terça-feira, 31 de julho de 2018

Tempos passados, tempos presentes, um mesmo ideal - o do fuzilamento



É exagero, talvez, mas não deixo de lembrar a frieza com que se escorraçaram populações de territórios colonizados, se bem me lembro, e a avidez com que se ocuparam terrenos e prédios e empresas num propósito de “nobre” igualitarismo que a esquerda reivindicou e ainda hoje reivindica, na pretensão da tal superioridade moral de pés de barro. O P. Gonçalo Portocarrero de Almada revê o extermínio da família imperial russa e a fria crueldade dos seus mandatários e posteriores exemplares de governantes criminosos que os seguidores cá do burgo veneram, por conta da fraternidade e igualdade que lhes aquece o sangue. Tudo isso já foi dito, é apenas uma revisão, leiamos os textos de Portocarrero e de José Manuel Fernandes - este, iniciado na mesma ilustração por rebeldia ou intenção ilustrativa – que não justifica o seguidismo doutrinário - não receou mudar de atitude por reflexão de sensatez, segundo demonstra.
I - RÚSSIA
O genocídio dos Romanov /premium
OBSERVADOR, 27/7/2018
Omitir a responsabilidade moral do regime que matou um casal inofensivo e os seus cinco jovens filhos é faltar à verdade e ofender a memória das vítimas.
O ano 2018 é o do centenário do fim da primeira guerra mundial, que foi a principal responsável pelo desaparecimento de quatro grandes impérios e respectivas dinastias: o russo, com a destituição do czar em 1917; o austro-húngaro, na pessoa do imperador Carlos I; o alemão, com a abdicação do kaiser Guilherme II, que depois se exilou na Holanda, onde morreu em 1941; e, por último, o otomano, cujo califa, Maomé VI, foi destituído a 1 de Novembro de 1922, embora a república da Turquia só tivesse sido proclamada a 29 de Outubro de 1923.
Curiosamente, tanto o kaiser Guilherme II como o czar Nicolau IIkaiser e czar são variações do título de Césareram primos direitos do rei Jorge V da Grã-Bretanha. Com efeito, o imperador alemão era neto da rainha Vitória, que também era avó de Jorge V. Este último era, por sua vez, primo co-irmão do czar Nicolau II, com quem aliás era muito parecido, mas por via das respectivas mães, que eram filhas do rei Cristiano IX da Dinamarca. Este soberano bem podia ser cognominado, a par da rainha Vitória, o avô da Europa, porque dele descendem os reis da Dinamarca, da Noruega, da Grécia, da Rússia, da Grã-Bretanha, da Suécia, da Espanha e da Roménia.
Destes quatro monarcas destronados, dois mereceram a coroa da santidade, bem mais valiosa do que a que, na terra, cingiram. Com efeito, Carlos I de Áustria, que faleceu na Madeira, foi posteriormente beatificado pela Igreja católica, estando também a caminho dos altares a sua falecida viúva, a imperatriz Zita de Bourbon Parma, filha da infanta portuguesa Maria Antónia de Bragança e neta materna de D. Miguel, irmão de D. Pedro IV de Portugal e primeiro imperador do Brasil. Por sua vez, o último czar da Rússia, Nicolau II, sua mulher e cinco filhos foram canonizados pela Igreja ortodoxa, que os venera como mártires, por terem sido assassinados pelos bolcheviques, em 1918, por ódio à religião cristã.
