Tais as histórias de fadas, de bruxedos ou de um mundo anímico em que os animais falavam e a natureza toda ela colaborava a favor ou contra os heróis ou as heroínas das acções, de proezas inextricáveis ou inconcebíveis, no conceito mais realista do universo adulto. Assim eram os contos da infância, que Perrault e os irmãos Grimm tão bem recriaram, partindo dos mitos da Antiguidade, como Eros e Psique, reproduzido no “Burro de Ouro” de Apuleio, ou o conto bretão “Tristão e Iseu” e outras lendas medievais da Távola Redonda, já aproveitadas na própria dramaturgia shakespeareana e que se projectariam no cinema animado de Walt Disney e cineastas afins. Fabulários, bestiários, mergulham longe as suas raízes, nos mitos da História Antiga, na Bíblia, nos poemas homéricos... Também as hagiografias dão a conhecer vidas milagrosas de santos, de tentações, sofrimentos e êxtases, em que o Diabo tem papel de relevo, como já manifestara com Cristo, segundo o Novo Testamento. O próprio “Don Juan” terá contas a prestar ao Diabo, devido às suas heresias e aos atropelos constantes para com o belo sexo...
O estranho é que este universo de incredibilidade seja aproveitado pelos escritores mais realistas, como diversão ou como libertação das frustrações em que uma literatura mais empenhada os mergulhara – Eça (1845/1900), n’“O Mandarim” (1880) ou nas suas “Lendas de Santos” – ou possibilitarem um maior entrosamento com outros universos culturais, como romances de tese – v.g. “O Retrato” (1841) de Nikolai Gogol (1809/1852) ou “O Retrato de Dorian Gray” (1890/91) de Óscar Wilde (1854/1900).
As Lendas de "S. Cristóvão", de "S. Frei Gil", de "Santo Onofre", de Eça de Queirós terão em Flaubert – “Lenda de S. Julião o Hospitaleiro”, “Lenda de Santo Antão” - a fonte principal de inspiração: S. Cristóvão e a gradual percepção para a luz, S. Frei Gil e a busca do saber com função altruísta, com vitória sobre o Demónio, à maneira do "Doutor Fausto", Santo Onofre e o misticismo interior na procura ascética mas egoísta da santidade, todos eles representativos de facetas do espírito e da condição humanas.
Quanto a “O Mandarim" parte, como os seus congéneres russo (ucraniano) e inglês (irlandês), de uma situação de carência e ambição – de dinheiro, poder ou permanência de beleza e juventude – que obtêm – no caso de Teodoro, (o enguiço, por alcunha de Madame Augusta Marques, a sua locatária, por ser exageradamente supersticioso), pelo toque de uma campainha que matará o pobre Ti-Chin-Fu, mandarim milionário, segundo informação de um livro comprado na Feira da Ladra, no capítulo “Brecha das Almas”; no caso de Tchartkov, pela compra de um retrato de uma estranha figura maléfica de velho, cuja moldura encerra mil moedas de ouro, providenciais ao endividado pintor; no caso de Dorian Gray, pela formulação de um desejo de manutenção, em troca da sua alma, da beleza e juventude contidas no seu retrato, pintado pelo seu amigo, o pintor Basil Hallword.
N’ “O Mandarim”, (dividido em seis capítulos), o tentador é representado, humoristicamente, por uma figura vestida de negro e com o guarda-chuva debaixo do braço, que acicata o desejo de Teodoro lembrando a injustiça da sua condição de amanuense pelintra, impossibilitado de aceder aos bens materiais fornecidos pela fortuna, incitando-o a tocar a campainha, que lhe facultará tudo isso. Ao sucesso que lhe advém das riquezas, seguem-se as lutas de consciência, o cruel arrependimento manifesto inicialmente numa devoção furiosa, bem aproveitada pela Igreja, que lhe sugere, blandiciosamente, a oferta de dádivas e mesmo a construção de uma catedral; seguidamente, vem o desejo de evasão, com viagens pela Europa, Egipto, a procura inútil e desastrosa, pela China, da família do mandarim, para a compensar e legitimar a sua herança, o retorno à pátria, sempre perseguido pela figura do mandarim, o desprezo social pelo falhado honesto que se dispõe a desprezar a riqueza e a retomar o emprego e a pensão da D. Augusta, a reviravolta do mesmo, assumindo novamente as suas riquezas e o seu prestígio social, o que lhe provoca um “desprezo pela Humanidade tão largo – que se estendeu ao Deus que a criou” - mas com o mandarim sempre acompanhando-o com o seu papagaio, e o apelo inútil ao homem vestido de preto para que ressuscite o mandarim e o livre da fortuna, e com ela, do sofrimento do remorso.
A filosofia da honestidade e do comportamento segundo os valores da moral, são a conclusão irónica do conto, logo desmistificado sardonicamente com a atribuição, a todo o homem, de um gesto igual ao seu, de, em iguais circunstâncias, tocar a campainha para matar o mandarim, que assume, assim, a dimensão simbólica, embora à escala humana, do Bem obtido através do Mal, o Bem representando o poder da riqueza, o Mal, a corrupção e o crime. Daí, a perfeita actualidade do conto. Eis o remate: “Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhões ao demónio; pertencem-lhe; ele que os reclame e os reparta... E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: “Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o mandarim!” E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!”
N’ “O Retrato” de Gogol (dividido em duas partes), é o próprio retrato feito por um pintor desconhecido (só na II Parte ele será identificado) que exerce um poder maléfico sobre o carácter e a vida do seu possuidor, que, cada vez mais ambicioso de fama e riqueza, descura a sua técnica pictural, para produzir quadros convencionais, sem alma, fechando-se malevolamente ao mundo, invejando os verdadeiros pintores, terminando no maior sofrimento, após ter gasto a sua fortuna na compra de obras primas de pintura, não para as contemplar mas para as destruir, em violências de louco, movido pela inveja que nele despertara um quadro de um ex-colega de ofício. Para além de especificar, pois, como características principais para a criação artística, o trabalho e o estudo, o conto desenvolve, assim, uma tese sobre o valor da fama em contradição com a autenticidade do génio artístico. Eis alguns passos comprovativos:
“Tchartkov tornou-se um pintor da moda em todos os sentidos. Começou a ir a almoços, a acompanhar senhoras às galerias e até em passeios, vestia-se de forma elegante e afirmava publicamente que o pintor devia pertencer à alta sociedade, que era preciso manter a sua dignidade, que os pintores se vestiam como sapateiros, não sabiam conduzir-se adequadamente, não respeitavam o bom-tom e não tinham qualquer instrução. Em sua casa e no estúdio, impôs uma limpeza incrível, contratou dois criados magníficos, tomou aprendizes janotas, mudava de roupa várias vezes ao dia, frisava o cabelo, dedicava-se a aperfeiçoar várias formas de receber os visitantes, ocupava-se a embelezar por todos os meios possíveis a sua aparência, para causar boa impressão às senhoras; em suma, em pouco tempo tornara-se de todo impossível reconhecer nele o modesto pintor que trabalhara outrora no anonimato no seu cubículo na ilha Vassilievski. Exprimia-se agora com palavras bruscas sobre os pintores e a arte: assegurava que já se atribuía demasiado mérito aos pintores antigos, que todos eles, antes de Rafael, não pintavam figuras mas arenques, que era apenas na imaginação dos observadores que existia a ideia de se ver neles algo sagrado; que até o próprio Rafael não pintava assim tão bem e que a fama de muitas das suas obras perdurava apenas por tradição; que Miguel Ângelo era um fanfarrão, porque queria apenas exibir os seus conhecimentos de anatomia, que não havia nele nenhuma graciosidade e que o verdadeiro esplendor, força do pincel e colorido era preciso buscá-los agora, no presente século. Aqui, naturalmente, como que por acaso, começava a falar de si: “... A pessoa que mergulha durante meses num quadro, na minha opinião, é um artesão, e não um pintor... este retrato pintei-o em dois dias....” “... A sua glória era cada vez maior, os trabalhos e encomendas aumentavam. Já começavam a aborrecê-lo sempre os mesmos retratos e rostos, cujas poses e posturas já sabia de cor. Já os pintava sem grande vontade, esboçando apenas a cabeça de qualquer maneira, e dando o resto aos aprendizes para acabar... A vida de distracções e a alta sociedade, onde procurava desempenhar o papel de um homem do mundo, tudo isso o levara para longe do trabalho e do pensamento. O seu pincel tornara-se frio e embotado, encerrara-se insensivelmente em formas rotineiras, fixas, há muito gastas... E aqueles que tinham conhecido Tchartkov noutros tempos não conseguiam compreender como podia ter-se evaporado o seu talento... Contudo, o enleado pintor não ouvia estes comentários.... Nos jornais já lia os adjectivos “o nosso respeitável Andrei Petrovitch” e “o nosso emérito Andrei Petrovitch”. Já começava a ser convidado para cargos honoríficos...” “Em suma, a sua vida já chegara àquela idade em que tudo o que respirava entusiasmo se encolhe no homem... em que todos os sentimentos embotados se tornam mais sensíveis ao som do ouro... Assim, todos os sentimentos e impulsos de Tchartkov se dirigiam para o ouro...Os maços de notas cresciam nas suas arcas... transformou-se num avaro sem motivo, que poupava sem qualquer finalidade, pronto para se tornar numa daquelas estranhas criaturas tão frequentes no nosso mundo insensível, que são olhadas com horror pelo homem que tem vida e coração...
N’ “O Retrato de Dorian Gray” (dividido em vinte capítulos), será Lord Henry Wotton que lançará o veneno no espírito do jovem Dorian, por meio dos seus paradoxos e epigramas destrutivos da moral convencional deste, que se regia pelos ditames da burguesia inglesa. Tais discursos epigramáticos, tão comuns também nas peças de teatro de Óscar Wilde, remetem-nos para a graça maliciosa de João da Ega, personagem d’ “Os Maias”, de espírito cintilante e acutilante, sem criar a sensação da sobrecarga que impregna os conceitos filosóficos de Lord Henry, que, todavia, exprimem uma admirável honestidade de pensamento humanístico e liberdade na sua expressão. Citamos alguns exemplos, do I e II capítulos: “A naturalidade não passa de uma pose, é a pose mais irritante que conheço”, em resposta a Basil, que o acusara do seu “cinismo de pose”; “Creio que sou capaz de acreditar em tudo, desde que seja perfeitamente inacreditável”; “A consciência e a cobardia são uma e a mesma coisa, Basil”; “Todo o cuidado é pouco na escolha dos nossos inimigos”; “As pessoas fiéis só conhecem o lado trivial do amor. São os infiéis que conhecem as tragédias do amor”; “Só as pessoas frívolas é que não julgam pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível”; “A única diferença entre um capricho e uma paixão eterna é que o capricho dura mais tempo;” “Eu adoro os prazeres simples. São o último refúgio das pessoas complexas.” “O pecado é na verdade o único elemento colorido que nos resta na vida moderna”; “Há algo de extremamente mórbido na simpatia moderna pelo sofrimento. Devíamos simpatizar com a cor, a beleza, a alegria da vida.”... Este último conceito, do capítulo III, aponta bem para a filosofia de fruição da vida, que está na base da estrutura do enredo narrativo, que, pelo elogio da juventude e da beleza do corpo, deforma o espírito do jovem retratado – Dorian Gray - levando-o a ambicionar para si a permanência de tal beleza e tal juventude manifestas no retrato, do qual tem ciúmes, em troca da sua alma.
