quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Fofocas elegantes


Para distrair das danças de um mundo ensarilhado… Mas julgo que as despesas da dança foram por conta própria, sem comezainas governativas por conta alheia, como acontece por aqui. Enfim, como diria o nosso Torga “A vida é feita de nadas”. O que não é tão verdadeiro assim, responderão os Zelenskys cumpridores, noutra onda… e até a própria Sanna, que parece que também sabe ser inteligentemente cumpridora, em ondas diversas, de vária rebentação, pelo que se lê, e que pode não interessar assim tanto…

I TEXTO: Hillary Clinton entra na onda de apoio à primeira-ministra finlandesa com uma foto e um apelo: “Continua a dançar”

A política norte-americana Hillary Clinton entrou na onda de apoio a Sanna Marin, a primeira-ministra da Finlândia. A imagem do momento a dançar é do período em que foi Secretária de Estado.

CÁTIA ROCHA: Texto

OBSERVADOR, 28 ago 2022

Hillary Clinton, que em 2016 concorreu nas eleições presidenciais contra Donald Trump, juntou-se à onda de apoio à primeira-ministra finlandesa Sanna Marin. Um vídeo da política finlandesa a dançar com amigos numa festa gerou controvérsia entre os mais conservadores.

Depois disso, gerou-se uma onda de apoio a Sanna Marin, com mulheres finlandesas (e não só) a partilharem vídeos e fotografias a dançar. Em muitas das publicações é referido que o facto de se dançar numa festa não é sinónimo de ausência de competência.

É nesse sentido que é feita a publicação da norte-americana Hillary Clinton. Este domingo, usou a rede social Twitter para partilhar uma imagem onde é vista a dançar.

 “Como disse Ann Richards [a primeira mulher a ser governadora do Texas, em 1991]”, partilhou Clinton, “a Ginger Rogers fez tudo o que o Fred Astaire fez. Só que fê-lo ao contrário e em saltos altos”.

“Aqui estou eu a dançar em Cartagena quando estava lá para uma reunião enquanto Secretária de Estado”, contextualizou a política norte-americana. “Continua a dançar, Sanna Marin.”

Hillary Clinton foi Secretária de Estado entre 2009 e 2013, durante a administração de Barack Obama. Entre 2001 e 2009 foi Senadora do Estado de Nova Iorque. Em 2016, concorreu à presidência dos Estados Unidos pelo partido democrata, enfrentando Donald Trump.

Um vídeo de Sanna Marin a dançar numa festa com celebridades gerou polémica na Finlândia na semana passada. Nas imagens surgiam também o deputado social-democrata finlandês Ilmari Nurminen, que é presidente da Câmara Municipal de Tampere, a cantora finlandesa Alma e a irmã, Anna, a fotógrafa Janita Autio, a apresentadora Tinni Wikström, a locutora Karoliina Tuominen e o estilista Vesa Silver.

Sanna Marin disse que “não tinha nada a esconder” após a divulgação das imagens e disponibilizou-se a fazer um teste de despiste de drogas – que teve resultado negativo.

HILLARY CLINTON   ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA   AMÉRICA   MUNDO   FINLÂNDIA   EUROPA

 

II TEXTO: Filha de uma família arco-íris, medíocre na escola, hoje é “a primeira-ministra mais fixe do mundo”. A vida e as polémicas de Sanna Marin

Filha de uma família pobre e pouco convencional, foi uma aluna medíocre e aos 34 anos chegou a PM — mas não deixou de fazer a vida de sempre. As polémicas, os críticos e os fãs de Sanna Marin.

TÂNIA PEREIRINHA: Texto

OBSERVADOR, 28 ago 2022, 21:4563

Quando, em maio deste ano, o Figaro publicou um perfil de Sanna Marin — “A dama de ferro finlandesa” — e escolheu garantir, logo a abrir, que os tempos em que a primeira-ministra era notícia por ir para a discoteca depois de um alegado contacto de risco ou por ter postado uma fotografia com um vestido novo eram passado, talvez tenha subestimado o verão finlandês e o seu sol que nunca se põe.

Isso e a personalidade da líder do SDP, o Partido Social-Democrata da Finlândia, que ao ser nomeada para o cargo em dezembro de 2019, com apenas 34 anos, fez sempre questão de garantir que a política nunca a mudaria enquanto pessoa.Parte inferior do formulário

Dizia o jornal francês, a guerra na Ucrânia tinha mudado “radicalmente” o status quo e não apenas a imprensa mas também a oposição finlandesas estavam “unidas” em torno da mulher que visitou Zelensky em Kiev, esteve em Bucha e Irpin, e acabou com a tradicional neutralidade nacional, liderando agora o país rumo à adesão à NATO — e anunciou recentemente que vai reduzir de forma drástica o número de vistos concedidos aos turistas russos. Sabe-se agora, três meses e uma mudança de estação depois, que a união não será assim tão forte. Em menos de uma semana, a primeira-ministra da Finlândia, agora com 36 anos, encheu páginas na imprensa nacional e internacional, primeiro por se ter deixado filmar a cantar, dançar e fazer poses com um grupo de amigos, numa festa privada; logo a seguir por ter vindo a público uma fotografia de duas conhecidas influencers, suas amigas, tirada em Kesäranta, a residência oficial dos primeiros-ministros finlandeses, em Helsínquia, enquanto se beijavam na boca, despidas da cintura para cima — um cartaz com o nome do país estrategicamente posicionado fez com que a imagem não fosse banida das redes sociais e pudesse ser livremente publicada em primeiras páginas e aberturas de telejornais.

"Estivemos na sauna, nadámos e passámos tempo juntos. Este tipo de fotografias não deveriam ter sido tiradas, mas, tirando isso, nada de extraordinário aconteceu no convívio"

À primeira polémica, Sanna Marin começou por responder com a descontração que lhe é característica — em junho, por exemplo, anunciou ao país que estava curada da Covid com uma story no Instagram, de calções curtos pretos e soutien desportivo da mesma cor, a fazer lançamentos num campo de basquetebol; nas suas redes sociais ficou conhecida por tanto partilhar momentos de cerimónias e viagens oficiais, como receitas de massa com molho de tomate ou fotografias a amamentar a filha, nascida em 2018.

“Espero que no ano 2022 se aceite que até os governantes dançam, cantam e vão a festas. Não queria que estas imagens se tivessem espalhado, mas cabe aos eleitores decidir o que pensam sobre o assunto”, disse na passada semana aos jornalistas que a questionaram.