São conhecidas as circunstâncias dramáticas em que foi exterminada a família imperial russa, na madrugada de 17 de Julho de 1918, em Ecaterimburgo. Não só os soberanos foram mortos sem terem sido julgados, nem lhes ter sido dada nenhuma hipótese de defesa, à boa maneira comunista, como também os seus cinco filhos foram executados. Foram-no aliás sem dó nem piedade, não só porque eram absolutamente inocentes das eventuais culpas de seus pais, mas também porque, por inépcia dos assassinos, não tiveram uma morte imediata. Com efeito, depois da primeira série de disparos na cave onde a família imperial russa foi morta, levantou-se uma grande nuvem de pó e os executores saíram para fora, para melhor respirarem. Porém, ouvindo os gemidos das vítimas, que também incluíam alguns fiéis servidores da família imperial, entraram de novo na sala, para darem o tiro de misericórdia aos que ainda agonizavam. Só Deus sabe o que foi o sofrimento daqueles jovens, cuja única culpa era a de serem membros da família imperial russa: foram mortos depois de assistirem à execução dos seus pais e de padecer uma mais ou menos longa agonia, por incúria dos seus carrascos. Como é da praxe em todos os regimes ditatoriais, nunca ninguém foi responsabilizado por este hediondo crime, que contou com a aprovação de Lenin, que não era menos brutal do que o seu sucessor, Stalin.
Não foram apenas o czar Nicolau II, a czarina Alix de Hesse, e os seus filhos – as grã-duquesas Olga, Tatiana, Maria e Anastácia e o czarévitch Alexis – que foram mortos pelo regime de Moscovo. Na realidade, as autoridades bolcheviques tentaram exterminar toda a família. Praticamente só sobreviveram os Romanov que emigraram, pois todos os outros foram, pelo simples facto de serem parentes do deposto czar, eliminados pela ditadura do proletariado.
É impressionante a lista dos Romanov que os bolcheviques abateram, depois da revolução de Outubro de 1917. Para além do czar, da czarina e dos seus cinco filhos –com idades eentre os 13 e os 22 anos – também foi assassinado o grão-duque Miguel, o irmão do czar que Nicolau II designou seu herdeiro e sucessor, na impossibilidade do czarévich herdar a Coroa, pela sua pouca idade e grave hemofilia.
Já o czar Alexandre II, avô paterno de Nicolau II, tinha sido vítima de um regicídio, em 1881; e um dos seus filhos, o grão-duque Sérgio morreu num atentado, em 1905, mas outro, o grão-duque Paulo, foi morto pelos bolcheviques em 1919. Dois sobrinhos de Alexandre II, ambos filhos do grão-duque Constantino, foram também executados pelos sovietes: Nicolau, em 1918; e Dimitri, em 1919. Deste Nicolau foi filho o príncipe Iskander, igualmente assassinado pelos comunistas em 1919, no mesmo ano em que também foi morto Boris, outro príncipe da família imperial. Também os filhos do grão-duque Miguel, irmão do czar Alexandre II, não escaparam à sanha marxista-leninista: seu filho Sérgio foi morto em 1918, enquanto os seus irmãos Nicolau e Jorge o foram no ano seguinte.
Não obstante a perseguição comunista contra a família imperial, os Romanov não se extinguiram. A sucessão da casa real russa foi assegurada pela descendência de Vladimir, tio paterno do último czar. Seu filho Cirilo sucedeu-lhe na chefia da casa e família imperial, intitulando-se, no exílio, czar de todas as Rússias. Dele foi filho, entre outros, o grão-duque Vladimir, que nasceu em 1917 e casou com uma princesa Bagration, que nas suas armas ostenta a harpa do rei David, de quem essa família diz descender. Deles foi única filha a grande-duquesa Maria, actual chefe da família Romanov e mãe do grão-duque Jorge, nascido em 1981. Será ele, algum dia, czar da Rússia? É certo que não lhe falta legitimidade dinástica, mas é duvidoso que Putin nele venha a restaurar, algum dia, o trono dos czares.
Milhares de russos, no centenário do assassinato de Nicolau II e da sua família, peregrinaram até à catedral da fortaleza Pedro e Paulo, em São Petersburgo, para venerarem os restos mortais dos mártires imperiais. A verdade histórica não permite que se esqueça que foram vítimas de uma ideologia imoral que, para alcançar os seus objectivos políticos, não teve pruridos em matar pessoas inocentes, nomeadamente mulheres e crianças. Não prestar, no primeiro centenário desta terrível tragédia, a devida homenagem ao czar e à sua família seria matá-los outra vez. Como seria ofender a sua memória omitir, por cobarde cumplicidade, a referência à responsabilidade moral do desumano regime que impunemente matou um casal inofensivo e os seus cinco jovens filhos.