Outros aforismos, de conteúdo cínico, constituem, igualmente, expressões de uma concisão e elegância de pensamento de que não resistimos a evidenciar alguns: “Os filhos começam por amar os pais; ao crescerem, tendem a julgá-los; por vezes, perdoam-lhes.” (c. V). Segundo Lord Henry, (C. VI), “a verdadeira razão por que todos nós pensamos tão bem dos outros é que todos temos medo de nós próprios. A base do optimismo é o puro terror. Julgamos que somos generosos porque atribuímos ao nosso vizinho a posse daquelas virtudes que pensamos poderem vir a beneficiar-nos. Louvamos o banqueiro para podermos exceder o nosso crédito, e encontramos bons princípios no assaltante na esperança de que nos poupe as carteiras.” Todo o capítulo VI , em que os três amigos – Basil, Henry e Dorian – discutem os inocentes amores deste último, é, aliás, um repositório de tiradas cínicas de lord Henry, contra as quais se opõe, em vão, o sensato Basil.
Quanto à sequência da história queirosiana, ela mostra-nos um Teodoro não mais enguiço da Madame Marques, nem bacharel suspiroso pelas regalias da vida, mas rico e poderoso, perante quem a sociedade se prostra subservientemente, começando, todavia, a ter pavorosas lutas de conciência, por se gozar de um bem que usurpara, e a ser perseguido pela figura bojuda do mandarim fulminado, espojado na sua cama, vestido de seda amarela e com um papagaio de papel nos braços. Na de Dorian Gray, a descoberta, por este, de que os seus erros e perversões vão transformando o retrato da autoria de Basil, enquanto o seu modelo permanece belo e jovem, como desejara. N’ “O Retrato”, também Tchartkov viverá na magnificência e no apreço de todos os concidadãos que dantes o desconheciam, continuando a pintar para a alta sociedade, numa pintura cada vez mais desligada do estudo e do realismo em que dantes tanto se empenhara, indiferente a modas e procurando somente a originalidade.
A revelação da verdadeira pintura, através de um quadro de um ex-companheiro de arte, “despertou toda a sua essência viva” que, de repente, o faz desejar voltar aos tempos em que buscava idêntica perfeição: “Via-se que, tudo o que o pintor fora beber ao mundo exterior interiorizara inicialmente na sua alma, o transformara num canto harmonioso e solene. Tornava-se evidente até aos olhos dos profanos o insuperável abismo que existia entre a criação e a simples cópia da natureza.” Todavia, as suas tentativas de atingir a qualidade que invejava no quadro do ex-amigo são goradas, por há muito se ter afastado, na pressa da fama e da fortuna, do trabalho aturado que tal arte subentendia. Ao olhar para o “retrato” causador do seu infortúnio actual, pela transformação que sofreu, quer desfazer-se dele. A fúria e a inveja pelo verdadeiro talento, leva-o a comprar todas as obras de arte autênticas, para as destruir raivosamente. E é nos paroxismos da loucura, cada vez mais frequentes, que morre na miséria.
Cada uma das obras propõe-se, pois, fazer crítica social relativamente aos respectivos países ou cidades: Gogol, num rigor de traço realista, revelando toda uma cidade capital – S. Petersburgo - de contrastes, entre as classes ricas e snobes e as mais miseráveis de condição difícil, em todo o caso não destituídas de interesses culturais (ao contrário do atraso cultural português, como tema frequentemente abordado por Eça, na sua aplicação, por exemplo, à “mesmice” apática de um quotidiano pátrio indelevelmente estagnado e repetitivo - n’ “Os Maias), pois a história inicia-se com uma lojinha de quadros e gravuras, estampas, visitada por observadores numerosos e curiosos, os mujiques “apontando o dedo”, os cavalheiros observando “com rostos graves”, “os moços de recados e jovens aprendizes” apontando “caricaturas, rindo e troçando uns dos outros; os velhos criados de capotes de frisa” olhando “apenas para terem com que pasmar; e as vendedeiras, jovens camponesas russas”, apressando-se, “por instinto a ver para que olha a multidão e escutar sobre o que se fala”.
É nessa lojinha que o pintor Tchartkov adquire o retrato de olhos maléficos que irá transformar a sua vida. Na segunda parte, de espaço cronológico anterior ao da primeira, (como justificação da existência e identificação do retrato), iniciada por um leilão de quadros, entre os quais se encontra o retrato que fez a fortuna e a desgraça do protagonista da primeira, Tchartkov, o narrador apresenta, contudo, um descritivo mais incisivo e pontuado sobre a sociedade russa e alguns dos seus costumes, do que na primeira parte, mais debruçada sobre a evolução psicológica do protagonista, derradeira vítima do retrato maldito. Eis alguns parágrafos, demonstrativos do tom mordaz do seu discurso de observação pormenorizada e viva:
O estranho é que este universo de incredibilidade seja aproveitado pelos escritores mais realistas, como diversão ou como libertação das frustrações em que uma literatura mais empenhada os mergulhara – Eça (1845/1900), n’“O Mandarim” (1880) ou nas suas “Lendas de Santos” – ou possibilitarem um maior entrosamento com outros universos culturais, como romances de tese – v.g. “O Retrato” (1841) de Nikolai Gogol (1809/1852) ou “O Retrato de Dorian Gray” (1890/91) de Óscar Wilde (1854/1900).
As Lendas de "S. Cristóvão", de "S. Frei Gil", de "Santo Onofre", de Eça de Queirós terão em Flaubert – “Lenda de S. Julião o Hospitaleiro”, “Lenda de Santo Antão” - a fonte principal de inspiração: S. Cristóvão e a gradual percepção para a luz, S. Frei Gil e a busca do saber com função altruísta, com vitória sobre o Demónio, à maneira do "Doutor Fausto", Santo Onofre e o misticismo interior na procura ascética mas egoísta da santidade, todos eles representativos de facetas do espírito e da condição humanas.
Quanto a “O Mandarim" parte, como os seus congéneres russo (ucraniano) e inglês (irlandês), de uma situação de carência e ambição – de dinheiro, poder ou permanência de beleza e juventude – que obtêm – no caso de Teodoro, (o enguiço, por alcunha de Madame Augusta Marques, a sua locatária, por ser exageradamente supersticioso), pelo toque de uma campainha que matará o pobre Ti-Chin-Fu, mandarim milionário, segundo informação de um livro comprado na Feira da Ladra, no capítulo “Brecha das Almas”; no caso de Tchartkov, pela compra de um retrato de uma estranha figura maléfica de velho, cuja moldura encerra mil moedas de ouro, providenciais ao endividado pintor; no caso de Dorian Gray, pela formulação de um desejo de manutenção, em troca da sua alma, da beleza e juventude contidas no seu retrato, pintado pelo seu amigo, o pintor Basil Hallword.
N’ “O Mandarim”, (dividido em seis capítulos), o tentador é representado, humoristicamente, por uma figura vestida de negro e com o guarda-chuva debaixo do braço, que acicata o desejo de Teodoro lembrando a injustiça da sua condição de amanuense pelintra, impossibilitado de aceder aos bens materiais fornecidos pela fortuna, incitando-o a tocar a campainha, que lhe facultará tudo isso. Ao sucesso que lhe advém das riquezas, seguem-se as lutas de consciência, o cruel arrependimento manifesto inicialmente numa devoção furiosa, bem aproveitada pela Igreja, que lhe sugere, blandiciosamente, a oferta de dádivas e mesmo a construção de uma catedral; seguidamente, vem o desejo de evasão, com viagens pela Europa, Egipto, a procura inútil e desastrosa, pela China, da família do mandarim, para a compensar e legitimar a sua herança, o retorno à pátria, sempre perseguido pela figura do mandarim, o desprezo social pelo falhado honesto que se dispõe a desprezar a riqueza e a retomar o emprego e a pensão da D. Augusta, a reviravolta do mesmo, assumindo novamente as suas riquezas e o seu prestígio social, o que lhe provoca um “desprezo pela Humanidade tão largo – que se estendeu ao Deus que a criou” - mas com o mandarim sempre acompanhando-o com o seu papagaio, e o apelo inútil ao homem vestido de preto para que ressuscite o mandarim e o livre da fortuna, e com ela, do sofrimento do remorso.
A filosofia da honestidade e do comportamento segundo os valores da moral, são a conclusão irónica do conto, logo desmistificado sardonicamente com a atribuição, a todo o homem, de um gesto igual ao seu, de, em iguais circunstâncias, tocar a campainha para matar o mandarim, que assume, assim, a dimensão simbólica, embora à escala humana, do Bem obtido através do Mal, o Bem representando o poder da riqueza, o Mal, a corrupção e o crime. Daí, a perfeita actualidade do conto. Eis o remate: “Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhões ao demónio; pertencem-lhe; ele que os reclame e os reparta... E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: “Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o mandarim!” E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!”