Logo a seguir, quando se disseminou a teoria de que poderia ter havido consumo de substâncias ilícitas na festa, em grande parte alimentada por Riikka Purra, a líder do Partido dos Finlandeses, de extrema-direita e a segunda maior força no Parlamento do país, Sanna Marin respondeu com um teste de drogas.

Que, sem surpresas de maior, pelo menos para Janne M. Korhonen, analista político, deu negativo. “Este é provavelmente o escândalo mais estúpido que já vi, e já vi alguns bastante estúpidos”, escreveu no Twitter na semana passada, numa espécie de resumo do caso para os não falantes de finlandês, depois de explicar que a hipótese droga teria sido colocado em cima da mesa, que é como quem diz nas redes sociais, por um “conhecido neonazi” que garantiu ter ouvido, algures no vídeo, a expressão “jauhojengi”, qualquer coisa como “gangue da farinha”.

“Note-se que um perito convenientemente anónimo diz que alguém no áudio está a falar de ‘farinha’ e que tanto polícia, como jornalistas de crime e investigadores dizem que essa não é sequer uma palavra usada na cultura finlandesa da droga”, garantiu Korhonen, descrito pelo Euronews como uma espécie de autoridade do Twitter para a tradução e descodificação da política finlandesa para o resto do mundo.

Problema: à segunda polémica, a da fotografia das influencers em topless, alegadamente tirada em Kesäranta, para onde Sanna Marin se mudou com o marido e a filha, agora com 4 anos, a meio de 2020, para facilitar a gestão da pandemia, Janne M. Korhonen já não twittou.

E a primeira-ministra finlandesa também respondeu de forma diferente — pediu desculpa, admitiu que a fotografia “não é apropriada” e explicou que foi tirada em julho, na casa de banho de hóspedes da residência oficial, depois de uma noite passada no Festival de Ruisrock, o segundo festival de rock mais antigo do mundo, na ilha de Ruissalo, perto de Turku, a mais de 150 quilómetros de Helsínquia. “Estivémos na sauna, nadámos e passámos tempo juntos. Este tipo de fotografias não deveriam ter sido tiradas, mas, tirando isso, nada de extraordinário aconteceu no convívio”, disse Sanna Marin, que passados dois dias, na quarta-feira, chegou a chorar por causa do escândalo, o maior por que já passou, na sua não tão curta vida política.

A polémica do blaser, os hashtags de apoio e as lágrimas

“Ela não surge do nada. E é bastante apreciada”, explicou aquando da sua nomeação para o cargo, no final de 2019, Johanna Kantola, professora de estudos de género na Universidade de Tampere, justamente a alma mater de Sanna Marin, ao New York Times.

Presidente da autarquia local entre 2013 e 2017, a atual primeira-ministra finlandesa começou a captar as atenções nacionais nesse período, através dos vídeos das sessões camarárias, transmitidos via YouTube. “Foi bastante admirada pela forma como conseguia gerir toda a situação. É muito centrada nos assuntos e nas políticas, por isso quer falar sobre eles, não atrair atenções sobre si própria”, acrescentou a professora nessa altura.

Esta não foi a primeira vez desde que se tornou primeira-ministra que Marin foi notada por outros aspetos que não as suas decisões políticas. Em outubro de 2020, quando se deixou fotografar para a capa da revista feminina Trendi, a acompanhar uma entrevista em que falou sobre as exigências do trabalho e a dificuldade que sentia em equilibrá-lo com a vida familiar, Sanna Marin foi acusada de estar a desperdiçar o tempo que devia empregar na gestão da pandemia no país. Mas o que mais polémica causou foi a roupa escolhida para a produção fotográfica: um conjunto de calças e blaser pretos — sem camisa nem roupa interior sob o casaco.

Na altura, as redes sociais encheram-se com o hashtag #imwithsanna, “estou com Sanna”, e de fotografias de homens e mulheres de casaco preto sem nada por baixo. Agora, a onda de solidariedade foi ainda maior. Para além de Antti Lindtman, líder do grupo parlamentar do SPD, também Annika Saarikko, presidente do Partido do Centro, o segundo maior da coligação do governo, a segurou. Os vídeos de mulheres a dançar multiplicaram-se nas redes sociais (o hashtag mais popular é #solidaritywithsannamarin). E foram vários os políticos de todo o mundo a declarar o seu apoio à primeira-ministra, considerada um dos membros mais à esquerda do SDP e, pelo menos para os seus seguidores no Instagram, como notou recentemente o alemão Bild, “a primeira-ministra mais fixe do mundo”.

Melanie Vogel, senadora francesa do Europa Ecologia – Os Verdes, recorreu ao Twitter: “Os líderes políticos fazem festas. Por vezes também se embebedam, ressonam, caem, riem, sujam a roupa, dançam, vomitam. Eles são seres humanos. Superem isso”. Fiona Patten, a australiana que é líder do Reason e que em 2009 fundou o controverso Partido do Sexo, também: “Se libertar a tensão numa festa é a pior coisa que a vossa primeira-ministra já fez, então vocês são um país com muita sorte”, escreveu a deputada do parlamento de Victoria naquela rede social.

Ainda assim, Sanna Marin acusou a pressão e esta quarta-feira, num discurso no mercado de Lati, cidade no sul da Finlândia, desabou em palco. “Esta semana não foi fácil na minha vida. Na verdade, tem sido bem difícil. Quero acreditar que as pessoas olham para o que fazemos no trabalho e não para o que fazemos no nosso tempo livre”, disse entre lágrimas. “Também sou humana. Por vezes também eu, no meio destas nuvens escuras, anseio por alegria, luz e diversão. É privado, é prazer, é vida, mas não perdi nenhum dia de trabalho, não faltei a nenhuma tarefa.

O fardo de ser “uma mulher jovem” e as críticas dos parceiros de coligação

Na altura em que tomou posse, em substituição do veterano Antti Rinne, que resignou ao cargo menos de seis meses após ter formado governo, Sanna Marin tornou-se a primeira-ministra mais jovem do mundo, recorde que manteve durante menos de um mês — a finlandesa chegou ao cargo a 10 de dezembro de 2019, aos 34, o democrata-cristão–conservador Sebastian Kurz foi eleito a 7 de janeiro de 2020 na Áustria, com apenas 33.

