando” referindo-se a noções de espaço; a contínua confusão entre os verbos “mostrar” e “demonstrar”, sem se perceber que a linguagem poética não demonstra, sugere e que são erros expressões como “o verso demonstra”, “a metáfora demonstra” ou o consabido lugar-comum: “o texto fala”.
Não esqueçamos também redundâncias do tipo “Matilde chorava lágrimas” (no texto não se aludia a choro algum), bem como o uso abusivo de locuções prepositivas como “de algum modo” ou “sendo que”, ou ainda articuladores que na lógica frásica complicam, não esclarecem. Querendo corroborar uma ideia anterior, o aluno interliga orações com conectores adversativos, por exemplo. O uso equívoco do particípio passado e de verbos cuja semântica não se adequa ao que se pretende escrever: “As antíteses são causa do desgosto do que lhe foi causado”, além das frequentes perífrases e a total deriva ortográfica que mostra à saciedade os malefícios do Acordo que nos foi imposto. Acrescente-se ainda o permanente vício dos demonstrativos “este”, “esta” e “deste” “desta”, os quais, nas frases que os alunos constroem, remetem para referentes errados ou mesmo para nenhum sujeito ou complemento na cadeia de referência. Leia-se: “No verso “este meu breve e vão discurso humano” o poeta refere-se ao fim próximo desta”.
O cenário é mau... Mas dizem que o exame foi “equilibrado” (que significa isso?) e até a inenarrável Edviges da APP terá anuído à sapiência dos fazedores do exame. O grupo de Gramática, lembro, inflacionou a avaliação das funções sintácticas: para que andaram, então, os alunos a estudar actos ilocutórios, modalidade verbal, classificação morfológica? E, no limite, mesmo que as estatísticas venham asseverar da melhoria das competências na disciplina de Português, sabemos todos – pelos programas televisivos, pelas declarações dos nossos políticos, pela inanidade dos argumentos dos que têm responsabilidades (a APP e quem a dirige, por exemplo) – que pensar e escrever com propriedade é coisa rara na escola portuguesa. Daí o debate a fazer e as decisões a tomar.
Professor e crítico literário