N’ “O Retrato” de Gogol (dividido em duas partes), é o próprio retrato feito por um pintor desconhecido (só na II Parte ele será identificado) que exerce um poder maléfico sobre o carácter e a vida do seu possuidor, que, cada vez mais ambicioso de fama e riqueza, descura a sua técnica pictural, para produzir quadros convencionais, sem alma, fechando-se malevolamente ao mundo, invejando os verdadeiros pintores, terminando no maior sofrimento, após ter gasto a sua fortuna na compra de obras primas de pintura, não para as contemplar mas para as destruir, em violências de louco, movido pela inveja que nele despertara um quadro de um ex-colega de ofício. Para além de especificar, pois, como características principais para a criação artística, o trabalho e o estudo, o conto desenvolve, assim, uma tese sobre o valor da fama em contradição com a autenticidade do génio artístico. Eis alguns passos comprovativos:
“Tchartkov tornou-se um pintor da moda em todos os sentidos. Começou a ir a almoços, a acompanhar senhoras às galerias e até em passeios, vestia-se de forma elegante e afirmava publicamente que o pintor devia pertencer à alta sociedade, que era preciso manter a sua dignidade, que os pintores se vestiam como sapateiros, não sabiam conduzir-se adequadamente, não respeitavam o bom-tom e não tinham qualquer instrução. Em sua casa e no estúdio, impôs uma limpeza incrível, contratou dois criados magníficos, tomou aprendizes janotas, mudava de roupa várias vezes ao dia, frisava o cabelo, dedicava-se a aperfeiçoar várias formas de receber os visitantes, ocupava-se a embelezar por todos os meios possíveis a sua aparência, para causar boa impressão às senhoras; em suma, em pouco tempo tornara-se de todo impossível reconhecer nele o modesto pintor que trabalhara outrora no anonimato no seu cubículo na ilha Vassilievski. Exprimia-se agora com palavras bruscas sobre os pintores e a arte: assegurava que já se atribuía demasiado mérito aos pintores antigos, que todos eles, antes de Rafael, não pintavam figuras mas arenques, que era apenas na imaginação dos observadores que existia a ideia de se ver neles algo sagrado; que até o próprio Rafael não pintava assim tão bem e que a fama de muitas das suas obras perdurava apenas por tradição; que Miguel Ângelo era um fanfarrão, porque queria apenas exibir os seus conhecimentos de anatomia, que não havia nele nenhuma graciosidade e que o verdadeiro esplendor, força do pincel e colorido era preciso buscá-los agora, no presente século. Aqui, naturalmente, como que por acaso, começava a falar de si: “... A pessoa que mergulha durante meses num quadro, na minha opinião, é um artesão, e não um pintor... este retrato pintei-o em dois dias....” “... A sua glória era cada vez maior, os trabalhos e encomendas aumentavam. Já começavam a aborrecê-lo sempre os mesmos retratos e rostos, cujas poses e posturas já sabia de cor. Já os pintava sem grande vontade, esboçando apenas a cabeça de qualquer maneira, e dando o resto aos aprendizes para acabar... A vida de distracções e a alta sociedade, onde procurava desempenhar o papel de um homem do mundo, tudo isso o levara para longe do trabalho e do pensamento. O seu pincel tornara-se frio e embotado, encerrara-se insensivelmente em formas rotineiras, fixas, há muito gastas... E aqueles que tinham conhecido Tchartkov noutros tempos não conseguiam compreender como podia ter-se evaporado o seu talento... Contudo, o enleado pintor não ouvia estes comentários.... Nos jornais já lia os adjectivos “o nosso respeitável Andrei Petrovitch” e “o nosso emérito Andrei Petrovitch”. Já começava a ser convidado para cargos honoríficos...” “Em suma, a sua vida já chegara àquela idade em que tudo o que respirava entusiasmo se encolhe no homem... em que todos os sentimentos embotados se tornam mais sensíveis ao som do ouro... Assim, todos os sentimentos e impulsos de Tchartkov se dirigiam para o ouro...Os maços de notas cresciam nas suas arcas... transformou-se num avaro sem motivo, que poupava sem qualquer finalidade, pronto para se tornar numa daquelas estranhas criaturas tão frequentes no nosso mundo insensível, que são olhadas com horror pelo homem que tem vida e coração...
N’ “O Retrato de Dorian Gray” (dividido em vinte capítulos), será Lord Henry Wotton que lançará o veneno no espírito do jovem Dorian, por meio dos seus paradoxos e epigramas destrutivos da moral convencional deste, que se regia pelos ditames da burguesia inglesa. Tais discursos epigramáticos, tão comuns também nas peças de teatro de Óscar Wilde, remetem-nos para a graça maliciosa de João da Ega, personagem d’ “Os Maias”, de espírito cintilante e acutilante, sem criar a sensação da sobrecarga que impregna os conceitos filosóficos de Lord Henry, que, todavia, exprimem uma admirável honestidade de pensamento humanístico e liberdade na sua expressão. Citamos alguns exemplos, do I e II capítulos: “A naturalidade não passa de uma pose, é a pose mais irritante que conheço”, em resposta a Basil, que o acusara do seu “cinismo de pose”; “Creio que sou capaz de acreditar em tudo, desde que seja perfeitamente inacreditável”; “A consciência e a cobardia são uma e a mesma coisa, Basil”; “Todo o cuidado é pouco na escolha dos nossos inimigos”; “As pessoas fiéis só conhecem o lado trivial do amor. São os infiéis que conhecem as tragédias do amor”; “Só as pessoas frívolas é que não julgam pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível”; “A única diferença entre um capricho e uma paixão eterna é que o capricho dura mais tempo;” “Eu adoro os prazeres simples. São o último refúgio das pessoas complexas.” “O pecado é na verdade o único elemento colorido que nos resta na vida moderna”; “Há algo de extremamente mórbido na simpatia moderna pelo sofrimento. Devíamos simpatizar com a cor, a beleza, a alegria da vida.”... Este último conceito, do capítulo III, aponta bem para a filosofia de fruição da vida, que está na base da estrutura do enredo narrativo, que, pelo elogio da juventude e da beleza do corpo, deforma o espírito do jovem retratado – Dorian Gray - levando-o a ambicionar para si a permanência de tal beleza e tal juventude manifestas no retrato, do qual tem ciúmes, em troca da sua alma.
Outros aforismos, de conteúdo cínico, constituem, igualmente, expressões de uma concisão e elegância de pensamento de que não resistimos a evidenciar alguns: “Os filhos começam por amar os pais; ao crescerem, tendem a julgá-los; por vezes, perdoam-lhes.” (c. V). Segundo Lord Henry, (C. VI), “a verdadeira razão por que todos nós pensamos tão bem dos outros é que todos temos medo de nós próprios. A base do optimismo é o puro terror. Julgamos que somos generosos porque atribuímos ao nosso vizinho a posse daquelas virtudes que pensamos poderem vir a beneficiar-nos. Louvamos o banqueiro para podermos exceder o nosso crédito, e encontramos bons princípios no assaltante na esperança de que nos poupe as carteiras.” Todo o capítulo VI , em que os três amigos – Basil, Henry e Dorian – discutem os inocentes amores deste último, é, aliás, um repositório de tiradas cínicas de lord Henry, contra as quais se opõe, em vão, o sensato Basil.
Quanto à sequência da história queirosiana, ela mostra-nos um Teodoro não mais enguiço da Madame Marques, nem bacharel suspiroso pelas regalias da vida, mas rico e poderoso, perante quem a sociedade se prostra subservientemente, começando, todavia, a ter pavorosas lutas de conciência, por se gozar de um bem que usurpara, e a ser perseguido pela figura bojuda do mandarim fulminado, espojado na sua cama, vestido de seda amarela e com um papagaio de papel nos braços. Na de Dorian Gray, a descoberta, por este, de que os seus erros e perversões vão transformando o retrato da autoria de Basil, enquanto o seu modelo permanece belo e jovem, como desejara. N’ “O Retrato”, também Tchartkov viverá na magnificência e no apreço de todos os concidadãos que dantes o desconheciam, continuando a pintar para a alta sociedade, numa pintura cada vez mais desligada do estudo e do realismo em que dantes tanto se empenhara, indiferente a modas e procurando somente a originalidade.
A revelação da verdadeira pintura, através de um quadro de um ex-companheiro de arte, “despertou toda a sua essência viva” que, de repente, o faz desejar voltar aos tempos em que buscava idêntica perfeição: “Via-se que, tudo o que o pintor fora beber ao mundo exterior interiorizara inicialmente na sua alma, o transformara num canto harmonioso e solene. Tornava-se evidente até aos olhos dos profanos o insuperável abismo que existia entre a criação e a simples cópia da natureza.” Todavia, as suas tentativas de atingir a qualidade que invejava no quadro do ex-amigo são goradas, por há muito se ter afastado, na pressa da fama e da fortuna, do trabalho aturado que tal arte subentendia. Ao olhar para o “retrato” causador do seu infortúnio actual, pela transformação que sofreu, quer desfazer-se dele. A fúria e a inveja pelo verdadeiro talento, leva-o a comprar todas as obras de arte autênticas, para as destruir raivosamente. E é nos paroxismos da loucura, cada vez mais frequentes, que morre na miséria.
Cada uma das obras propõe-se, pois, fazer crítica social relativamente aos respectivos países ou cidades: Gogol, num rigor de traço realista, revelando toda uma cidade capital – S. Petersburgo - de contrastes, entre as classes ricas e snobes e as mais miseráveis de condição difícil, em todo o caso não destituídas de interesses culturais (ao contrário do atraso cultural português, como tema frequentemente abordado por Eça, na sua aplicação, por exemplo, à “mesmice” apática de um quotidiano pátrio indelevelmente estagnado e repetitivo - n’ “Os Maias), pois a história inicia-se com uma lojinha de quadros e gravuras, estampas, visitada por observadores numerosos e curiosos, os mujiques “apontando o dedo”, os cavalheiros observando “com rostos graves”, “os moços de recados e jovens aprendizes” apontando “caricaturas, rindo e troçando uns dos outros; os velhos criados de capotes de frisa” olhando “apenas para terem com que pasmar; e as vendedeiras, jovens camponesas russas”, apressando-se, “por instinto a ver para que olha a multidão e escutar sobre o que se fala”.
É nessa lojinha que o pintor Tchartkov adquire o retrato de olhos maléficos que irá transformar a sua vida. Na segunda parte, de espaço cronológico anterior ao da primeira, (como justificação da existência e identificação do retrato), iniciada por um leilão de quadros, entre os quais se encontra o retrato que fez a fortuna e a desgraça do protagonista da primeira, Tchartkov, o narrador apresenta, contudo, um descritivo mais incisivo e pontuado sobre a sociedade russa e alguns dos seus costumes, do que na primeira parte, mais debruçada sobre a evolução psicológica do protagonista, derradeira vítima do retrato maldito. Eis alguns parágrafos, demonstrativos do tom mordaz do seu discurso de observação pormenorizada e viva:
“Estacionavam numerosas carruagens, coches e caleches em frente a um edifício no qual se realizava o leilão de um desses ricos amantes das artes que passam a sua vida imersos em sonhos de Zéfiros e Amores, que com ares de inocência se faziam passar por mecenas e dissipavam nisto milhões acumulados pelos seus sensatos antepassados e muitas vezes até o seu próprio trabalho.”... “ O longo salão estava repleto da mais variada multidão de visitantes, como aves de rapina a atacar um cadáver abandonado. Encontrava-se ali toda a horda de comerciantes russos de Gostini Dvor e até da feira da ladra, de sobrecasas azuis à alemã. Aqui o seu ar e a expressão dos seus rostos eram firmes, mais independentes, sem aquela obsequiosidade adocicada, tão característica do vendedor russo, quando se encontra perante um comprador. Aqui não se faziam quaisquer cerimónias, apesar de nesta mesma sala se encontrarem muitos aristocratas, a quem noutro lugar estariam prontos a varrer com vénias o pó das botas. Aqui tornavam-se atrevidos, palpavam sem cerimónias livros e quadros para avaliar a qualidade do artigo, e cobriam audazmente os lanços dos condes conhecedores. Encontravam-se ali muitos dos obrigatórios visitantes de leilões, que todos os dias os frequentavam em vez do pequeno almoço; aristocratas entendidos, que achavam sua obrigação não perder a ocasião de aumentar as suas colecções, além de não terem outra ocupação das 12 à 1; e por fim aqueles fidalgos de traje e bolsa miserável que compareciam diariamente sem qualquer objectivo interesseiro, apenas para observar quem levava o quê, quem dava mais e quem dava menos, quem cobria o lanço de quem e quem arrematava o quê.” ....