A coligação que passou a comandar, e que junta SPD, Partido do Centro, Aliança dos Verdes, Aliança de Esquerda e Partido Popular Sueco da Finlândia, todos liderados por mulheres, quatro delas à data com menos de 35 anos, rapidamente se tornou sensação no mundo inteiro.

Sobretudo pelos motivos errados, confessou, não sem alguma exasperação, logo em janeiro de 2020, numa entrevista à Vogue britânica.

“Em todos os cargos em que já estive, o meu género foi sempre o ponto de partida — sou uma mulher jovem. Espero que um dia não seja um problema, que esta pergunta não seja feita. Quero fazer um trabalho tão bom quanto possível. Não sou melhor nem pior do que um homem de meia-idade”, disse Marin, para depois recordar uma pergunta que lhe tinham feito, escassos dias antes, num painel em Davos, sobre como e onde é que o seu governo de mulheres se reunia.

“Funciona como qualquer governo. Não nos encontramos num balneário feminino e temos conversa de balneário”, foi a resposta que deu. “Se eu não conseguir, se falhar — porque sou uma política e, como todos sabemos, as coisas nem sempre correm como queremos — não quero que isso seja interpretado como ‘Claro que falhou, falhou porque era uma mulher jovem’”, disse à Vogue a primeira-ministra finlandesa, que se filiou na juventude do SPD em 2006, aos 19 anos, e diz ter nas alterações climáticas, na igualdade e no bem-estar social as principais prioridades.

Uma das metas do seu governo, tida como uma das mais ambiciosas em todo o mundo, foi a de atingir a neutralidade carbónica nacional já em 2035. Mas, justamente ao longo desta semana “bem difícil”, Marin viu a Aliança dos Verdes vetar uma proposta do SPD, que queria, de forma excecional, conceder mais direitos de emissão num esforço de contenção do aumento dos preços da eletricidade. A líder, Maria Ohisalo, chamou-lhe um “retrocesso”. O eurodeputado Ville Niinistö aproveitou a deixa para ir mais longe e, em entrevista ao tabloide Ilta-Sanomat, acusou a primeira-ministra de não converter em políticas aquilo que apregoa publicamente, agora que se transformou numa “estrela internacional”.

 “Durante o ano passado, o perfil da primeira-ministra voltou-se mais fortemente para o branding de imagem através das redes sociais e da imprensa internacional. Isso por si só não me incomoda, porque todos os políticos fazem o mesmo. Mas estão a tentar criar uma imagem dela como precursora progressiva de uma nova geração de feminismo e essa imagem não corresponde à realidade”, atacou o parceiro de coligação, para depois acusar Marin de se aliar “repetidamente” à linha centrista do governo e de se “opor à protecção da natureza e à legislação climática na União Europeia”.

A vendedora, filha de uma família arco-íris, que se tornou primeira-ministra

Eleita pela primeira vez para o Parlamento finlandês em 2015 (já na qualidade de vice-presidente do SPD), reeleita em 2019 e, nessa altura, feita ministra dos Transportes e das Comunicações, para em menos de meio ano assumir a liderança do governo, a vida de Sanna Marin nunca foi fácil, fez questão de reiterar numa série de entrevistas e de escrever até no seu blogue pessoal.

E nem sequer se estava a referir ao episódio com Mart Helme, o na altura ministro do Interior da Estónia e presidente do EKRE, o Partido Popular Conservador, que depois de a ver substituir Antti Rinne não apenas questionou a sua competência como fez comentários ostensivos sobre os anos em que, ainda estudante, trabalhou numa padaria, a distribuir jornais e na caixa de uma loja.

“Lembro-me de Vladimir Ilyich Ulianov a dizer que todos os empregados de cozinha podiam tornar-se ministros, ou lá o que foi que ele disse. Agora vemos que uma vendedora se tornou primeira-ministra e que há outros activistas de rua e pessoas sem instrução que também se tornaram membros do governo”, disse o político numa rádio da Estónia, dando origem a um incidente diplomático que acabou com Kersti Kaljulaid, então presidente do país, a pedir desculpas ao homólogo finlandês, Sauli Niinistö.

Nascida em Helsínquia a 16 de Novembro de 1985, filha única de uma órfã e de um alcoólico (que já tinha outros dois filhos, de uma anterior relação), Sanna Mirella Marin destacou-se numa família pobre — foi a primeira a frequentar o ensino secundário, onde admite ter tido um “desempenho medíocre”, e a primeira a chegar à universidade, “graças ao estado social finlandês e a professores encorajadores e exigentes”, escreveu no seu site pessoal em 2016.

Tinha apenas 2 anos quando os pais se separaram — “O meu pai tinha um problema com a bebida, e a relação não funcionava”, contou numa entrevista em agosto do ano passado, após a morte de Lauri Marin, aos 65 anos. “Ele não teve qualquer contacto comigo. Não me lembro de ter recebido nenhum cartão de aniversário ou qualquer outro tipo de contacto. Quando eu era criança, a minha mãe ainda tentou manter-se em contacto, mas depois desistiu”, revelou a primeira-ministra, para depois confirmar que não, não tinha estado presente no funeral. “Eu não cresci com o meu pai. Não sinto que ele faça parte da minha família. As famílias das pessoas são diferentes.”Configurar

A de Sanna Marin, na década de 1990, foi seguramente diferente, assumiu também em várias ocasiões: depois do divórcio, a mãe refez a vida com outra mulher, à data um tabu no país que só em 2017 aprovou finalmente o casamento entre pessoas do mesmo sexo. “Havia um silêncio a este respeito. E eu senti esse silêncio. Não me sentia bem, ao crescer, que houvesse esse silêncio”, disse à Vogue a primeira-ministra, que cresceu em várias cidades da Finlândia, antes de finalmente se fixar em Tampere, 180 quilómetros a norte de Helsínquia.

“Sou filha de uma família arco-íris. Para mim, os direitos humanos, a igualdade ou a igualdade das pessoas nunca foram questões de opinião, mas a base do meu entendimento moral”, já tinha escrito no seu site, onde explicou também por que motivo se aproximou da política, que à partida lhe tinha parecido tão distante da sua realidade. “O estado social ou as regras do local de trabalho não são um dado adquirido, mas o resultado de um trabalho árduo. A social-democracia pareceu-me um movimento a favor da igualdade, liberdade e paz.”