Assim se vê a “superioridade moral” dos bloquistas /premium
OBSERVADOR, 30/7/2018
O episódio Robles, tal como outros envolvendo celebridades da esquerda chique (Iglesias, Varoufaquis), só é compreensível indo às raízes do pensamento radical, ao porquê da sua arrogância sem vergonha
Porque será que não fiquei surpreendido nem com os negócios imobiliários de Ricardo Robles, nem com as reacções histriónicas das suas companheiras de partido, que começaram a disparar contra tudo e contra todos enovelando-se em artifícios e mentirinhas?
Não, não foi por acreditar nas suas desculpas esfarrapadas e cheias de contradições que não deixarão de o perseguir nos próximos tempos.
Não fiquei surpreendido por uma razão bem mais simples: porque é da natureza do Bloco e da ideologia que alimenta o Bloco ser assim e actuar assim. É da natureza do Bloco porque está-lhe na massa do sangue ver-se a si mesmo como estando acima dos demais, como sendo a moral do regime. E é da natureza da sua ideologia porque ela vê-se como “moralmente superior” às demais.
Reparem na reacção de Catarina Martins. As críticas a Ricardo Robles não eram políticas – eram interesseiras, pois apenas visavam defender os interesses das imobiliárias que o Bloco em bloco, e Robles em particular, tão corajosamente têm atacado. E as notícias dos jornais não eram inocentes, muito menos fruto de os jornalistas tratarem de cumprir a sua missão de fiscalização dos titulares de cargos públicas, antes maquinações venais, peças encomendadas e conspirações mal disfarçadas.
Há aqui algum descontrolo emocional que até nos diverte já que, ao menos uma vez na vida, foram os bloquistas a ser apanhados em evidente contrapé, tão fora de mão que nem conseguiram beneficiar da habitual benevolência camaradas de muitas redacções. Contudo esse descontrolo emocional apenas tornou mais evidente a forma de raciocinar do Bloco e dos seus dirigentes.
Primeiro que tudo, Catarina Martins, tal como Ricardo Robles, consideram-se políticos moralmente superiores aos demais. Não há aqui nada de novo, pelo contrário: eles apenas estão na linha da tradição dos radicais de esquerda, dos jacobinos aos comunistas, eles apenas seguem a cartilha de quem, sem tibiezas nem disfarces, assumiu essa condição de estarem acima dos demais: nada menos que o próprio Álvaro Cunhal. Sim, porque foi ele quem escreveu, significativamente em 1974, o ano da revolução, um pequeno opúsculo intitulado A superioridade moral dos comunistas, um texto que é muito útil revisitar pela sua clareza e um desassombro no limite da arrogância.
Para Cunhal, “os comunistas não se distinguem apenas pelos seus elevados objectivos e pela sua acção revolucionária, distinguem-se também pelos seus elevados princípios morais”. Perguntar-se-á: porque são homens melhor do que os outros? Não, como Cunhal tem o cuidado de explicar. Eles são superiores porque “a moral dos comunistas é contrária e superior à moral burguesa”. Eles até podem ter fraquezas, mas estão do lado certo da história, e é isso e só isso que conta para os comunistas e seus aparentados (como são os bloquistas). A superioridade da sua moral deriva de serem, por definição, agentes do bem e mensageiros de um futuro radioso pois, como explicava o dirigente histórico do PCP, essa moral identifica-se com a “natureza, objectivos e missão histórica do proletariado”. O conceito chave aqui é “missão histórica”: é ele que autoriza tudo e justifica tudo.