Um espectador do leilão justificará a sua pretensão ao retrato licitado e prestes a ser vendido, iniciando uma longa história, que a seu pai atribui a pintura daquele quadro, representativo de um usurário malévolo e com o estranho condão de desgraçar todos aqueles a quem emprestava dinheiro, tendo-o seu pai retratado como o espírito das trevas, e exigindo do filho que o recuperasse um dia, assim que o reconhecesse – o que não virá a acontecer no leilão, por entretanto o retrato ter desaparecido, enquanto todos estavam pendentes do seu discurso. Eis o seu longo intróito descritivo, detalhado e sombrio sobre a sociedade de Kolomna:
Um espectador do leilão justificará a sua pretensão ao retrato licitado e prestes a ser vendido, iniciando uma longa história, que a seu pai atribui a pintura daquele quadro, representativo de um usurário malévolo e com o estranho condão de desgraçar todos aqueles a quem emprestava dinheiro, tendo-o seu pai retratado como o espírito das trevas, e exigindo do filho que o recuperasse um dia, assim que o reconhecesse – o que não virá a acontecer no leilão, por entretanto o retrato ter desaparecido, enquanto todos estavam pendentes do seu discurso. Eis o seu longo intróito descritivo, detalhado e sombrio sobre a sociedade de Kolomna:
“- Conhecem com certeza a parte da cidade que se chama Kolomna. ... Tudo ali é diferente das outras zonas de S. Petersburgo, como se não fosse bem nem capital nem província; parece que, ao atravessar as ruas de Kolomna, nos abandonam todos os desejos e impulsos da juventude. O futuro não passa ali, tudo é silêncio e resignação, tudo o que se afastou do movimento da capital. É para lá que se mudam os funcionários reformados, as viúvas, gente modesta, que se envolveram com o Senado e por isso se exilam ali quase para toda a vida; antigas cozinheiras, que passam todo o dia nos mercados, tagarelam disparates com o mujique da venda e compram todos os dias café a cinco copeques e açúcar a quatro, e, finalmente, todo aquele tipo de gente a que, numa palavra, se pode chamar cinzenta – gente que pela roupa, pela cara, pelo cabelo e pelos olhos tem uma aparência turva, cinza, como os dias em que no céu não há nem tempestade, nem sol, e nem acontece nem uma coisa nem outra: planta-se uma neblina que priva os objectos de qualquer nitidez. Pode incluir-se aqui os camaroteiros de teatro reformados, os conselheiros titulares reformados, os pupilos de Marte reformados, com um olho vazado e um lábio inchado. Estas pessoas são completamente apáticas: andam sem olhar para nada, calam-se sem pensar em nada. Nos seus quartos não há muitas posses; por vezes simplesmente uma garrafa de pura vodka russa, que sugam monotonamente todo o dia sem sentir aquele afluxo forte à cabeça, a recepção potente com que gosta habitualmente de se mudar aos domingos o jovem trabalhador alemão, esse trabalhador da rua Mechánskaia, único ocupante de todo o passeio quando já passa da meia-noite.
“A vida em Kolomna é terrivelmente solitária: raramente se vêem carruagens, excepto aquelas em que se deslocam os actores, que com o seu ribombar, barulho e estrondo perturbam o silêncio geral. Ali todos andam a pé, e o cocheiro arrasta-se frequentemente sem passageiros, transportando apenas forragem para a sua barbuda pileca. É possível encontrar um apartamento por cinco rublos ao mês, com o café da manhã incluído. As viúvas que recebem pensões constituem a aristocracia local; comportam-se, varrem frequentemente o quarto, conversam com as amigas sobre o elevado custo da carne de vaca e das couves. É frequente terem uma filha jovem, criatura taciturna, silenciosa, às vezes bem parecida, um rafeiro nojento e um relógio de parede com o pêndulo a bater tristemente. Seguem-se depois os actores, a quem os honorários não permitem abandonar Kolomna, gente livre, como todos os artistas que vivem para o prazer. Estes sentam-se nos seus roupões, consertando a sua pistola, fabricam em cartão coisinhas úteis para a casa, jogam damas e cartas com o amigo que as visita, e assim passam a manhã, fazendo quase o mesmo à tarde, acrescentando de vez em quando ponche. Depois destes figurões e aristocratas de Kolomna vem a invulgar arraia-miúda. É tão difícil enumerá-los como contar os insectos que nascem em vinagre velho. Há velhinhas que rezam; velhinhas que bebem; velhinhas que rezam e bebem; velhinhas que sobrevivem por meios inconcebíveis, como as formigas: arrastam consigo velhos trapos e roupa branca desde a ponte Kalínkin até à feira da ladra, para lá os venderem a quinze copeques; em suma, são frequentemente o mais miserável refugo da humanidade, a quem nem um economista político cheio de boas intenções encontraria meios de melhorar a situação.
“Mencionei-os para vos mostrar com que frequência esta gente se encontra na necessidade de procurar uma ajuda urgente, temporária, de recorrer a empréstimos; e instala-se então no seu seio um tipo particular de usurários, que fornecem pequenas quantias sob penhor e a altos juros. Estes pequenos usurários são muito mais implacáveis do que os grandes, porque surgem claramente no meio da pobreza e dos miseráveis esfarrapados, coisa que o usurário rico, que negoceia apenas com clientes que chegam de carruagem, não vê nunca. E é por isso que lhes perecem demasiado cedo nas almas quaisquer sentimentos de humanidade. (Entre estes usurários havia um...” – o do retrato causador de desgraça).
Também Óscar Wilde terá a oportunidade de descrever a sociedade inglesa, quer através do narrador satírico, quer do comentário epigramático ou displicente de Lord Henry, geralmente imbuído de elegantes conceitos destrutivos da moral tradicional, porque marcando, à maneira clássica, o sentido da fugacidade da vida e apelando para os valores hedonistas do “carpe diem” horaciano, sem preconceitos moralistas, quer do próprio Dorian Gray.
O primeiro almoço (capítulo III) em casa da tia de lord Henry, Agatha, que reunirá Lord Henry e Dorian Gray, iniciando aquele o seu processo de fascínio corruptor sobre o seu pupilo, evidencia o sentido da ironia de Óscar Wilde nos traços dos figurantes snobes, que fazem evocar também o mundo hilariante da sociedade queirosiana, com a intemporalidade de uma perpétua actualidade:
“Tinha, à direita, Sir Thomas Burdon, um membro radical do Parlamento, que seguia o seu líder na vida pública e os melhores cozinheiros na vida privada, jantando com os tories e pensando com os liberais, conforme um sábio e bem conhecido ditame. A cadeira à esquerda da duquesa era ocupada por Mr. Erskine de Treadley, um velho cavalheiro com algum encanto e cultura que todavia cedera ao mau hábito do silêncio, visto que, como explicara a Lady Agatha, já dissera o que tinha a dizer antes dos trinta. Ao lado de Lord Henry sentava-se Mrs. Vandeleur, uma das mais antigas amigas da sua tia, uma santa entre as mulheres, mas tão descuidada na sua aparência que parecia um livro de salmos mal encadernado. Felizmente para ele, o outro parceiro de Mrs. Vandeleur era Lord Faudele, homem de meia idade de uma inteligentíssima mediocridade, tão calvo quanto um discurso ministerial na Câmara dos Comuns...”
O próprio Dorian Gray (capítulo IV), na sua ingénua confissão a Lord Henry sobre a paixão recente – e “eterna” – por uma actriz (Sybil), faz uns comentários picarescos sobre a sociedade londrina e sobre a figura de um judeu servil, que lembra igualmente o judeu vendedor de antiguidades n’ “Os Maias”: “... Tu imbuíste-me do estranho desejo de saber tudo da vida. Durante dias depois de te conhecer, algo parecia vibrar-me nas veias. Quando deambulava pelo Parque ou passeava pela Avenida Piccadilly, costumava olhar para toda a gente que por mim passava, e interrogar-me, com uma curiosidade mórbida, sobre o tipo de vida que teriam. Alguns deles fascinavam-me. Outros amedrontavam-me. Pairava no ar um subtil veneno. Eu desenvolvera a paixão pelas sensações... Bem, uma certa noite, depois das sete horas, decidi sair em busca de uma aventura. Senti que esta nossa cinzenta e monstruosa Londres, com as suas miríades de gente, os seus sórdidos pecadores e os seus tremendos pecados, segundo as tuas próprias palavras, me reservava certamente qualquer coisa de especial. .... Não sei do que estava à espera e vagueei para leste, e não tardei a perder-me num labirinto de ruas sujas e pracetas escuras e sem relva. Cerca das oito e meia, passei por um teatrinho ridículo, iluminado a bicos de gás e forrado de cartazes berrantes. À entrada, estava um judeu hediondo, com o colete mais espantoso que alguma vez vi, fumando um charuto reles. Tinha um cabelo oleoso aos caracóis e no peitilho da sua camisa suja reluzia um enorme diamante. “Quer um camarote, meu Lorde?”, disse ele, quando deu por mim, e tirou o chapéu com ar de ostensivo servilismo. Havia qualquer coisa nele que me divertia, Harry, de tal modo era monstruoso....”
Na véspera do 38º aniversário de Dorian Gray (capítulo XVIII), no encontro fatal deste com Basil Hallward, que o critica pela vida pecaminosa que leva – “Acho bem que saibas que em Londres se contam sobre ti as coisas mais hediondas” – eis um comentário de Dorian sobre a sociedade inglesa, que Óscar Wilde parece impregnar do veneno do seu pessimismo virulento, em autodefesa e retaliação contra a condenação social que o atingiu tão rudemente: “Eu sei o que as pessoas gostam de mexericos em Inglaterra. A classe média alardeia os seus preconceitos morais nos seus jantares ordinários, e segredam uns com os outros sobre o que apodam de libertinagem naqueles que lhes são superiores, para fingirem que pertencem à alta sociedade e fazerem-se íntimos das pessoas que caluniam. Neste país basta um homem ter classe e inteligência para que todas as línguas vulgares o difamem. E que tipo de vida levam essas pessoas que fazem julgamentos morais? Meu caro amigo, esqueces-te que vivemos na pátria dos hipócritas.” “ – Dorian – gritou Hallward, não é isso que está em causa. Bem sei que a Inglaterra é bastante má e que a sociedade inglesa está completamente pervertida. É por isso que eu quero que tu sejas bom...”