Na Universidade de Tampere, que em 2020 a distinguiu, Sanna Marin estudou Ciências Administrativas, ao mesmo tempo que trabalhava para o departamento de juventude da cidade de Tampere e como assistente de loja. “Não contraí um empréstimo de estudante porque não confiava em mim para poder pagá-lo de volta. A situação teria certamente sido diferente se o rendimento da minha família tivesse sido mais elevado”, assumiu no mesmo texto.

Nessa altura, já namorava com Markus Räikkönen, o ex-jogador de futebol do clube local e actual empresário na área da energia eólica (que não faz parte da família do campeão de Fórmula 1), com quem casou em Kesaränta, em agosto de 2020, depois de 16 anos de relação.

Quando Emma Amalia nasceu, numa prova de que a defesa da paridade não é só para finlandês ver, decidiram dividir a licença parental de forma igual, seis meses para cada um. “Eu pude voltar ao trabalho, e ele pôde passar tempo de qualidade com a nossa filha. Eles agora têm uma relação muito boa. Penso que é muito importante que os pais tenham o direito de passar mais tempo com os filhos, é uma fase única na vida”, disse na mesma entrevista à Vogue a primeira-ministra, cujo governo anunciou em fevereiro de 2020 a intenção de aumentar para 14 meses as licenças parentais e de as tornar iguais para pais e mães.

Sobre a restante divisão de tarefas domésticas com o marido Sanna Marin nunca se manifestou publicamente mas o facto de, uma vez, ter feito referência à predileção que tem por fazer limpezas, atividade que, diz, a ajuda a relaxar e a pensar — “Porque te podes concentrar por completo apenas numa coisa concreta e ver imediatamente os resultados do trabalho”, explicou — voltou a suscitar-lhe dúvidas sobre a sociedade finlandesa e o lugar que as mulheres ocupam verdadeiramente nela.

Na primeira ocasião em que a encontraram depois de ter cometido essa inconfidênciarevelou à revista Trendi, a pergunta que os jornalistas lhe fizeram foi: “Limpou a casa antes de sair?”. Isto precisamente no dia em que seria eleita líder do SPD: “Em primeiro lugar, por que é que a limpeza é a primeira coisa que perguntam à primeira-ministra e à futura líder do partido quando ela chega à reunião do partido? Em segundo lugar, questiono-me sobre a discussão que surgiu sobre isso. Para mim, a limpeza é relaxamento e uma forma de não pensar em nada enquanto estou a fazer uma coisa física. É uma escolha pessoal, não uma declaração social.”

A 2 de abril de 2023 há eleições legislativas na Finlândia, a primeira prova de fogo para Sanna Marin, que, na verdade, e apesar de durante a pandemia ter atingido níveis de aceitação de 66%, não foi eleita pelo povo, mas pelos companheiros do partido. Nessa altura será possível perceber se os escândalos recentes fizeram mossa e se os actuais parceiros de coligação, que a avaliar pelas críticas recentes dos Verdes já foram mais próximos, se mantêm ao seu lado.

Em 2019, ao New York Times, a professora Johanna Kantola, da Universidade de Tampere, deixou claro que “obviamente” o que não faltavam no país eram pessoas que não estavam “felizes por terem uma liderança só de mulheres do governo”. Por muito que possa não ganhar as eleições, Sanna Marin já deixou assente: a justificação da idade ou do género nunca dará.

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terça-feira, 30 de agosto de 2022

Do lado de lá

 

Refiro-me à Rússia, aos seus habitantes, às suas tropas em especial – nos seus desconfortos físicos e espirituais, pois acredito que a maioria pensará como este paraquedista, tão absurda e criminosa nos parece ser esta guerra.

Trata-se da história dum soldado russo – Pavel Filatyev,  paraquedista - contada em entrevista ao The Guardian, reproduzida por Guilherme Pinheiro em “O PÚBLICO” de 20 de Agosto, de que me atrevo a transcrever alguns parágrafos. Um soldado que após um relato “de 141 páginas, sobre as suas experiências numa guerra forçada e profundamente injusta, do seu ponto de vista, foi obrigado a desterrar-se, naturalmente. Um homem consciente e honesto, obrigado a atacar um povo sem qualquer motivo justo, e que não só enfrenta uma provável morte ou ferimentos, como as impõe a pessoas injustamente atacadas, além das atrocidades de ter que roubar esses, para matar a sua própria fome, e sentir-se transformado num animal, besta-fera para defesa própria. Não resisto a transcrever essas linhas dolorosas:

«Não vejo justiça nesta guerra. Não vejo qualquer verdade aqui», “revelou ao jornal naquela que foi a primeira vez que se sentou perante um jornalista depois da publicação do seu relato. “Não tenho medo de lutar na guerra. Mas preciso sentir de justiça, entender que o que estou a fazer é o mais correcto. E acredito que tudo isso está a falhar não apenas porque o governo esconde tudo, mas porque nós, russos, não achamos que o que estamos a fazer é certo.»

“O documento, primeiro publicado através das redes sociais, é uma descrição diária de como a sua unidade de pára-quedistas foi enviada para a Ucrânia; de como entrou em Kherson; de como capturou o porto marítimo e cavou sob fogo de artilharia pesada por mais de um mês perto de Mykolaiv; e de como acabou por ser ferido e retirado do conflito com uma infecção ocular.”

Estávamos sentados sob fogo da artilharia de Mykolaiv e nesse momento percebi que participava em algo realmente mau. Para que diabo precisamos desta guerra? Ocorreu-me, então, o pensamento: ‘Deus, se eu sobreviver, farei tudo o que puder para impedir isto’.”

“Passou 45 dias a escrever as suas memórias do conflito.”

“Filatyev, que serviu no 56.º Regimento de Ataque Aéreo da Guarda com base na Crimeia, descreveu como a sua unidade exausta e mal equipada invadiu a Ucrânia atrás de uma chuva de mísseis no final de Fevereiro, e sem qualquer ideia do porquê da guerra estar a acontecer.” «Levei semanas para entender que não havia guerra em território russo e que acabámos simplesmente por atacar a Ucrânia», revela.”

“No primeiro excerto traduzido, Filatyev descreve, horas depois das tropas russas terem entrado na cidade, a forma como a sua unidade saqueou o porto de Kherson.”

