quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O Brasil é um país grande



Jorge de Sena deve ter sentido na pele, quando viveu no Brasil, antes de atingir a notoriedade, um certo desprezo pelo povo português, que as telenovelas brasileiras bem demonstravam – o homem português de bigode e chapéu, a mulher, creio que de xaile e tamancos, mas tudo isso é passado, não tenho visto telenovelas e por isso não sei o que por lá se passa agora. O artigo de Osvaldo Manuel Silvestre, sobre a relação literária de J. de Sena com o Brasil, revela uma certa contundência de opinião, da parte de Sena, mas preferia que citasse um ou outro exemplo, para se perceber melhor a mensagem de OMS..
JORGE DE SENA E O BRASIL
OSVALDO MANUEL SILVESTRE Ensaísta        PÚBLICO, 8/11/19
Jorge de Sena gostava de recordar que o seu primeiro contacto físico com o Brasil ocorrera na juventude, mais exactamente em 1937-38, na qualidade de primeiro cadete da Marinha, em viagem de instrução no navio-escola Sagres. Para alguém sempre tão empenhado na arqueologia dos processos histórico-culturais, o que o fazia traçar vastos e minuciosos panoramas em que cada camada se sedimenta sobre a anterior sem quase nunca resolver os conflitos de que se fazem história e cultura, o episódio juvenil funcionava como uma espécie de prova de que o contacto de Sena com o Brasil não nascera em 1959, ano em que se muda, com armas e bagagens, para esse país, mas mais de 20 anos antes.
Ou seja, a mudança não fora um evento circunstancialmente motivado, havendo pelo contrário toda uma história pessoal que longamente a preparara ou mesmo pré-figurara. No texto inacabado que prefacia o volume de Estudos de Cultura e Literatura Brasileira (1988), Sena evoca o episódio mas faz recuar à infância a sua ligação literária ao Brasil: “Quando era criança e já devorava livros, havia em estante de família livros brasileiros, publicados em Portugal no séc. XIX. Mas um primeiro contacto com a literatura brasileira, menos romântica e mais moderna, tive-o quando adolescente cheguei ao Brasil, e nele estive, cadete de Marinha, por escassas semanas em Santos e S. Paulo”. Nesse mesmo texto, Sena recorda que nos anos 30 e 40, “a literatura brasileira moderna, e muito em especial a poesia, teve para os poetas portugueses uma importância enorme, e poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Ribeiro Couto, etc. eram a imagem complementar de uma modernidade que, em Portugal, se manifestara quase só em Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros, cujas obras, até aos fins dos anos 30 e princípios de 40, eram mais mitológicas e menos acessíveis do que a daqueles poetas brasileiros”. Esta questão regressará em vários dos textos que Sena dedicará aos grandes modernistas brasileiros, sobretudo Cecília Meireles e Manuel Bandeira, sugerindo que a formação dos poetas portugueses da geração de Sena, numa altura em que Pessoa mal começava a surgir em livro, se ficara a dever pelo menos em igual grau aos poetas brasileiros modernos (para não falar já dos romancistas portugueses de 30 e 40, cuja dívida aos romancistas “nordestinos” seria ainda superior — a ponto de, como numa das suas típicas charges dirá, em texto sobre Manuel Bandeira, “os camponeses do lusitano Alentejo fala[re]m como bahianos”). Num acrescento significativo, Sena dirá que os modernistas brasileiros “foram um exemplo de libertação poética, na nossa própria língua, de um valor inestimável”.
A viagem de 1937-38 ganha, assim, uma redobrada pertinência, pois coloca o jovem Sena em S. Paulo e no arco temporal (as décadas de 20 e 30) emblematicamente aberto pelo movimento modernista brasileiro com a Semana de Arte Moderna de 1922, na mesma capital paulista. O episódio “brasileiro” seguinte, na vida e obra de Sena, como o próprio o apresentou, terá sido a edição, por Cecília Meireles, da (excepcional) antologia Poetas Novos de Portugal, em 1944, que incluiu poemas do então muito jovem poeta Jorge de Sena, na altura com apenas o seu livro de estreia, Perseguição (1942), no currículo. Em texto de 1964, por ocasião da morte de Cecília, Sena confessaria a sua “dívida de gratidão” para com a antologiadora, poeta que gozara em Portugal de um grande prestígio e influência, sendo “sempre equiparada a grandes nomes como Pessoa ou Rilke, quando talvez o Brasil não reconhecesse todo, nela, o grande poeta que tinha”. Esta ressalva é fundamental para percebermos que se o Brasil, desde o episódio juvenil de 1937-38, permite a Sena a experiência desdobrada do cosmopolitismo modernista, dentro do mesmo idioma, a verdade é que as suas portas de entrada nesse modernismo, Cecília e Bandeira, representam nele uma variante minoritária, ou renitente, não apenas por se tratar dos chamados “modernistas do Rio de Janeiro”, quando o foco do movimento fora S. Paulo, mas porque uma e outro resistem ao anti-portuguesismo que define, do plano da língua ao da literatura e da cultura, o modernismo brasileiro de 22, basicamente paulista. O tópico, nos seus vários planos, percorrerá toda a obra de Sena, com particular ênfase após a deslocação para o Brasil. No mais importante texto que dedicou a Bandeira, “O Manuel Bandeira que eu conheci e que admiro”, Sena chamará a atenção para que “o caso da língua, há que analisá-lo do lado português”, uma vez que também os modernistas lusos tiveram de enfrentar “A tirania do gramatiquismo académico, do pernosticismo da frase, da rareza do vocábulo, etc.”, pondo assim em causa um dos cavalos de batalha do modernismo brasileiro.