É igualmente negativa a opinião de James Vane, irmão de Sybil, sobre Londres “Não me parece que volte a ver esta horrível Londres”, ao desejar, ameaçadoramente, afastá-la, do “Príncipe Encantado”, como ela apelidava o seu apaixonado Dorian Gray (capítulo V).
Quanto ao descritivo dos costumes, por nos recordar idêntico espaço de colorido e som, duas vezes percorrido, do musical de George Cukor “My Fair Lady”, transcrevemos o quadro matinal do movimento pictórico do mercado, perto do Convent Garden, atravessado por Dorian Gray, destroçado, após a ruptura com Sybil, (por esta, toda entregue à paixão pelo seu Príncipe Encantado, que a beijara, ter representado mal o seu papel de Julieta (capítulo VII)): “Ao raiar do dia, encontrou-se perto de Convent Garden. As trevas dissiparam-se e, ruborizado por débeis fogos, o céu encovou-se numa pérola perfeita. Grandes carroças cheias de lírios vacilantes rodavam lentamente pela rua vazia e limpa.O ar impregnava-se do perfume das flores e a sua beleza trazia-lhe um antídoto para a dor que sentia. Seguiu para o mercado e contemplou os homens descarregando os carros. Um carreteiro de bata branca ofereceu-lhe umas cerejas. Agradeceu-lhe e espantou-se de o homem se recusar a aceitar dinheiro por elas (ao contrário das tentativas de Elisa Doolittle de impingir as suas flores) começando a comê-las distraidamente. Tinham sido colhidas à meia noite e a frieza do luar penetrara-as. Uma imensa fila de rapazes carregando grades de tulipas desfolhadas e de rosas amarelas e vermelhas desfilou diante dele, abrindo caminho por entre as altas colunas de vegetais de verde jade. Sob o pórtico, com os seus pilares cinzentos caiados pelo sol, arrastava-se um bando de mulheres desleixadas e de cabeças descobertas, aguardando que terminasse a lota. Outras apinhavam-se de roda das portas giratórias do café da Plazza. Os enormes cavalos das carroças tropeçavam nas pedras toscas, e pisavam-nas, agitando os seus sinos e arreios. Alguns dos carroceiros dormiam sobre uma pilha de sacas. De papos irisados e patas róseas, os pombos voltejavam debicando grãos.”
A crítica social n’ “O Mandarim” está, naturalmente impregnada da graça malandra da sátira costumeira de Eça de Queirós, iniciada com a autocaricatura do narrador-personagem Teodoro, ofuscado com a fortuna que milagrosamente o bafeja. Todo um discurso de exagero, dinamismo e sonoridade, onde a palavra sintética “ouro” soa como um tiro e as imagens decorrem no visualismo hiperbólico denunciador de avidez e bestialidade, insensível a conselhos de moderação, mas também de uma riqueza demasiado recente para poder destacar já a necessária distância e altivez perante o chefe, embora insensível com a pobreza pedinte (capítulo II): “Aí, arremessei para cima do balcão um papel sobre o Banco de Inglaterra de mil libras, e soltei esta deliciosa palavra! “ - Ouro!” Um caixeiro sugeriu-me com doçura: “ – Talvez lhe fosse mais cómodo em notas...” Repeti secamente: “- Ouro!” “Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado, icei-me para uma caleche. Sentia-me gordo, sentia-me obeso; tinha na boca um sabor de ouro, uma secura de pó de ouro na pele das mãos; as paredes das casas pareciam-me faiscar como longas lâminas de ouro: e dentro do cérebro ia-me um rumor surdo onde retilintavam metais – como o movimento de um oceano que nas vagas rolasse barras de ouro.” “Abandonando-me à oscilação das molas, rebolante como um odre mal firme, deixava cair sobre a rua, sobre a gente, o olhar turvo e tedioso do ser repleto. Enfim, atirando o chapéu para a nuca, estirando a perna, empinando o ventre, arrotei formidavelmente de flatulência ricaça...” “Muito tempo rolei assim pela cidade, bestializado num gozo de nababo.” “Subitamente um brusco apetite de gastar, de dissipar ouro, veio-me enfunar o peito como uma rajada que incha uma vela.” “ A parelha estacou. Procurei em redor com a pálpebra meio cerrada alguma coisa para comprar – jóia de rainha ou consciência de estadista; nada vi; precipitei-me então para um estanco:” “ – Charutos! De tostão! De cruzado! Mais caros! De dez tostões!” “- Quantos?... perguntou-me servilmente o homem.” “- Todos! - respondi com brutalidade. “À porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao seio, estendeu-me a mão transparente. Incomodava-me procurar os trocos de cobre por entre os meus punhados de ouro. Repeli-a, impaciente: e, de chapéu sobre o olho, encarei friamente a turba.” “ Foi então que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do meu director-geral: imediatamente achei-me com o dorso curvado em arco e o chapéu cumprimentador roçando as lajes. Era o hábito da dependência: os meus milhões não me tinham dado ainda a verticalidade à espinha...”
Espaços de ostentação e requinte (evidenciando o conhecimento de Eça nos variados domínios da arte e da cultura), surgem seguidamente (capítulo III), de mistura com os novos hábitos de ricaço, já reverenciado pela turba que dantes o desprezava, na sua insignificância de amanuense. O seu nome corre fronteiras pelo mundo inteiro. Mas as personagens caricaturadas, são agora tomadas na abstracção das classes sociais, tirando Madame Marques que, desde que o sabia rico, o tratava a arroz doce, enquanto não saiu de sua casa, para o palacete amarelo, ao Loreto. Uma desastrosa paixão por uma Cândida pequenina e loura, que lhe chamava “o seu anjo Totó”, recebendo-lhe as notas com timidez e escrevendo a um “alferes da vizinhança”, “de dedinho no ar”, servirá à sua experiência sobre a traição feminina: “Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito, como uma planta venenosa. Descri para sempre dos anjos louros, que conservavam no olhar azul o reflexo dos céus atravessados; de cima do meu ouro deixei cair sobre a Inocência, o Pudor e outras idealizações funestas, a ácida gargalhada de Mefistófeles: e organizei friamente uma existência animal, grandiosa e cínica.”
“Ao bater do meio dia entrava na minha tina de mármore cor-de-rosa, onde os perfumes derramados davam à água um tom opaco de leite; depois pajens tenros, de mão macia, friccionavam-me com o cerimonial de quem celebra um culto: e embrulhado num robe de chambre de seda da Índia, através da galeria, dando aqui e além um olhar aos meus Fortunys e aos meus Corots, entre alas silenciosas de lacaios, dirigia-me ao bife à inglesa, servido em Sèvres azul e ouro.” “O resto da manhã, se havia calor, passava-o sobre coxins de cetim cor de pérola, num boudoir em que a mobília era de porcelana fina de Dresda e as flores faziam um jardim de Armida; aí saboreava o Diário de Notícias, enquanto lindas raparigas, vestidas à japonesa refrescavam o ar, agitando leques de plumas.” “De tarde ia dar uma volta a pé, até ao Pote das Almas: era a hora mais pesada do dia: encostado à bengala, arrastando as pernas moles, abria bocejos de fera saciada – e a turba abjecta parava a contemplar, em êxtases, o nababo enfastiado!” ... “Ao começo da noite um criado, para anunciar o jantar, fazia soar pelos corredores na sua tuba de prata, à moda gótica, uma harmonia solene. Eu erguia-me e ia comer, majestoso e solitário. Uma populaça de lacaios, de librés de seda negra, servia, num silêncio de sombras que resvalam, as vitualhas raras, vinhos do preço de jóias: toda a mesa era um esplendor de flores, luzes, cristais, cintilações de ouro: - e enrolando-se pelas pirâmides de frutos, misturando-se ao vapor dos pratos, errava, como uma névoa subtil, um tédio inenarrável...” “Depois, apopléctico, atirava-me para o fundo do cupé – e lá ia às Janelas Verdes onde nutria, num jardim de serralho, entre requintes muçulmanos, um viveiro de fêmeas: revestiam-me duma túnica de seda fresca e perfumada – e eu abandonava-me a delírios abomináveis... Traziam-me semimorto para casa, ao primeiro alvor da manhã: fazia maquinalmente o meu sinal da cruz, e daí a pouco roncava de ventre ao ar, lívido e com um suor frio, como um Tibério exausto.”
“Entretanto Lisboa rojava-se a meus pés. O pátio do palacete estava constantemente invadido por uma turba: olhando-a enfastiado das janelas da galeria, eu via lá branquejar os peitilhos da Aristocracia, negrejar a sotaina do Clero, e luzir o suor da plebe: todos vinham suplicar, de lábio abjecto, a honra do meu sorriso e uma participação no meu ouro. Às vezes consentia em receber algum velho de título histórico: - ele adiantava-se pela sala, quase roçando o tapete com os cabelos brancos, tartamudeando adulações; e imediatamente, espalmando sobre o peito a mão de fortes veias onde corria um sangue de três séculos, oferecia-me uma filha bem-amada para esposa ou para concubina.” “Todos os cidadãos me traziam presentes como a um ídolo sobre o altar – uns odes votivas, outros o meu monograma bordado a cabelo, alguns chinelos ou boquilhas, cada um a sua consciência. Se o meu olhar amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher – era logo ao outro dia uma carta em que a criatura, esposa ou prostituta, me ofertava a sua nudez, o seu amor, e todas as complacências da lascívia.” “Os jornalistas esporeavam a imaginação para achar adjectivos dignos da minha grandeza; fui o sublime Sr. Teodoro, cheguei a ser o celeste Sr. Teodoro; então, desvairada, a Gazeta dos Locais chamou-me o extraceleste Sr. Teodoro! Diante de mim nenhuma cabeça ficou jamais coberta – ou usasse a coroa ou o coco. Todos os dias me era oferecida uma presidência de ministério ou uma direcção de confraria. Recusei sempre, com nojo.” “ Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da monarquia. O Fígaro, cortesão, em cada número falou de mim, preferindo-me a Henrique V; o grotesco imortal, que assina Saint-Genest, dirigiu-me apóstrofes convulsivas, pedindo-me para salvar a França; e foi então que as as Ilustrações estrangeiras publicaram, a cores, as cenas do meu viver. Recebi de todas as princesas da Europa envelopes, com selos heráldicos, expondo-me, por fotografias, por documentos, a forma dos seus corpos e a antiguidade das suas genealogias. Duas pilhérias que soltei durante esse ano foram telegrafadas ao Universo pelos fios da Agência Havas; e fui considerado mais espirituoso que Voltaire, Rochefort, e que esse fino entendimento que se chama Todo-o-Mundo. Quando o meu intestino se aliviava com estampido – a humanidade sabia-o pelas gazetas. Fiz empréstimos aos reis, subsidiei guerras civis – e fui caloteado por todas as repúblicas latinas que orlam o golfo do México.” “E eu, no entanto, vivia triste...”