II - OPINIÃO
Epístola a Tiago e João: Os Maias, a língua e a literatura para os jovens
Não dar aos alunos a hipótese de ler a obra-prima de Eça de Queirós é impedir o acesso dos jovens a um monumento literário.
PÚBLICO, 14 de Agosto de 2018
Dirijo-me directamente ao ministro da Educação e ao secretário de Estado desta tutela, João Costa, de quem fui aluno nos idos de noventa na Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Não conhecendo o ministro Tiago Rodrigues, conheço e tenho estima por João Costa, professor que procurou fazer-nos aderir a uma disciplina muitas vezes árida que era Sintaxe e Semântica. Na senda das lições de Maria Francisca Xavier, docente dessa mesma área, e com quem tive aulas, aprendi, lendo de Lindley Cintra e Celso Cunha a Nova Gramática do Português Contemporâneo, que estudar a língua implica um saber profundo da História e da Literatura. Creio que o magistério de Óscar Lopes se fazia ainda sentir em algumas abordagens a documentos histórico-linguísticos de que nos aproximávamos. Lembrando estes mestres da língua, outros docentes (Teresa Brocardo ou António Emiliano) não esqueciam um facto simples: o interesse e a importância da análise gramatical não dispensa, antes exige, uma sensibilidade para a linguagem literária e, por essa via, uma forte consciência da História. De resto, Ferdinand de Saussure, pai da linguística, não foi, ele mesmo, um atento inquiridor da linguagem poética? Não se dedicou ele ao estudo das potencialidades da linguagem literária, na fase final do seu trabalho? Vítor Aguiar e Silva, não nos (não vos) elucida quanto à prioridade que o texto literário deve assumir na formação integral dos alunos? As teses sobre o ensino do Português, tais quais Aguiar e Silva as apresenta, tê-las-ão lido quem assim defende estas Aprendizagens Essenciais?
Tudo isto vem a propósito das recentes alterações aos programas na disciplina de Português, terreno sempre fértil para as derivas mais absurdas e que, quase sempre (e quase sempre quando o PS orienta as políticas de educação), embatem na realidade simples dos factos. Um desses factos é a média nacional atingida este ano, a qual mostra e demonstra que a presença da literatura em situações de exame ou teste de avaliação não impede a compreensão dos temas e problemas que um enunciado complexo coloca aos alunos. Mas a questão central nesta infeliz tomada de decisão relativamente à não obrigatoriedade de ler-se Os Maiasno 11.º ano (Cesário merecer-me-á uma reflexão outra, tão escandalosa que é a ausência de O Sentimento dum Ocidental nos currículos propostos com estas Aprendizagens Essenciais) tem outras implicações, a primeira das quais se prende com uma posição ideológica.
Não dar aos alunos a hipótese de ler a obra-prima de Eça de Queirós é impedir o acesso dos jovens a um monumento literário em que a língua portuguesa atinge um alto grau de expressão estética. Não é apenas a inovação (via Garrett) do discurso indirecto livre, não se trata apenas de ali podermos ler um modo de pensar e de agir das elites do nosso oitocentismo, de que Carlos e os seus são os representantes. Esta obra é relevante não só por nela a densidade psicológica das personagens e a estruturação das cenas ao longo da diegese nos convidarem à releitura das analepses e prolepses em função das quais a evolução dos tipos se dá. Para além desse desafio, há n’Os Maias outros aspectos de interesse. Há um universo de referências culturais sobre Lisboa (o Marrare, o Passeio Público, a Brasileira), Sintra (o pitoresco romântico que Byron celebrou, os hotéis que eram moda para quem aí descobria paixões várias), sobre a Literatura (a portuguesa, as alusões a nomes de poetas e romancistas franceses, ingleses e alemães), a Filosofia (Afonso lia o seu Guizot, o seu Voltaire, o seu Robespierre), a História e a Economia (em episódios ao longo do romance discute-se a banca, a dívida externa, Espanha, Portugal como protectorado inglês, Taine e Darwin, a Europa dos Impérios, Bismarck ou a situação da Coroa portuguesa, o rotativismo e a Regeneração, o fontismo...) essenciais para que o aluno que estuda Português compreenda que um texto literário o transporta, pela imaginação, para um mundo de possibilidades humanas, o qual, sendo pretérito, faz parte do nosso presente.
A história do incesto entre Carlos e Maria Eduarda, alegoricamente lida, dá-nos a chave para reflectirmos sobre a incestuosa história entre Portugal e as colónias (Maria, filha de Maria Monforte, “a negreira”), para além de colocar a Educação como tema e motivo que aponta para uma tese que nos diz, ainda hoje, respeito: “Carlos falhou na vida não por causa, mas apesar da educação”, como bem viu Jacinto do Prado Coelho. E, já agora, como não ver, no último capítulo do romance, o tema da descida aos infernos? Não interessará isto aos alunos? É que, apelando ao mito e ao símbolo, aquele regresso de Carlos, dez anos depois, a Lisboa, é um aviso para nós, portugueses do século XXI. Cristaliza-se aí tudo quanto não devemos ser: Carlos de nada se arrepende; repete mesmo que se envolveria de novo com a irmã e nem a sua fotografia final (o tipo de homem rico e que vive bem, mais gordo e entregue a banalidades) o impede de orgulhar-se de ser o onagrius baronius que Garrett, nas suas viagens, dava como caricatura do homem político português...
Ora, é disto, meus caros Tiago e João, que se trata: de insistir num erro (“a nossa fatalidade é a nossa história”, escreveu Antero, e Eça segue em Os Maias o raciocínio de Antero desenvolvido em Maio de 1871), provando à saciedade que falhamos não por causa, mas apesar da educação. É que não ler este livro, ou não ler Fernão Lopes ou certos passos da História Trágico-Marítima, bem como não ler essa epopeia crepuscular que é O Sentimento, de Cesário, é não só ideologicamente comprometedor, como é errado do ponto de vista pedagógico. Quando, anulando a literatura em nome de uma suposta cientificidade linguística, se apaga a memória e se dilui paulatinamente a História, o que temos é uma educação de massas no pior sentido. Um ensino público (ou privado) de qualidade faz-se com professores e alunos que sentem estar em pé de igualdade com outras realidades; faz-se com o reconhecimento de que a língua existe nos seus monumentos literários, sem cuja existência nenhum povo pode reconhecer-se na sua identidade. Um ensino para as massas deveria ser desígnio de um Governo socialista – mas este o que faz é mesmo educação massificada, traduzidas, essas Aprendizagens Essenciais, na ideia da negociação de conteúdos que conduzirão ao facilitismo e à superficialidade nas competências de leitura e escrita.
Na sátira de costumes que também é Os Maias diz-se, a dada altura, que a civilização nos fica curta nas mangas... Senhor ministro e senhor secretário de Estado, não vos parece que retirar esta obra de Eça, ou amputar a de Cesário, esquecer a de Fernão Lopes ou quaisquer outras do nosso cânone histórico-literário, é justamente impedir um bom ensino da língua e cercear a compreensão de métodos de análise científicos exigentes? Se para vós a ciência é sinónimo de aprendizagens essenciais e estas significam negociar para atingir o fácil, que ciência, que saber defendem? Só me lembro de Jacob Cohen... Há saber, diz ele...

3 Comentários:
Ricardo Cruz, 14.08.2018: Desde 2001 (homologação a 23 de maio de 2001) que o programa de Português de 11.º ano não obriga à leitura d' Os Maias. Tal como as Aprendizagens Essenciais (ainda em consulta pública) propõem agora, o programa determinava a abordagem de «um romance de Eça de Queirós». Nem mesmo com os desmandos de Nuno Crato a obra fora obrigatória, já que o programa (demasiado extenso, demasiado ambicioso e impossível de abordar de forma pedagogicamente aceitável) preconizava a abordagem d' Os Maias ou de A Ilustre Casa de Ramires. Por isso, honestamente, não sei qual é o drama. Os professores e os grupos disciplinares de Português são competentes e capazes de decidir. Certamente que Os Maias continuarão a ser a obra seleccionada na maioria das escolas.
Victor Gonçalves, Vila Franca de Xira 14.08.2018: Massificar sem descer o nível, eis o grande desafio. Que, tudo o indica, não foi tomado em conta por este Ministério da Educação. Mas a via fácil, numa relação proporcional, inclui e empobrece, inclui porque empobrece, é uma espécie de rolo compressor da mediocridade.
henrique Mota, Coimbra 14.08.2018: Excelente análise.

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