segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Igreja, essa desconhecida



Julgo que a Igreja Católica, mau grado as reservas que merece a muitos espíritos que se pretendem livres ou mesmo agnósticos, foi um elemento necessário para a orientação de populações, por vezes mesmo única fonte de contacto com uma formação moral e espiritual em países, como o nosso, a quem a acessibilidade cultural não contemplou todas as classes sociais. Os Seminários de formação teológica foram mesmo meios de projecção de rapazinhos aldeãos, destinados ao sacerdócio, e que um volte face posterior possibilitou outras escolhas de vida mais realizada quer espiritualmente, quer do ponto de vista familiar e social. O celibato sacerdotal, como imposição de uma Igreja que se pretende puritana e se revela apenas desumana, está certamente na origem de tantos desvios sacerdotais, há muito conhecidos e escondidos por trás dos convencionalismos mais ou menos hipócritas, de uma Instituição poderosa que se pretende impecável, na sua orientação, tendo como modelo um Cristo de absoluta perfeição. O artigo de Vicente Jorge Silva - Assombrados pelo sexo – traz à ribalta notícias badaladas, além das do foro presidencial nos EUA, as do foro católico sobre a gravidade da pedofilia no clero, há muito reconhecida e causa de escândalo actual na Irlanda, que coloca o Papa Francisco em palpos de aranha. Lembrei-me de reler o “Prólogo” de “Eurico, o Presbítero”, (desta vez em versão via Internet), que apresento, pela seriedade de um liberal convicto, pese embora os conceitos modelares românticos, defensores de um ideal espiritualizado da Mulher – “Mulher-Anjo”, nesses tempos não maculados ainda pelas liberdades e igualdades de “género” que a democracia descontroladamente advoga.
Eurico, o Presbítero/Prólogo
Para as almas, não sei se diga demasiadamente positivas, se de­masiadamente grosseiras, o celibato do sacerdócio não passa de uma condição, de uma fórmula social aplicada a certa classe de indi­víduos cuja existência ela modifica vantajosamente por um lado e desfavoravelmente por outro. A filosofia do celibato para os espíritos vulgares acaba aqui. Aos olhos dos que avaliam as coisas e os homens só pela sua utilidade social, essa espécie de insulação doméstica do sacerdote, essa indireta abjuração dos afetos mais puros e santos, os da família, é condenada por uns como contrária ao interesse das nações, como danosa em moral e em política, e defendida por outros como útil e moral. Deus me livre de debater matéria tantas vezes disputadas, tantas vezes exaurida pelos que sabem a ciência do mundo e pelos que sabem a ciência do céu! Eu, por minha parte, fraco argumentador, só tenho pensado no celibato à luz do senti­mento e sob a influência da impressão singular que desde verdes anos fez em mim a ideia da irremediável solidão da alma a que a igreja condenou os seus ministros, espécie de amputação espiritual, em que para o sacerdote morre a esperança de completar a sua existência na terra. Suponde todos os contentamentos, todas as consolações que as imagens celestiais e a crença viva podem gerar, e achareis que estas não suprem o triste vácuo da soledade do coração. Dai às pai­xões todo o ardor que puderdes, aos prazeres mil vezes mais inten­sidade, aos sentidos a máxima energia e convertei o mundo em pa­raíso, mas tirai dele a mulher, e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão apenas o prelúdio do tédio. Muitas vezes, na verda­de, ela desce, arrastada por nós, ao charco imundo da extrema de­pravação moral; muitíssimas mais, porém, nos salva de nós mesmos e, pelo afeto e entusiasmo, nos impele a quanto há bom e generoso. Quem, ao menos uma vez, não creu na existência dos anjos revelada nos profundos vestígios dessa existência impressos num coração de mulher? E por que não seria ela na escala da criação um anel da cadeia dos entes, presa, de um lado, à humanidade pela fraqueza e pela morte e, do outro, aos espíritos puros pelo amor e pelo mistério? Por que não seria a mulher o intermédio entre o céu e a terra?
Mas, se isto assim é, ao sacerdote não foi dado compreendê‑lo; não lhe foi dado julgá‑lo pelos mil fatos que no‑lo têm dito a nós os que não juramos junto do altar repelir metade da nossa alma, quando a Providência no‑la fizesse encontrar na vida. Ao sacerdote cumpre aceitar esta por verdadeiro desterro: para ele o mundo deve passar desconsolado e triste, como se nos apresenta ao despovoarmo­‑lo daquelas por quem e para quem vivemos.
A história das agonias íntimas geradas pela luta desta situação excepcional do clero com as tendências naturais do homem seria bem dolorosa e variada, se as fases do coração tivessem os seus anais como os têm as gerações e os povos. A obra da lógica potente da imaginação que cria o romance seria bem grosseira e fria comparada com a terrível realidade histórica de uma alma devorada pela solidão do sacerdócio.
Essa crónica de amarguras procurei‑a já pelos mosteiros quando eles desabavam no meio das nossas transformações políticas. Era um buscar insensato. Nem nos códices iluminados da Idade Média, nem nos pálidos pergaminhos dos arquivos monásticos estava ela. Debaixo das lajes que cobriam os sepulcros claustrais havia, por certo, muitos que a sabiam; mas as sepulturas dos monges achei‑as mudas. Alguns fragmentos avulsos que nas minhas indagações encontrei eram apenas frases soltas e obscuras da história que eu buscava debalde; debalde, porque à pobre vítima, quer voluntária, quer forçada ao sacrifício, não era lícito o gemer, nem dizer aos vindoruros: — "Sabei quanto eu padeci!"