A dimensão verdadeiramente orgiástica das referências às adulações e subserviências oportunistas, embora de expressão caricaturalmente hiperbólica, não deixa de apresentar, para lá da pilhéria e do conhecimento humano que traduz, uma absoluta veracidade e actualidade permanente, como verificamos a cada passo, nesta era de poderosíssimos meios de expressão audiovisual, em que multidões se rojam aos pés dos ídolos milionários, ou outros.
O apodo de orgiástico, à maneira, igualmente, do Fausto de Goethe, que com Mefistófeles parte em busca do absoluto saber, através das mais incríveis experiências de todos os domínios do saber, parece apropriado também a todo o capítulo XI de “O Retrato de Dorian Gray”, como síntese da evolução espiritual e vivencial do protagonista, dependente das teorias de um livro oferecido por Lord Henry, que considerava a esterilidade dos sistemas especulativos e se apoiava na experiência, como factor dominante de aprendizagem. Cultivando a beleza e a juventude sem mancha que permanecia no seu corpo, em contraste com as horríveis transfigurações do seu retrato escondido, “a violência do contraste tornava-lhe mais agudo o seu sentimento de prazer. Cada vez se enamorava mais da sua própria beleza, cada vez se interessava mais pela corrupção da sua própria alma...” ...“Quanto mais sabia mais desejava saber. Tinha apetites loucos que se tornavam mais vorazes se os saciava”. Era igualmente admirado e adulado pela sociedade que frequentava e que recebia em casa, em jantares íntimos organizados por Lord Henry, “tão famosos pela criteriosa selecção e disposição estratégica dos convidados, como pelo gosto requintado da decoração da mesa, com os seus arranjos sinfónicos de flores exóticas, e toalhas bordadas, e baixela antiga de ouro e prata...”
Assim, no sentido de obter os seus conhecimentos pela experiência, Dorian Gray, por muito que sentisse interesse momentâneo pelas teorias místicas ou filosóficas, “todas as teorias da vida lhe pareciam insignificantes comparadas com a própria vida. Estudou os perfumes, na sua relação com a vida sensual, mais tarde dedicou-se à música, dando curiosos concertos em que misturava instrumentos e músicos diversos pertencentes aos mais diversos povos, modernos e antigos. “As fantásticas características destes instrumentos fascinavam-no e comprazia-se na ideia de que a Arte, tal como a Natureza, tem também os seus monstros, coisas de forma bestial e vozes hediondas. Contudo, passado algum tempo, cansou-se deles, e passou a sentar-se no seu camarim na Ópera, sozinho ou com Lorde Henry, ouvindo com arrebatado prazer o Tannauser, e vendo no prelúdio da grande obra de arte a exposição da tragédia da sua própria alma.”
Veio depois a paixão pelas jóias, com riquíssimas colecções e o seu estudo, com os exemplos da história : “Que requintada fora a vida de outrora! Que magnífico o seu esplendor e ornamentação! Era maravilhosa a simples leitura dos luxos a que se entregavam os mortos.”
“Então voltou-se para os bordados e as tapeçarias que substituíam os frescos nas salas frias dos países nórdicos europeus. Ao investigar o assunto – e tinha sempre uma extraordinária capacidade para se embrenhar completamente nos temas que o ocupavam em determinado momento – lamentou profundamente o reflexo da ruína que o Tempo provoca nas coisas belas e maravilhosas. Ele, pelo menos, conseguira escapar a essa degradação...” E através da história interrogou-se sobre o paradeiro dos inúmeros exemplos de bordados e tapeçarias oferecidos pelos reis e outros nobres, procurando, “durante um ano inteiro, acumular os mais requintados exemplares de lavores têxteis e bordados que pudesse encontrar...”, seguindo-se a citação profusa dessas maravilhas. O mesmo se dirá do relato de paramentos eclesiásticos que guardava nos “grandes baús de cedro que forravam a galeria oeste das sua casa...”
Todos esses tesouros representavam para ele formas de esquecimento do permanente terror em que vivia mergulhado, sobretudo quando contemplava a “hedionda imagem” do retrato, que cobrira com uma “colcha púrpura e dourada” num “quarto solitário e trancado a sete chaves”. Começa uma vida dupla, cada vez mais desregrada, de uma vida social requintada mas, a ocultas desta, a vida degradada e criminosa em que chafurdava, nos bairros mais recônditos, equiparando-se aos exemplos dos grandes vultos da História, de cujas biografias se rodeava à saciedade, como justificação dos seus próprios actos.
Todo este capítulo XI, revelador da extraordinária qualidade cultural de Óscar Wilde, constitui, pois, a síntese de uma filosofia hedonista, que põe a tónica no gozo dos prazeres, na experiência vivida, na libertação dos conceitos teóricos que não sejam fundamentados através da vivência, sem os preconceitos dualistas do Bem ou do Mal, segundo os ensinamentos do seu mentor Lord Henry.
O desenlace (Cap. XX), revela um protagonista cada vez mais transtornado com a vida dupla que leva, desejando regressar à pureza primitiva, reconhecendo nos traços hediondos do outrora belo retrato feito por Basil (que ele assassinara), a hediondez da sua alma que o seu corpo preservara e a impossibilidade de retomar tal pureza. Com a faca com que apunhalara Basil, rasgou o retrato daquele, soltando gritos pavorosos. Mas foi o seu corpo hediondo – tal como o de Tchartkov – que foi descoberto, e o quadro de Basil mantendo todo o esplendor da sua beleza.
As três obras, de escritores posicionados em igual século XIX e igual escola literária – o realismo – embora em espaços limítrofes da Europa bastante divergentes, revelam, pois, dentro da especificidade dos estilos e intenções – mais sério, moralista, e até didáctico o de Gogol, mais risonho - sátira prazenteira - o de Eça, de um conceito anti-burguês mais contundente e destrutivo, o de Óscar Wilde - revelam, digo, na aliança entre o descritivo do fantástico e da realidade contemporânea e universal, uma extrema capacidade de análise e de humor, mas sobretudo um grande conhecimento da psicologia humana e da tragédia a que o excesso de ambição conduz invariavelmente o ser humano, Ícaro de asas de cera, despenhado.
Daí que recorramos, em síntese globalizante, ao soneto de António Botto (1897/1959), que funcionará ainda como homenagem aos três grandes escritores e suas obras ficcionais do estudo feito:
“Homem que vens de humanas desventuras
Que te prendes à vida, te enamoras,
Que tudo sabes mas que tudo ignoras
Vencido herói de todas as loucuras.
“Que te ajoelhas pálido nas horas
Das tuas infinitas amarguras
E na ambição das causas mais impuras
És grande simplesmente quando choras.
“Que prometes cumprir para esquecer
E trocando a virtude no pecado
Ficas brutal se ele não der prazer.
“Arquitecto do sonho e da ilusão
Ridículo palhaço articulado,
“A vida em Kolomna é terrivelmente solitária: raramente se vêem carruagens, excepto aquelas em que se deslocam os actores, que com o seu ribombar, barulho e estrondo perturbam o silêncio geral. Ali todos andam a pé, e o cocheiro arrasta-se frequentemente sem passageiros, transportando apenas forragem para a sua barbuda pileca. É possível encontrar um apartamento por cinco rublos ao mês, com o café da manhã incluído. As viúvas que recebem pensões constituem a aristocracia local; comportam-se, varrem frequentemente o quarto, conversam com as amigas sobre o elevado custo da carne de vaca e das couves. É frequente terem uma filha jovem, criatura taciturna, silenciosa, às vezes bem parecida, um rafeiro nojento e um relógio de parede com o pêndulo a bater tristemente. Seguem-se depois os actores, a quem os honorários não permitem abandonar Kolomna, gente livre, como todos os artistas que vivem para o prazer. Estes sentam-se nos seus roupões, consertando a sua pistola, fabricam em cartão coisinhas úteis para a casa, jogam damas e cartas com o amigo que as visita, e assim passam a manhã, fazendo quase o mesmo à tarde, acrescentando de vez em quando ponche. Depois destes figurões e aristocratas de Kolomna vem a invulgar arraia-miúda. É tão difícil enumerá-los como contar os insectos que nascem em vinagre velho. Há velhinhas que rezam; velhinhas que bebem; velhinhas que rezam e bebem; velhinhas que sobrevivem por meios inconcebíveis, como as formigas: arrastam consigo velhos trapos e roupa branca desde a ponte Kalínkin até à feira da ladra, para lá os venderem a quinze copeques; em suma, são frequentemente o mais miserável refugo da humanidade, a quem nem um economista político cheio de boas intenções encontraria meios de melhorar a situação.
“Mencionei-os para vos mostrar com que frequência esta gente se encontra na necessidade de procurar uma ajuda urgente, temporária, de recorrer a empréstimos; e instala-se então no seu seio um tipo particular de usurários, que fornecem pequenas quantias sob penhor e a altos juros. Estes pequenos usurários são muito mais implacáveis do que os grandes, porque surgem claramente no meio da pobreza e dos miseráveis esfarrapados, coisa que o usurário rico, que negoceia apenas com clientes que chegam de carruagem, não vê nunca. E é por isso que lhes perecem demasiado cedo nas almas quaisquer sentimentos de humanidade. (Entre estes usurários havia um...” – o do retrato causador de desgraça).
Também Óscar Wilde terá a oportunidade de descrever a sociedade inglesa, quer através do narrador satírico, quer do comentário epigramático ou displicente de Lord Henry, geralmente imbuído de elegantes conceitos destrutivos da moral tradicional, porque marcando, à maneira clássica, o sentido da fugacidade da vida e apelando para os valores hedonistas do “carpe diem” horaciano, sem preconceitos moralistas, quer do próprio Dorian Gray.