«Meia hora depois, chegámos ao porto de Kherson. Estava escuro. As unidades que marchavam à nossa frente já haviam ocupado o porto. Os soldados procuravam um lugar para dormir e para se limparem. O território consistia num posto de controlo, um escritório e um edifício semelhante a um dormitório com armazéns, vestuários e chuveiros. Os navios estavam no cais

«Já viram as pinturas do Saque de Roma pelos bárbaros? Esta é a melhor maneira de descrever o que estava a acontecer ao meu redor. Todos pareciam exaustos e selvagens, e todos começámos a vasculhar os prédios em busca de comida, água, um banho e um lugar para passar a noite. Não fui excepção.»

«Tudo ao redor nos dava uma sensação vil; como miseráveis, estávamos apenas a tentar sobreviver. Todos estavam com pressa, à procura de um lugar para dormir, enquanto outros lutavam por um lugar na fila do chuveiro. Fiquei enojado com tudo isso, mas percebi que, de repente, fazia parte desta realidade».

«Lutei na Ucrânia, e se não tenho o direito de dizer ‘não à guerra’, porque é que outra pessoa tem o direito de começar a guerra? Não posso trazer o nosso exército de volta para casa, mas posso partilhar a minha experiência e os meus pensamentos sobre a participação nesta guerra, encorajando os nossos concidadãos a cuidarem do seu país, que tem tantos problemas para enfrentar.»

«A maioria das pessoas no exército estão descontentes com o que lá acontece, estão descontentes com o governo e com os seus comandantes, estão descontentes com Putin e a sua política, estão descontentes com o ministro da Defesa, que nunca serviu no exército», “acrescenta o soldado russo.”

«Este é um círculo vicioso. Todos nós somos culpados. Mas precisamos de tirar as conclusões certas e corrigir os nossos erros. Até onde vai a amplitude da alma russa? Onde é que a nossa nobreza e espiritualidade se perderam? Os nossos ancestrais derramaram tanto do seu próprio sangue por causa da liberdade. Pode não mudar nada, mas recuso-me a participar nesta loucura. Eticamente, seria mais fácil se a Ucrânia nos atacasse, mas a verdade é que invadimos a Ucrânia e os ucranianos não nos convidaram

“Nascido numa família de militares na cidade de Volgodonsk, no sul, Filatyev passou grande parte dos seus 20 anos no exército. Depois de servir na Chechénia, no final dos anos 2000, passou quase uma década como treinador de cavalos e a trabalhar para a empresa produtora de carne russa Miratorg, antes de se alistar novamente em 2021 por motivos financeiros, revela.

“Continua a ser um dos poucos soldados russos que se pronunciou publicamente, até hoje, sobre a guerra. «Estou apavorado com o que acontecerá a seguir”, disse ele, imaginando que a Rússia vá lutar pela vitória total. “O que vamos pagar por isso? Para mim, é uma tragédia pessoal. Como é que pode ficar pior?”, questiona-se.”

 

Os ventos da História


A precariedade da verdade histórica - de diversas versões e tamanhos, segundo os critérios e as conjunturas do momento, nos baldões da História. As “verdades” impostas nas versões dos poderosos. Reposição – até ver - das verdades e de conceitos segundo os critérios dos heróis do momento… apesar dos saudosistas – na roda-viva da mudança...

A foice e o martelo estão entre os símbolos banidos em alguns países

PICTURE ALLIANCE VIA GETTY IMAGE

Monumento a monumento, os Bálticos querem acabar com a glorificação da ocupação soviética

Alguns dos memoriais foram retirados logo após a declaração da independência, em 1991, mas foi a guerra na Ucrânia que levou estes países a mudar a lei e acelerar a retirada dos símbolos soviéticos.

VERA NOVAIS: Texto

OBSERVADOR, 27 ago 2022, 20:103

Índice

A grande intervenção no Parque da Vitória de Riga na Letónia

Eliminar memoriais soviéticos respeitando os restos mortais.

Trocar nomes de ruas e proibir fitas Georgianas para pôr um fim à sovietização

Mudar a lei para cumprir a justiça histórica e combater a desinformação

Nem os acordos bilaterais previnem a destruição dos símbolos soviéticos

Dia da Vitória: as 24 horas que separaram o ocidente da Rússia

O leste da Europa foi polvilhado com dezenas de milhares de monumentos de homenagem aos soldados soviéticos do Exército Vermelho que combateram na II Guerra Mundial. Mas a derrota e expulsão dos nazis foi acompanhada pela ocupação de vários países pelos russos e a incorporação na União das Repúblicas Socialistas Sov­­­­­­­­­­­­­­­iéticas — fundada a 30 de dezembro de 1922, há quase 100 anos. Os monumentos são, assim, símbolos de libertação, mas também de ocupação, com o peso do segundo a crescer consideravelmente depois da invasão da Ucrânia em fevereiro deste ano.

O atentado à soberania do Estado ucraniano reuniu iniciativas de apoio à Ucrânia e repúdio às investidas russas, desde os Estados Unidos à Turquia, com os países que fazem fronteira com a Rússia (ou que estão suficientemente próximos) a recearem pela sua segurança. Para os Estados Bálticos, agora com democracias ocidentais, a ocupação russa não traz boas memórias e a invasão da Ucrânia veio abrir feridas mal saradas. Como apoio à Ucrânia, mas também pela verdade histórica, Lituânia, Letónia e Estónia estão a retirar os memoriais soviéticos dos lugares de destaque que ocupavam.

Ao longo do tempo, muitos dos monumentos soviéticos foram colocados de parte, não tanto pela remoção, mas porque deixaram de ser cuidados e deixaram de ter a importância simbólica que lhes havia sido atribuída. Alguns foram retirados após a dissolução da URSS, em 1991, outros numa nova vaga em 2015 — depois da anexação da Crimeia —, mas foi a invasão da Ucrânia em fevereiro deste ano que motivou os Estados Bálticos a criarem novas leis de proibição da glorificação do totalitarismo e autoritarismo e a traçarem um plano para eliminar do espaço público todos (ou quase todos) os monumentos soviéticos até ao final deste ano (alguns exemplos aqui).

A grande intervenção no Parque da Vitória de Riga na Letónia

Entre os alvos de remoção mais recentes está o gigantesco monumento no Parque da Vitória, em Riga, capital da Letónia, com uma área de intervenção de cerca de três hectares. O complexo, que inclui um obelisco de 80 metros de altura, várias esculturas, caves e um enorme lago artificial com 50 mil litros de capacidade, começou a ser demolido na segunda-feira, dia 22.