E, por isso mesmo que sobre ela pesava o mistério, a imaginação vinha aí para suprir a história. Da ideia do celibato religioso, das suas consequências forçosas e dos raros vestígios que destas achei nas tradições monásticas nasceu o presente livro.
Desde o palácio até a taberna e o prostíbulo, desde o mais esplên­dido viver até o vegetar do vulgacho mais rude, todos os lugares e todas as condições têm tido o seu romancista. Deixai que o mais obscuro de todos seja o do clero. Pouco perdereis com isso.
O Monasticon é uma intuição quase profética do passado, às vezes intuição mais dificultosa que a do futuro.
Sabeis qual seja o valor da palavra monge na sua origem remota, na sua forma primitiva? É o de ‑ só e triste.
Por isso na minha concepção complexa, cujos limites não sei de antemão assinalar, dei cabida à crónica‑poema, lenda ou o que quer que seja do presbítero godo: dei‑lha, também, porque o pensamento dela foi despertado pela narrativa de certo manuscrito gótico, esfuma­do e gasto do roçar dos séculos, que outrora pertenceu a um antigo mosteiro do Minho.
O Monge de Cister, que deve seguir‑se a Eurico, teve, proxima­mente, a mesma origem.
Ajuda — novembro de 1843.
OPINIÃO
Assombrados pelo sexo
A assombração do sexo e o seu recalcamento continuam a suscitar manifestações de hipocrisia e negação no seio do poder político e religioso.
VICENTE JORGE SILVA
PÚBLICO, 26 de Agosto de 2018
Eis um tema tão velho como o mundo e que regressa regularmente ao primeiro plano das notícias, envolvendo agora os protagonistas mais desencontrados, como o Papa Francisco e Donald Trump. Mas há coincidências sintomáticas. Na sua visita à Irlanda país conhecido pelo seu catolicismo atávico que, nos últimos anos, conheceu uma verdadeira revolução em matéria de costumes, ao referendar o direito ao aborto depois de reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo e tendo actualmente como primeiro-ministro um homossexual assumido – o Papa foi de novo confrontado com o fantasma que mais o tem perseguido nos últimos tempos e está já na origem do maior abalo sofrido pelo seu pontificado: o da pedofilia na Igreja. Ora, à Irlanda, para além dos casos internos, chegam sobretudo, pelo seu número e afinidades de raiz nacional, os ecos transatlânticos dos numerosos (e longamente recalcados) escândalos pedófilos pondo em causa a hierarquia católica da Pensilvânia, na sequência do que acontecera recentemente no Chile. Por duas vezes, Francisco vê-se empurrado contra a parede. O velho puritanismo católico irlandês cruza-se culturalmente com o puritanismo protestante americano nos casos que agora ameaçam inesperadamente a presidência Trump – para além da ingerência russa na campanha eleitoral – como outrora o caso de Mónica Lewinsky abalara a presidência Clinton. Aqui não se trata, é claro, de casos de pedofilia mas de mero tráfico sexual que envolvem antigos colaboradores de Trump, acusados de terem pago a duas mulheres para silenciarem as suas antigas relações com o Presidente. Colaboradores esses dispostos a depor perante a Justiça em troca de um aligeiramento das suas penas noutros negócios escuros, o que tem provocado um nervosismo crescente de Trump face à hipótese – embora ainda remota – de um impeachment.
A  assombração do sexo e o seu recalcamento continuam a suscitar manifestações de hipocrisia e negação no seio do poder político e religioso. O que não espanta no caso de Trump – conhecida que é a baixa dimensão moral da personagem – mas se mostra chocante no caso de Francisco – protagonista de um esforço verdadeiramente notável de humanização da Igreja Católica. De facto, o Papa levou anos a admitir aquilo que era já conhecido há décadas, começando mesmo por negar as evidências clamorosas do que acontecera no Chile (provocando assim uma revolta entre a comunidade católica chilena e, posteriormente, a demissão em massa dos bispos que haviam persistido em ocultar o escândalo). Só que não chega de todo penitenciar-se, tendo em conta a insuportável gravidade dos crimes pedófilos cometidos por clérigos em flagrante abuso do seu poder sobre vítimas inocentes e indefesas. E não chega, sobretudo se pensarmos que esses actos nauseabundos beneficiaram mesmo da cumplicidade directa ou indirecta de membros do governo da Igreja, essa nefasta Cúria Romana que Francisco não soube e/ou não pôde renovar de alto a baixo. Nunca como hoje o divórcio entre os crentes e o poder eclesiástico foi tão profundo, a ponto de assistirmos, apesar do esforço redentor de Francisco, à iminência de um sismo nas profundezas da Igreja.
Já não é possível mascarar por mais tempo a evidência de que a pedofilia constitui a expressão mais perversa da longa relação doentia da Igreja Católica com o sexo – e que, como tem sido lembrado por tantas vozes, o celibato dos padres constitui um dos factores decisivos dessa doença. Daí que a revitalização e a própria sobrevivência da Igreja dependam tão fortemente da sua libertação desse fantasma. Tal como a transparência e o carácter igualitário dos relacionamentos sexuais – sem tráficos, submissões ou quaisquer comércios sórdidos – são também fundamentais para a saúde das sociedades e o exercício do poder político.


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