A argumentação deste livrinho surge-nos numa língua de pau a que já não estamos habituados, mas a sua lógica mantém-se intacta: os radicais de hoje, como os radicais de ontem, vêem-se como moralmente superiores porque acham que lutam por uma sociedade sem classes, porque defendem que “a propriedade é um roubo” (no sábado os bloquistas que foram ao acampamento de juventude tinham um painel dedicado a esse tema, mas suponho que o nosso Robles é capaz de não ter assistido) e entendem que só há uma sociedade decente, que é aquela onde tudo é de todos e nada é de ninguém (o que sempre acabou com o partido e o Estado a serem donos de tudo, mas isso são detalhes).
O paradoxo desta moral é que ela pressupõe que os radicais sejam desprendidos dos bens materiais, e eles acham mesmo que são. Ou, para ser mais exacto, acham que serão no dia em que se realizar a sua utopia. Até lá fazem o que Lenine lhes ensinou: usam tudo o que as nossas sociedades colocam ao seu dispor para atingirem os seus objectivos. Fazem-no na acção política, mas não lhes repugna fazê-lo também nas suas vidas pessoais. Isso não lhes causa qualquer problema de consciência – não causou a Ricardo Robles, como não causa a Varoufakis (no seu apartamento com vista para a Acrópole), como não causa a Pablo Iglesias (feliz na sua vivenda de 650 mil euros), como não causa a todos os políticos do PT brasileiro que “fizeram como os outros” e enriqueceram.
Por isso, repito, nada disto nos devia surpreender. É uma tradição antiga, com raízes na Revolução Francesa e nos jacobinos de 1793, de quem, como escreveu François Furet, o grande historiador desse período, “se esperava que abrissem o caminho à burguesia, mas que nos deram o primeiro exemplo de burgueses que detestam os burgueses em nome de princípios burgueses”. Foi apenas o primeiro exemplo, pois muitos outros se seguiram, como recordou e elencou no seu magistral estudo O Passado de uma Ilusão – Ensaio Sobre a Ideia Comunista no Século XX.
Será possível encontrar melhor encarnação dessa imagem de um burguês que detesta os burgueses do que Ricardo Robles? É difícil, porque na verdade o vereador bloquista se atreveu a ir longe demais no exercício da hipocrisia. Mas, de novo, temos de reconhecer que as evidentes contradições entre o que diz e o que faz possuem antecedentes famosos e, sobretudo, reveladores da doença congénita do radicalismo moralista.
Regresso à Revolução Francesa pois volta a ser nela, e na forma trágica como evoluiu de uma libertação para uma opressão, e desta para o Terror, que encontramos alguns dos males que hoje detectamos no radicalismo “moralmente superior”. Edmund Burke, porventura o mais lúcido crítico dos excessos franceses, não pode por exemplo deixar de notar, na crítica que fez a um dos filósofos que inspirou os radicalismos revolucionários, Jean-Jacques Rousseau, que se tratava de alguém que, ao mesmo tempo que se proclamava ao serviço da Humanidade não tivera sequer a humanidade suficiente para não entregar os seus seis filhos a um orfanato, tendo uma conduta pessoal deplorável. “A lover of his kind, but a hater of his kindred”, escreveu de forma ácida mas certeira, interrogando-se sobre se os homens deveriam ser julgados pelos seus comportamentos reais ou pelas suas grandiosas, e “generosas”, proclamações. Ou seja, identificou um mal que ainda hoje detectamos nos muitos “filhos de Rousseau” que por aí andam – pois é isso que são, mesmo que gostem mais de se ver como “filhos de Marx”.
Na nossa esquerda chique, muito bem representada nas fileiras do Bloco, esta condição é especialmente evidente. O amor que proclamam pela causa dos pobres, ou dos idosos, ou dos doentes do SNS, é sempre um amor tão absoluto e radical que só pode ser um amor “abstracto”. É um amor que por isso mesmo nunca ou quase nunca se traduz em acções desinteressadas de voluntariado, em gestos simples de solidariedade como darem apoio a doentes em cuidados paliativos ou andarem pela cidade a distribuir comida aos sem abrigo. Isso seria corromper o seu amor absoluto porque isso seria “caridadezinha” – para além de que iriam misturar-se com as organizações cristãs de solidariedade social, que abominam.