A zona está vedada a peões e veículos, os ajuntamentos e manifestações estão proibidos, mas 14 pessoas foram detidas esta quarta-feira por se recusarem a dispersar do local, após ter havido confrontos entre as pessoas presentes. Quem se manifesta contra a demolição do monumento — que não terá outro fim que não a destruição — relembra que o local era usado para celebrar o Dia da Vitória, assinalado a 9 de maio segundo a tradição soviética (mas sobre este dia falaremos mais à frente).

Este é apenas um dos cerca de 300 locais ou memoriais que podem ser retirados pelas autoridades locais letãs, indica a Al Jazeera, mas é o maior e o que tem maior simbolismo associado — tanto pela existência, como pela remoçãoOutros monumentos, em várias cidades letãs, têm sido retirados — de acordo com uma lei aprovada este ano — ou vandalizados, ambos como forma de oposição à invasão da Ucrânia pela Rússia.

"Considerando o rápido aumento das tensões e confusão junto aos memoriais em Narva, temos de agir rapidamente para garantir a ordem pública e a segurança interna."

Kaja Kallas, primeira-ministra da Estónia

Poucos monumentos terão a carga emocional deste complexo de Riga ou do Soldado de Bronze na Estónia, disse Dmitrijs Andrejevs, investigador na Universidade de Manchester no Reino Unido, ao canal Al Jazeera. E a sua retirada desperta igualmente poderosas emoções contra e a favor. Retirar o Soldado de Bronze de uma praça central para um cemitério militar na periferia de Tallinn (capital da Estónia), em 2007, originou conflitos durante vários dias que levaram à detenção de mais de 800 pessoas, uma vítima mortal e ainda 150 feridos.

As autoridades nos países bálticos dizem ter aprendido com este exemplo, em particular a Estónia, que na semana passada procurou tirar de forma pacífica (e quase secreta) um marco importante da entrada russa no paíso tanque T-34 em Narva, a principal cidade-fronteira a nordeste. Neste caso, ao contrário do monumento de Riga, o tanque foi levado para um museu.

“Considerando o rápido aumento das tensões e confusão junto aos memoriais em Narva, temos de agir rapidamente para garantir a ordem pública e a segurança interna”, justificou a primeira-ministra da Estónia, Kaja Kallas, citada num comunicado oficial. A nota foi publicada na manhã de dia 16 e da parte da tarde o governo anunciava que já tinha retirado o tanque e mais cinco monumentos, incluindo placas e memoriais sobre sepulturas de guerra, às quais foi atribuída sinalização neutra.

Eliminar memoriais soviéticos respeitando os restos mortais

Muitos dos memoriais, estátuas e outras representações relacionadas com o fim da II Guerra Mundial e com a antiga URSS, pretendem assinalar as sepulturas dos soldados e homenagear aqueles que lutaram contra a Alemanha nazi. É por isso que os familiares das vítimas e outros descendentes russos continuam a prestar homenagem aos combatentes junto a estes monumentos, estejam em território russo ou fora dele.

O Soldado de Bronze também assinalava o local onde estavam sepultados os restos mortais dos soldados que, tal como a estátua, foram retirados e levados para o cemitério militar. A presença de restos mortais — numa sepultura pré-existente (mais tarde identificada com um monumento) ou numa nova campa para onde foram levados posteriormente para serem celebrados — tornou-os locais “sagrados”, o que amplifica a repercussão do que aí acontecer.

“As autoridades soviéticas utilizaram os mortos para dar a um monumento ideológico a sacralidade de uma lápide”, disse Hellar Lill, diretor do Museu da Guerra na Estónia, ao canal Al Jazeera. E é por isso mesmo que os memoriais sobre sepulturas são muito menos vezes removidos ou destruídos, afirmou o historiador Mischa Gabowitsch, em 2021, na altura investigador Einstein Forum (Alemanha).

O director do museu estónio denunciou, no entanto, que uma escavação na cidade de Otepää, no sul da Estónia, revelou que ali não se encontravam sepultados quaisquer restos humanos. Noutros locais, o número de mortos anunciados no memorial pode não corresponder ao número de sepultados no local.

Convenção de Genebra protege restos mortais de vítimas de conflitos armados

A Convenção de Genebra (em particular o Protocolo I Adicional, de 1977) obriga os membros signatários a respeitarem as sepulturas das vítimas da guerra e assinalá-las devidamente. Com as novas resoluções, os Estados Bálticos entendem que os monumentos erguidos sobre estas campas não estão incluídos nesta proteção — sobretudo quando se tornaram símbolos de violência — e que “proteger as sepulturas” não significa “mantê-las inalteradas”.

A Estónia, por exemplo, justificava (já antes de 2018) a retirada dos restos mortais de praças centrais para outros locais onde fosse mais adequada a sua comemoração, escreveu Mischa Gabowitsch na Politika, uma plataforma de partilha de investigação sobre ciências políticas, com informação recolhida até 2018. Na Rússia e na Bielorússia, pelo contrário, continuam a erguer-se monumentos de celebração que fiquem mais acessíveis a quem os queira visitar, acrescenta.

O Soldado de Bronze em Tallinn, capital da Estónia, foi retirado porque além de enaltecer a invasão russa era palco de confrontos

“Estes locais de enterro são muito diferentes”, disse Vidmantas Bezaras, director do Departamento de Herança Cultural lituana, à emissora nacional LRT. “Alguns deles são muito moderados e realmente respeitosos, enquanto noutros [os soviéticos ou autores dos memoriais] tentaram acrescentar esculturas agressivas, parafernália da era soviética, bandeiras, metralhadoras, etc..”

Foi esta apropriação dos símbolos que justificou a decisão de retirar seis esculturas em granito de soldados do Exército Vermelho do lugar de destaque que ocupavam no cemitério Antakalnis, em Vilnius, capital da Lituânia. “Apesar de um cemitério ser um cemitério e de, na civilização ocidental, ser normalmente um lugar intocável. É claro que os soviéticos sempre gostaram de ultrapassar as marcas e fazer dos cemitérios coisas ideológicas“, disse Remigijus Šimašius, presidente do Município de Vilnius, ao serviço noticioso do Báltico BNS. As esculturas serão retiradas e, eventualmente, colocadas num outro lugar.

Trocar nomes de ruas e proibir fitas Georgianas para pôr um fim à sovietização

A Lituânia apressou-se a retirar todas as estátuas que não marcavam locais de sepulturas — nomeadamente de Lenine, Estaline e outras figuras soviéticas — logo após a dissolução da URSS, em 1991, não tanto por uma decisão do governo central, mas por iniciativa dos governos locais que queriam apagar estas marcas das suas praças. Também na Estónia, durante os anos 1990, foram retiradas dezenas de memoriais leninistas.