Os estudos e ensaios que, a partir de 1963, dedica ao “mundo luso-brasileiro”, escritos no Brasil ou já nos EUA, exploram todos os problemas e equívocos da relação luso-brasileira (para a correspondência Sena reservou o desgaste psicológico, mas também académico, de tudo isso ao longo dos anos). Recorrendo a um repertório histórico, cultural e literário esmagador, Sena elabora longamente sobre a natureza da relação entre os dois países e as duas culturas, elegendo uma heurística comparatista pois, como justifica no final do grande ensaio “Literatura Brasileira Comparada com as Literaturas da Hispano-América”, “Comparar é o único meio de conhecer sem correr o risco de acreditar demasiado nos outros e em nós mesmos”. Este ponto é decisivo e deve ser lido em regime alargado, pois sempre que Sena se exprime sobre a literatura brasileira fá-lo num quadro comparatista cujo outro pólo é, à partida, a literatura portuguesa, embora não apenas. Ao fazê-lo, Sena põe em causa o devir da própria literatura brasileira, que se autonomiza progressivamente da portuguesa, desde o romantismo, até que, com o modernismo, a silencia enquanto parceiro de um diálogo declarado extinto. Por outras palavras, para escritores e críticos brasileiros, a literatura portuguesa passa a ser absorvida pela brasileira “não como portuguesa, mas como ante-brasileira”, o que significa que a literatura portuguesa só é pertinente até ao advento da independência do Brasil, em 1822 (Portugal, dirá Sena, “só interessa até ao ponto em que é pré-história do Brasil”), uma independência que o romantismo desejaria transpor também para o plano de uma independência literária, então mais suposta que efectiva. Sena descreve repetidamente uma situação em que o Brasil funciona em Portugal como um mito, em articulação estreita com o do “mundo que o português criou”, e Portugal funciona no Brasil como o colonizador responsável por uma série de erros
O problema da literatura no Brasil, dirá Sena, é “o medo que os brasileiros têm de que a sua literatura possa não ser suficientemente brasileira”, razão pela qual tendem a expulsar a literatura portuguesa de qualquer tipo de relação com ela, tornando-a, “paradoxalmente, mais estrangeira do que [as outras literaturas estrangeiras]”. A esta “obsessão da brasilidade” da crítica brasileira, Sena contraporá uma concepção não-romântica de literatura, já que, a seu ver, o Romantismo foi inventado “para colocar dificuldades no caminho de um claro entendimento do carácter internacional da literatura em si mesma”. Como pano de fundo deste combate crítico, Sena descreve repetidamente uma situação em que o Brasil funciona em Portugal como um mito, em articulação estreita com o do “mundo que o português criou”, e Portugal funciona no Brasil como o colonizador responsável por uma série de erros (a não criação de universidades, por exemplo) e desastres que não terminam porque, como não se esquece de notar, as classes dirigentes brasileiras desenvolveram desde a independência uma arte particular, que consiste “em mudar as coisas para que elas continuem a ser como eram dantes”.
Uma e outra vez, Sena proporá programas de acção que aproximem os dois países, combatendo, desde a escola, o mútuo preconceito e desconhecimento. Não temos qualquer razão para duvidar das suas muitas declarações de amor ao Brasil, à cultura brasileira e aos brasileiros, ainda que entremeadas de constatações como “O Brasil é um país muito estranho”, tanto mais que o Brasil na obra de Sena não se confina à sua abordagem temática ou explícita: a produtividade de Sena na fase brasileira é assombrosa e percorre todas as áreas do seu trabalho literário ou ensaístico, neste último caso justificada pela dedicação exclusiva ao trabalho académico que a universidade brasileira lhe permitiu. Mas o seu brasilianismo, que se manifesta plena e livremente quando se muda para os EUA, tanto mais que só aí começa a leccionar literatura brasileira, nunca abandona um comparatismo que é, em si mesmo, uma crítica ao fundamento nacionalista da cultura e literatura brasileira, desmistificando-o e evidenciando todos os nós cegos que ele gera ou deixa para trás, encolhendo os ombros. Como se Jorge de Sena revivesse in mente a experiência daquele jovem modernista, português e anglófilo, que em 1937-38 visita a capital em que o modernismo brasileiro se prepara para proclamar a chegada da Idade de Ouro da literatura brasileira – para achar que, afinal, algo ali não batia certo.
(Osvaldo Manuel Silvestre é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tem dividido o seu trabalho pela área de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa. Dirige actualmente o Instituto de Estudos Brasileiros da sua Faculdade)

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