O primeiro almoço (capítulo III) em casa da tia de lord Henry, Agatha, que reunirá Lord Henry e Dorian Gray, iniciando aquele o seu processo de fascínio corruptor sobre o seu pupilo, evidencia o sentido da ironia de Óscar Wilde nos traços dos figurantes snobes, que fazem evocar também o mundo hilariante da sociedade queirosiana, com a intemporalidade de uma perpétua actualidade:
“Tinha, à direita, Sir Thomas Burdon, um membro radical do Parlamento, que seguia o seu líder na vida pública e os melhores cozinheiros na vida privada, jantando com os tories e pensando com os liberais, conforme um sábio e bem conhecido ditame. A cadeira à esquerda da duquesa era ocupada por Mr. Erskine de Treadley, um velho cavalheiro com algum encanto e cultura que todavia cedera ao mau hábito do silêncio, visto que, como explicara a Lady Agatha, já dissera o que tinha a dizer antes dos trinta. Ao lado de Lord Henry sentava-se Mrs. Vandeleur, uma das mais antigas amigas da sua tia, uma santa entre as mulheres, mas tão descuidada na sua aparência que parecia um livro de salmos mal encadernado. Felizmente para ele, o outro parceiro de Mrs. Vandeleur era Lord Faudele, homem de meia idade de uma inteligentíssima mediocridade, tão calvo quanto um discurso ministerial na Câmara dos Comuns...”
O próprio Dorian Gray (capítulo IV), na sua ingénua confissão a Lord Henry sobre a paixão recente – e “eterna” – por uma actriz (Sybil), faz uns comentários picarescos sobre a sociedade londrina e sobre a figura de um judeu servil, que lembra igualmente o judeu vendedor de antiguidades n’ “Os Maias”: “... Tu imbuíste-me do estranho desejo de saber tudo da vida. Durante dias depois de te conhecer, algo parecia vibrar-me nas veias. Quando deambulava pelo Parque ou passeava pela Avenida Piccadilly, costumava olhar para toda a gente que por mim passava, e interrogar-me, com uma curiosidade mórbida, sobre o tipo de vida que teriam. Alguns deles fascinavam-me. Outros amedrontavam-me. Pairava no ar um subtil veneno. Eu desenvolvera a paixão pelas sensações... Bem, uma certa noite, depois das sete horas, decidi sair em busca de uma aventura. Senti que esta nossa cinzenta e monstruosa Londres, com as suas miríades de gente, os seus sórdidos pecadores e os seus tremendos pecados, segundo as tuas próprias palavras, me reservava certamente qualquer coisa de especial. .... Não sei do que estava à espera e vagueei para leste, e não tardei a perder-me num labirinto de ruas sujas e pracetas escuras e sem relva. Cerca das oito e meia, passei por um teatrinho ridículo, iluminado a bicos de gás e forrado de cartazes berrantes. À entrada, estava um judeu hediondo, com o colete mais espantoso que alguma vez vi, fumando um charuto reles. Tinha um cabelo oleoso aos caracóis e no peitilho da sua camisa suja reluzia um enorme diamante. “Quer um camarote, meu Lorde?”, disse ele, quando deu por mim, e tirou o chapéu com ar de ostensivo servilismo. Havia qualquer coisa nele que me divertia, Harry, de tal modo era monstruoso....”
Na véspera do 38º aniversário de Dorian Gray (capítulo XVIII), no encontro fatal deste com Basil Hallward, que o critica pela vida pecaminosa que leva – “Acho bem que saibas que em Londres se contam sobre ti as coisas mais hediondas” – eis um comentário de Dorian sobre a sociedade inglesa, que Óscar Wilde parece impregnar do veneno do seu pessimismo virulento, em autodefesa e retaliação contra a condenação social que o atingiu tão rudemente: “Eu sei o que as pessoas gostam de mexericos em Inglaterra. A classe média alardeia os seus preconceitos morais nos seus jantares ordinários, e segredam uns com os outros sobre o que apodam de libertinagem naqueles que lhes são superiores, para fingirem que pertencem à alta sociedade e fazerem-se íntimos das pessoas que caluniam. Neste país basta um homem ter classe e inteligência para que todas as línguas vulgares o difamem. E que tipo de vida levam essas pessoas que fazem julgamentos morais? Meu caro amigo, esqueces-te que vivemos na pátria dos hipócritas.” “ – Dorian – gritou Hallward, não é isso que está em causa. Bem sei que a Inglaterra é bastante má e que a sociedade inglesa está completamente pervertida. É por isso que eu quero que tu sejas bom...”
É igualmente negativa a opinião de James Vane, irmão de Sybil, sobre Londres “Não me parece que volte a ver esta horrível Londres”, ao desejar, ameaçadoramente, afastá-la, do “Príncipe Encantado”, como ela apelidava o seu apaixonado Dorian Gray (capítulo V).
Quanto ao descritivo dos costumes, por nos recordar idêntico espaço de colorido e som, duas vezes percorrido, do musical de George Cukor “My Fair Lady”, transcrevemos o quadro matinal do movimento pictórico do mercado, perto do Convent Garden, atravessado por Dorian Gray, destroçado, após a ruptura com Sybil, (por esta, toda entregue à paixão pelo seu Príncipe Encantado, que a beijara, ter representado mal o seu papel de Julieta (capítulo VII)): “Ao raiar do dia, encontrou-se perto de Convent Garden. As trevas dissiparam-se e, ruborizado por débeis fogos, o céu encovou-se numa pérola perfeita. Grandes carroças cheias de lírios vacilantes rodavam lentamente pela rua vazia e limpa.O ar impregnava-se do perfume das flores e a sua beleza trazia-lhe um antídoto para a dor que sentia. Seguiu para o mercado e contemplou os homens descarregando os carros. Um carreteiro de bata branca ofereceu-lhe umas cerejas. Agradeceu-lhe e espantou-se de o homem se recusar a aceitar dinheiro por elas (ao contrário das tentativas de Elisa Doolittle de impingir as suas flores) começando a comê-las distraidamente. Tinham sido colhidas à meia noite e a frieza do luar penetrara-as. Uma imensa fila de rapazes carregando grades de tulipas desfolhadas e de rosas amarelas e vermelhas desfilou diante dele, abrindo caminho por entre as altas colunas de vegetais de verde jade. Sob o pórtico, com os seus pilares cinzentos caiados pelo sol, arrastava-se um bando de mulheres desleixadas e de cabeças descobertas, aguardando que terminasse a lota. Outras apinhavam-se de roda das portas giratórias do café da Plazza. Os enormes cavalos das carroças tropeçavam nas pedras toscas, e pisavam-nas, agitando os seus sinos e arreios. Alguns dos carroceiros dormiam sobre uma pilha de sacas. De papos irisados e patas róseas, os pombos voltejavam debicando grãos.”
A crítica social n’ “O Mandarim” está, naturalmente impregnada da graça malandra da sátira costumeira de Eça de Queirós, iniciada com a autocaricatura do narrador-personagem Teodoro, ofuscado com a fortuna que milagrosamente o bafeja. Todo um discurso de exagero, dinamismo e sonoridade, onde a palavra sintética “ouro” soa como um tiro e as imagens decorrem no visualismo hiperbólico denunciador de avidez e bestialidade, insensível a conselhos de moderação, mas também de uma riqueza demasiado recente para poder destacar já a necessária distância e altivez perante o chefe, embora insensível com a pobreza pedinte (capítulo II): “Aí, arremessei para cima do balcão um papel sobre o Banco de Inglaterra de mil libras, e soltei esta deliciosa palavra! “ - Ouro!” Um caixeiro sugeriu-me com doçura: “ – Talvez lhe fosse mais cómodo em notas...” Repeti secamente: “- Ouro!” “Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado, icei-me para uma caleche. Sentia-me gordo, sentia-me obeso; tinha na boca um sabor de ouro, uma secura de pó de ouro na pele das mãos; as paredes das casas pareciam-me faiscar como longas lâminas de ouro: e dentro do cérebro ia-me um rumor surdo onde retilintavam metais – como o movimento de um oceano que nas vagas rolasse barras de ouro.” “Abandonando-me à oscilação das molas, rebolante como um odre mal firme, deixava cair sobre a rua, sobre a gente, o olhar turvo e tedioso do ser repleto. Enfim, atirando o chapéu para a nuca, estirando a perna, empinando o ventre, arrotei formidavelmente de flatulência ricaça...” “Muito tempo rolei assim pela cidade, bestializado num gozo de nababo.” “Subitamente um brusco apetite de gastar, de dissipar ouro, veio-me enfunar o peito como uma rajada que incha uma vela.” “ A parelha estacou. Procurei em redor com a pálpebra meio cerrada alguma coisa para comprar – jóia de rainha ou consciência de estadista; nada vi; precipitei-me então para um estanco:” “ – Charutos! De tostão! De cruzado! Mais caros! De dez tostões!” “- Quantos?... perguntou-me servilmente o homem.” “- Todos! - respondi com brutalidade. “À porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao seio, estendeu-me a mão transparente. Incomodava-me procurar os trocos de cobre por entre os meus punhados de ouro. Repeli-a, impaciente: e, de chapéu sobre o olho, encarei friamente a turba.” “ Foi então que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do meu director-geral: imediatamente achei-me com o dorso curvado em arco e o chapéu cumprimentador roçando as lajes. Era o hábito da dependência: os meus milhões não me tinham dado ainda a verticalidade à espinha...”
Espaços de ostentação e requinte (evidenciando o conhecimento de Eça nos variados domínios da arte e da cultura), surgem seguidamente (capítulo III), de mistura com os novos hábitos de ricaço, já reverenciado pela turba que dantes o desprezava, na sua insignificância de amanuense. O seu nome corre fronteiras pelo mundo inteiro. Mas as personagens caricaturadas, são agora tomadas na abstracção das classes sociais, tirando Madame Marques que, desde que o sabia rico, o tratava a arroz doce, enquanto não saiu de sua casa, para o palacete amarelo, ao Loreto. Uma desastrosa paixão por uma Cândida pequenina e loura, que lhe chamava “o seu anjo Totó”, recebendo-lhe as notas com timidez e escrevendo a um “alferes da vizinhança”, “de dedinho no ar”, servirá à sua experiência sobre a traição feminina: “Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito, como uma planta venenosa. Descri para sempre dos anjos louros, que conservavam no olhar azul o reflexo dos céus atravessados; de cima do meu ouro deixei cair sobre a Inocência, o Pudor e outras idealizações funestas, a ácida gargalhada de Mefistófeles: e organizei friamente uma existência animal, grandiosa e cínica.”