"Alguns monumentos e alguns outros símbolos vão desaparecer da nossa vista. Dificilmente sentirei muita falta deles."

Nos últimos meses, vários municípios estónios expressaram oficialmente a vontade de deslocar os restos mortais dos soldados de Exército Vermelho de locais públicos para cemitérios de guerra. Foram também as autoridades locais lituanas, depois da invasão da Ucrânia, que pediram ao Departamento de Herança Cultural para retirar o estatuto de protecção aos memoriais soviéticos sobre as sepulturas para poderem retirá-los.

de-sovietização (numa tradução livre, sem sinónimo em português) da Lituânia inclui dar um novo nome a tudo o que lembre a era Soviética. “Estamos a falar dos nomes dos monumentos que restam, das praças e ruas e também das escolas. É muito importante que haja uma segunda parte desta lei, que discuta quem foram as pessoas que deram nome às ruas, o que significam para o nosso estado e para a nossa história”, disse Paulė Kuzmickienė, presidente da Comissão para as Lutas pela Liberdade e Memória Histórica, à LRT. A Ucrânia também aproveitou o dia do aniversário da independência para mudar o nome em 95 ruas de Kiev que eram alusivos à herança soviética.

Apesar de poderem ter valor histórico, cultural e patrimonial, os monumentos soviéticos representam também um potencial palco de confrontos, especialmente nos Bálticos onde uma parte importante da população é russófona. A colagem de Vladimir Putin à era Soviética só aumenta a vontade dos governos da Europa de leste retirarem a importância a estes monumentos, ao mesmo tempo que classificam a acção como uma “medida de segurança”.

O Presidente russo, os seus aliados e os media estatais referem-se àquilo que chamam de “operação militar especial” como uma forma de desnazificar a Ucrânia e comparam a recente invasão do país com a luta que foi travada contra os nazis nos anos 1940, refere um artigo na plataforma The Conversation. Nesta tentativa de enaltecer os feitos e ignorar as atrocidades cometidas, Putin e os aliados têm-se apropriado dos símbolos e memoriais soviéticos como forma de apoio ao governo russo e à sua ofensiva sobre a Ucrânia, conforme acusam líderes e autarcas nos bálticos.

Um destes exemplos é a fita de São Jorge (com três riscas pretas e duas laranjas) que fazia parte da decoração das fardas militares soviéticas e que se tornou um símbolo dos veteranos da II Guerra Mundial. A fita era também usada durante as homenagens aos soldados mortos. Mas desde a ocupação da Crimeia, a fita passou significar o apoio da agressão russa contra a Ucrânia. Na Lituânia, esta fita Georgiana foi proibida em espaços públicos e alvo de punição, tal como a exibição de símbolos nazis ou outros símbolos soviéticos.

Mudar a lei para cumprir a justiça histórica e combater a desinformação

A Convenção de Genebra determina a protecção dos restos daqueles que morreram durante a guerra — qualquer uma —, mas alguns países também assinaram com a União Soviética (e, por legado, com a Rússia), acordos sobre a gestão das sepulturas de guerra e outros monumentos. Dos três Estados Bálticos, a Letónia foi o único a assinar este tipo de acordo bilateral, em 2007, mas nem isso impediu a mudança da lei este ano.

A invasão da Ucrânia tornou as coisas bastantes claras para o governo letão: “Ou se está a favor do regime de Putin ou se está contra o regime de Putin”, disse Arvils Ašeradens, presidente da comissão parlamentar que supervisiona a mudança da lei sobre os monumentos, sem dar margem a uma terceira hipótese. O respeito pelas vítimas da II Guerra Mundial é universal, mas a Letónia “não quer ter monumentos de propaganda que glorifiquem o Exército Vermelho”, acrescentou em entrevista ao canal Al Jazeera.

No dia 12 de maio, o parlamento letão decidiu pela suspensão do artigo 13.º do acordo entre o Governo da Federação Russa e o Governo da República da Letónia que visava, por exemplo, garantir que a Letónia preservava os memoriais soviéticos. A decisão entrou em vigor no dia 16 — e assim ficará até que a Rússia abandone a ofensiva contra a Ucrânia. Mas logo no dia 13, o município de Riga aprovava a demolição do monumento no Parque da Vitória.

Letónia. Nova lei defende democracia e justiça histórica

Cerca de um mês depois, o mesmo parlamento aprovou uma lei “sobre a proibição de exibir objectos que glorificam o regime soviético e nazi e o seu desmantelamento no território da República da Letónia” — com excepção daqueles localizados nos locais de enterro de soldados e vítimas —, conforme comunicado no site oficial do Saeima. A lei quer também “evitar coberturas falsas, imprecisas e tendenciosas de eventos históricos”.

A Lituânia não assinou nenhum acordo bilateral com a Rússia, mas a herança cultural no território, que seja importante para outros Estados, é alvo de legislação especial. No mesmo país, uma outra lei proíbe desde 2008 o uso de símbolos comunistas, como a foice e martelo, entre outra simbologia soviética.

Estes dois princípios legais corriam o risco de representar decisões opostas sobre uma mesma situação (o que chegou a acontecer), mas a nova proposta de lei “sobre a proibição de promover regimes totalitários e autoritários e as suas ideologias” pretende acabar com o problema.

A lei não só pretende proibir símbolos e propaganda destes regimes, como impede que pessoas que ocupam ou ocuparam cargos políticos, militares ou em estruturas repressivas, usem o espaço público para promover estas ideologias, de acordo com a LRT. As celebrações relacionadas com pessoas ou datas que remetam para a ocupação soviética ou nazi também ficam proibidas.

A informação não desaparecerá: vai continuar a estar presente nos museus, arquivos e bibliotecas; vai ser usada para informar as pessoas sobre as ideologias destes regimes e as consequências passadas, presentes e futuras; e será, naturalmente, usada com objetivos educacionais, científicos e artísticos.

Nem os acordos bilaterais previnem a destruição dos símbolos soviéticos

A União Soviética assinou acordos bilaterais com vários países onde ficaram enterrados os seus soldados e onde fez questão de glorificar a vitória soviética sobre a Alemanha nazi, mas o tipo de acordos pode ser muito diferente de país para país, explica Mischa Gabowitsch no seu artigo.

Na Polónia, por exemplo, os municípios pediam à embaixada russa que assinasse uma autorização de relocalização de qualquer monumento — mas só até 2015.  Desde a anexação da Crimeia, o Conselho para a Proteção dos Sítios de Luta e de Martírio deixou de parte o seu papel de intermediário e disse que esta coordenação com as autoridades russas não era um requisito legal exceto para as sepulturas. Em 2016, a lei que proíbe a propaganda comunista foi alterada para incluir os monumentos soviéticos.

Para outros Estados tidos como sucessores do regime, incluindo a Ucrânia, Geórgia e Usbequistão, terá ficado no ar a ideia de que não seriam precisos acordos de proteção adicionais, descreve o historiador. E ainda foi preciso algum tempo até se tornar claro que as atitudes face aos monumentos soviéticos poderiam ser muito diferentes e altamente voláteis.

Para a Ucrânia, as leis anti-comunismo em vigor desde 2015-2016 focaram-se sobretudo nas estátuas dos líderes soviéticos, mais fáceis de interpretar como símbolos da ocupação soviética. Os memoriais aos soldados mortos e as sepulturas, por sua vez, tinham também soldados ucranianos que lutaram ao lado dos russos e tornaram-se mais difíceis de eliminar — o que não quer dizer que não tivessem sido alvo de remodelações e reinterpretações.

Mas a mais impressionante — e mais trágica — destruição de um monumento soviético aconteceu na Geórgia, a 19 de dezembro de 2009. O Presidente Mikheil Saakashvili (de 2005 a 2013) num gesto simbólico de “de-sovietização” mandou explodir o Monumento da Glória Militar em Kutaisi para aí construir um novo parlamento. A explosão da estrutura de ferro de 40 metros lançou destroços por centenas de metros, matando uma mulher e a filha e ferindo várias pessoas, algumas com gravidade.

Dia da Vitória: as 24 horas que separaram o ocidente da Rússia

Para os países da Europa de leste poderem reescrever a sua história denunciando a ocupação soviética e deixando de adorar os seus símbolos será preciso mais do que retirar estátuas e monumentos ou mudar nomes de ruas e escolas, é preciso adotar outras medidaschamar II Guerra Mundial ao conflito global dos anos 1940 e não “Grande Guerra Patriótica” como o definia a União Soviética; e admitir que a guerra teve início quando a Alemanha invadiu a Polónia a 1 de setembro de 1939.

A invasão que marca o início da guerra aconteceu cerca de uma semana depois de assinado o pacto de não agressão entre os ministros das Relações Externas da União Soviética, Vyacheslav Molotov, e da Alemanha nazi, Joachim von Ribbentrop — um pacto com um acordo secreto para dividir a Europa (e a Polónia) em dois, metade para cada um dos Estados totalitários. A Rússia assinalou o aniversário do tratado a 23 de agosto e voltou a omitir esta parte da história.

Por outro lado, os países da Europa de leste também urgem os colegas da União Europeia a combaterem juntos a tentativa da Rússia de reescrever a história e a desinformação e propaganda russa nesse sentido. “A carta conjunta sobre a memória europeia” foi assinada pelos Presidentes da Lituânia e Roménia e pelos primeiros-ministros da Estónia, Letónia e Polónia.

"Precisamos fortalecer os esforços no nível da UE para combater as tentativas da Rússia de reescrever a história e usar as falsas narrativas imperialistas para legitimar sua guerra brutal contra a Ucrânia."

Krišjānis Kariņš, primeiro-ministro da Letónia

Outra data que opõe a União Soviética (e agora a Rússia) aos restantes países ocidentais é a que marca o fim da II Guerra Mundial e, como tal, o Dia da Vitória dos aliados contra a Alemanha nazi. Os nazis capitularam e a 7 de maio de 1945 assinaram um um “Acto de Rendição Militar” incondicional e um cessar-fogo que entraria em vigor no final do dia seguinte — 8 de maio, o Dia da Vitória no ocidente — em Reims, na França, como lembra a National Geographic.

Estaline, no entanto, exigiu uma nova rendição em Berlim, na presença de oficiais graduados tanto do lado nazi como do lado soviético, como aconteceu no dia 8 (e o cessar-fogo no dia seguinte). É por isso que a comunidade russófona celebra o dia 9 de maio como o Dia da Vitória — aliás, a rendição de Reims só foi anunciada na URSS depois de conhecida a rendição de Berlim.

Os monumentos usados para celebrar a vitória soviética sobre o nazis no dia 9 de maio são, muitas vezes, o palco dos confrontos entre os que falam em libertação e os que dizem que foi o início da ocupação soviética nos países da Europa de leste. Na Letónia, por exemplo, o dia deixou de ser celebrado oficialmente com a declaração da independência.

Nos quatro anos que se seguiram, de 1991 a 1994, o dia 9 de maio serviu para lembrar as vítimas da II Guerra Mundial e fazia parte do calendário de feriados nacionais — mas isso acabouDesde 1995 que é celebrado o dia 8 de maio, “O Dia da Destruição do Nazismo e o Dia das Vítimas da Segunda Guerra Mundial”. No ano seguinte, o dia 9 de maio passou a ser celebrado com o Dia da Europa. A comunidade russófona, porém, nunca celebrou este dia e continua a celebrar a Grande Vitória nos símbolos soviéticos, como o agora parcialmente destruído monumento do parque de Riga.

Na Lituânia, onde os soldados do cemitério de Antakalnis eram o local de celebração soviético, o Dia da Vitória passou a ser celebrado a 8 de maio, tal como nos restantes países da União Europeia. A mudança aconteceu em 2005, um ano depois de os três Estados Bálticos se terem juntado à UE.

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COMENTÁRIOS:

Fernando Fernandes: Quem sofreu a violência do comunismo, não o quer, nem aos símbolos da foice e martelo. Nós por cá até temos a "festa do avante" que glorifica bovinamente a ideologia totalitária que mais mortos causou a toda a humanidade. Condenamos o nazismo e aceitamos o comunismo. Até quando?          Filipe Costa: Fazem bem, acabem com a URSS.             João Eduardo Gata > Filipe Costa: URSS essa que afinal ainda vive na cabeça de Putin e do seu regime de gangsters corruptos, imperialistas, criminosos e ladrões. Só quando os povos da Rússia se sujeitarem a um processo de Des-sovietização, como a Alemanha se sujeitou a um processo de Des-nazificação, é que a Rússia poderá vir a ser um país normal.