“Ao bater do meio dia entrava na minha tina de mármore cor-de-rosa, onde os perfumes derramados davam à água um tom opaco de leite; depois pajens tenros, de mão macia, friccionavam-me com o cerimonial de quem celebra um culto: e embrulhado num robe de chambre de seda da Índia, através da galeria, dando aqui e além um olhar aos meus Fortunys e aos meus Corots, entre alas silenciosas de lacaios, dirigia-me ao bife à inglesa, servido em Sèvres azul e ouro.” “O resto da manhã, se havia calor, passava-o sobre coxins de cetim cor de pérola, num boudoir em que a mobília era de porcelana fina de Dresda e as flores faziam um jardim de Armida; aí saboreava o Diário de Notícias, enquanto lindas raparigas, vestidas à japonesa refrescavam o ar, agitando leques de plumas.” “De tarde ia dar uma volta a pé, até ao Pote das Almas: era a hora mais pesada do dia: encostado à bengala, arrastando as pernas moles, abria bocejos de fera saciada – e a turba abjecta parava a contemplar, em êxtases, o nababo enfastiado!” ... “Ao começo da noite um criado, para anunciar o jantar, fazia soar pelos corredores na sua tuba de prata, à moda gótica, uma harmonia solene. Eu erguia-me e ia comer, majestoso e solitário. Uma populaça de lacaios, de librés de seda negra, servia, num silêncio de sombras que resvalam, as vitualhas raras, vinhos do preço de jóias: toda a mesa era um esplendor de flores, luzes, cristais, cintilações de ouro: - e enrolando-se pelas pirâmides de frutos, misturando-se ao vapor dos pratos, errava, como uma névoa subtil, um tédio inenarrável...” “Depois, apopléctico, atirava-me para o fundo do cupé – e lá ia às Janelas Verdes onde nutria, num jardim de serralho, entre requintes muçulmanos, um viveiro de fêmeas: revestiam-me duma túnica de seda fresca e perfumada – e eu abandonava-me a delírios abomináveis... Traziam-me semimorto para casa, ao primeiro alvor da manhã: fazia maquinalmente o meu sinal da cruz, e daí a pouco roncava de ventre ao ar, lívido e com um suor frio, como um Tibério exausto.”
“Entretanto Lisboa rojava-se a meus pés. O pátio do palacete estava constantemente invadido por uma turba: olhando-a enfastiado das janelas da galeria, eu via lá branquejar os peitilhos da Aristocracia, negrejar a sotaina do Clero, e luzir o suor da plebe: todos vinham suplicar, de lábio abjecto, a honra do meu sorriso e uma participação no meu ouro. Às vezes consentia em receber algum velho de título histórico: - ele adiantava-se pela sala, quase roçando o tapete com os cabelos brancos, tartamudeando adulações; e imediatamente, espalmando sobre o peito a mão de fortes veias onde corria um sangue de três séculos, oferecia-me uma filha bem-amada para esposa ou para concubina.” “Todos os cidadãos me traziam presentes como a um ídolo sobre o altar – uns odes votivas, outros o meu monograma bordado a cabelo, alguns chinelos ou boquilhas, cada um a sua consciência. Se o meu olhar amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher – era logo ao outro dia uma carta em que a criatura, esposa ou prostituta, me ofertava a sua nudez, o seu amor, e todas as complacências da lascívia.” “Os jornalistas esporeavam a imaginação para achar adjectivos dignos da minha grandeza; fui o sublime Sr. Teodoro, cheguei a ser o celeste Sr. Teodoro; então, desvairada, a Gazeta dos Locais chamou-me o extraceleste Sr. Teodoro! Diante de mim nenhuma cabeça ficou jamais coberta – ou usasse a coroa ou o coco. Todos os dias me era oferecida uma presidência de ministério ou uma direcção de confraria. Recusei sempre, com nojo.” “ Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da monarquia. O Fígaro, cortesão, em cada número falou de mim, preferindo-me a Henrique V; o grotesco imortal, que assina Saint-Genest, dirigiu-me apóstrofes convulsivas, pedindo-me para salvar a França; e foi então que as as Ilustrações estrangeiras publicaram, a cores, as cenas do meu viver. Recebi de todas as princesas da Europa envelopes, com selos heráldicos, expondo-me, por fotografias, por documentos, a forma dos seus corpos e a antiguidade das suas genealogias. Duas pilhérias que soltei durante esse ano foram telegrafadas ao Universo pelos fios da Agência Havas; e fui considerado mais espirituoso que Voltaire, Rochefort, e que esse fino entendimento que se chama Todo-o-Mundo. Quando o meu intestino se aliviava com estampido – a humanidade sabia-o pelas gazetas. Fiz empréstimos aos reis, subsidiei guerras civis – e fui caloteado por todas as repúblicas latinas que orlam o golfo do México.” “E eu, no entanto, vivia triste...”
A dimensão verdadeiramente orgiástica das referências às adulações e subserviências oportunistas, embora de expressão caricaturalmente hiperbólica, não deixa de apresentar, para lá da pilhéria e do conhecimento humano que traduz, uma absoluta veracidade e actualidade permanente, como verificamos a cada passo, nesta era de poderosíssimos meios de expressão audiovisual, em que multidões se rojam aos pés dos ídolos milionários, ou outros.
O apodo de orgiástico, à maneira, igualmente, do Fausto de Goethe, que com Mefistófeles parte em busca do absoluto saber, através das mais incríveis experiências de todos os domínios do saber, parece apropriado também a todo o capítulo XI de “O Retrato de Dorian Gray”, como síntese da evolução espiritual e vivencial do protagonista, dependente das teorias de um livro oferecido por Lord Henry, que considerava a esterilidade dos sistemas especulativos e se apoiava na experiência, como factor dominante de aprendizagem. Cultivando a beleza e a juventude sem mancha que permanecia no seu corpo, em contraste com as horríveis transfigurações do seu retrato escondido, “a violência do contraste tornava-lhe mais agudo o seu sentimento de prazer. Cada vez se enamorava mais da sua própria beleza, cada vez se interessava mais pela corrupção da sua própria alma...” ...“Quanto mais sabia mais desejava saber. Tinha apetites loucos que se tornavam mais vorazes se os saciava”. Era igualmente admirado e adulado pela sociedade que frequentava e que recebia em casa, em jantares íntimos organizados por Lord Henry, “tão famosos pela criteriosa selecção e disposição estratégica dos convidados, como pelo gosto requintado da decoração da mesa, com os seus arranjos sinfónicos de flores exóticas, e toalhas bordadas, e baixela antiga de ouro e prata...”
Assim, no sentido de obter os seus conhecimentos pela experiência, Dorian Gray, por muito que sentisse interesse momentâneo pelas teorias místicas ou filosóficas, “todas as teorias da vida lhe pareciam insignificantes comparadas com a própria vida. Estudou os perfumes, na sua relação com a vida sensual, mais tarde dedicou-se à música, dando curiosos concertos em que misturava instrumentos e músicos diversos pertencentes aos mais diversos povos, modernos e antigos. “As fantásticas características destes instrumentos fascinavam-no e comprazia-se na ideia de que a Arte, tal como a Natureza, tem também os seus monstros, coisas de forma bestial e vozes hediondas. Contudo, passado algum tempo, cansou-se deles, e passou a sentar-se no seu camarim na Ópera, sozinho ou com Lorde Henry, ouvindo com arrebatado prazer o Tannauser, e vendo no prelúdio da grande obra de arte a exposição da tragédia da sua própria alma.”
Veio depois a paixão pelas jóias, com riquíssimas colecções e o seu estudo, com os exemplos da história : “Que requintada fora a vida de outrora! Que magnífico o seu esplendor e ornamentação! Era maravilhosa a simples leitura dos luxos a que se entregavam os mortos.”
“Então voltou-se para os bordados e as tapeçarias que substituíam os frescos nas salas frias dos países nórdicos europeus. Ao investigar o assunto – e tinha sempre uma extraordinária capacidade para se embrenhar completamente nos temas que o ocupavam em determinado momento – lamentou profundamente o reflexo da ruína que o Tempo provoca nas coisas belas e maravilhosas. Ele, pelo menos, conseguira escapar a essa degradação...” E através da história interrogou-se sobre o paradeiro dos inúmeros exemplos de bordados e tapeçarias oferecidos pelos reis e outros nobres, procurando, “durante um ano inteiro, acumular os mais requintados exemplares de lavores têxteis e bordados que pudesse encontrar...”, seguindo-se a citação profusa dessas maravilhas. O mesmo se dirá do relato de paramentos eclesiásticos que guardava nos “grandes baús de cedro que forravam a galeria oeste das sua casa...”
Todos esses tesouros representavam para ele formas de esquecimento do permanente terror em que vivia mergulhado, sobretudo quando contemplava a “hedionda imagem” do retrato, que cobrira com uma “colcha púrpura e dourada” num “quarto solitário e trancado a sete chaves”. Começa uma vida dupla, cada vez mais desregrada, de uma vida social requintada mas, a ocultas desta, a vida degradada e criminosa em que chafurdava, nos bairros mais recônditos, equiparando-se aos exemplos dos grandes vultos da História, de cujas biografias se rodeava à saciedade, como justificação dos seus próprios actos.
Todo este capítulo XI, revelador da extraordinária qualidade cultural de Óscar Wilde, constitui, pois, a síntese de uma filosofia hedonista, que põe a tónica no gozo dos prazeres, na experiência vivida, na libertação dos conceitos teóricos que não sejam fundamentados através da vivência, sem os preconceitos dualistas do Bem ou do Mal, segundo os ensinamentos do seu mentor Lord Henry.
O desenlace (Cap. XX), revela um protagonista cada vez mais transtornado com a vida dupla que leva, desejando regressar à pureza primitiva, reconhecendo nos traços hediondos do outrora belo retrato feito por Basil (que ele assassinara), a hediondez da sua alma que o seu corpo preservara e a impossibilidade de retomar tal pureza. Com a faca com que apunhalara Basil, rasgou o retrato daquele, soltando gritos pavorosos. Mas foi o seu corpo hediondo – tal como o de Tchartkov – que foi descoberto, e o quadro de Basil mantendo todo o esplendor da sua beleza.
As três obras, de escritores posicionados em igual século XIX e igual escola literária – o realismo – embora em espaços limítrofes da Europa bastante divergentes, revelam, pois, dentro da especificidade dos estilos e intenções – mais sério, moralista, e até didáctico o de Gogol, mais risonho - sátira prazenteira - o de Eça, de um conceito anti-burguês mais contundente e destrutivo, o de Óscar Wilde - revelam, digo, na aliança entre o descritivo do fantástico e da realidade contemporânea e universal, uma extrema capacidade de análise e de humor, mas sobretudo um grande conhecimento da psicologia humana e da tragédia a que o excesso de ambição conduz invariavelmente o ser humano, Ícaro de asas de cera, despenhado.
Daí que recorramos, em síntese globalizante, ao soneto de António Botto (1897/1959), que funcionará ainda como homenagem aos três grandes escritores e suas obras ficcionais do estudo feito:
“Homem que vens de humanas desventuras
Que te prendes à vida, te enamoras,
Que tudo sabes mas que tudo ignoras
Vencido herói de todas as loucuras.
“Que te ajoelhas pálido nas horas
Das tuas infinitas amarguras
E na ambição das causas mais impuras
És grande simplesmente quando choras.
“Que prometes cumprir para esquecer
E trocando a virtude no pecado
Ficas brutal se ele não der prazer.
“Arquitecto do sonho e da ilusão
Ridículo palhaço articulado,
Eu sou teu companheiro, teu irmão.