A nossa esquerda chique está cheia deste tipo de figuras – a que Burke também chamou “filósofos da vaidade” –, mas imagino que nesta fase do meu texto muitos pensem que exagero. Afinal nem todos são como Ricardo Robles, nem todos fizeram, ou tentaram fazer, os negócios em que este se meteu, o que é uma evidência. Afinal os que no Bloco são mais ortodoxos (como Luís Fazenda, o único dirigente bloquista a distanciar-se do vereador lisboeta) sabem que à “superioridade moral dos comunistas” deve corresponder também um mínimo de esforço para seguir a chamada “moral comunista”, e que Robles está a milhas dessa preocupação terrena.
Mas eu, que conheci por dentro estas organizações (por lá andei entre os 15 e os 23 anos, depois curei-me), que li os livros que os inspiraram e inspiram e participei em muitos convívios (na época não lhes chamávamos pomposamente “workshops”) de formação de militantes, identifico nas Catarinas, nas Mortáguas e nos Robles o mesmo sentimento de “superioridade moral” que sempre se respirou nesses meios e que Álvaro Cunhal tão orgulhosamente reivindicou. A diferença é que hoje já se abandonaram palavras como “proletariado” e “luta de classes”, trocando-as por temas mais “urbanos” e preferindo os corredores das universidades às cantinas das fábricas para difundirem a sua doutrina (nisso são muito mais gramscianos do que leninistas). A diferença é que a esquerda chique é mesmo só ideologia e complexo de culpa (pela sua condição burguesa), o que a torna ainda muito mais amoral.
Se não fosse este o ar que o Bloco respira não se tinham unido todos e todas da forma como uniram na defesa do indefensável.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Divagações



As opiniões criteriosas de alguns comentaristas respondem ao ataque de João Miguel Tavares à utilização dos fundos europeus, essencialmente como processo de despesa, mais do que de promoção de rentabilidade, sendo o Estado o maior sorvedouro deles. Sim, construiu-se bastante, com os empréstimos perdulários, num país habituado a usar as riquezas – que as teve e boas – em glorificações monumentais e uso pessoal das classes hierarquicamente mais destacadas. Os dinheiros da U E foram utilizados na rede de comunicações – nem todas indispensáveis, julgo, e fonte de desvios, e isso é outra história. Construíram-se blocos de ensino, agrupamentos escolares, numa absurda tendência massificadora, que não elevou o ensino e criou apenas algazarra e cansaço docente, num constante vaivém de imposição de normas, no vazio infrene de reuniões, actas, palavrório e perda de tempo indispensável para uma mais profícua valorização docente pelo estudo das matérias específicas. Isto explica o método do disfarce, já na formação de cidadãos, para mais, numa pedagogia centrada numa liberdade insensata, desrespeitadora de todas as regras sociais e morais e inibidora de uma formação capaz, que convergiu na falcatrua como meio de enriquecimento actual. Construíram-se universidades, descentralizando e difundindo o ensino universitário, o que foi um bem, sem dúvida, mas não significa isso, necessariamente, uma apetência cultural saudável, nestes tempos de tecnologia monopolizadora e alienatória, pese embora as vantagens de um desenvolvimento pela imagem e rapidez gestual ou mesmo conceptual, que uma leitura mais consciente ajudaria a concretizar. O facto é que a balada de José Afonso, da crítica salazarista – Os Abutres - tem perfeita aplicação hoje, como prova João Miguel Tavares. A diferença está em que dantes os abutres eram mais os donos de empresas, algumas estatais, é certo, o funcionalismo ou os trabalhadores das empresas sendo magnificamente explorados e sem as regalias de assistência pública que os empréstimos ao estrangeiro possibilitaram hoje, graças a uma solidariedade social que não é fictícia, contudo. Mas esta mesma, de reivindicação constante e desestabilizadora, por meio das greves que tudo arrasam, ajuda à formação de indivíduos cada vez mais reivindicativos e parasitas desse sistema social, seres amorfos que a sociedade modelou. Dantes, a mendicidade no nosso país era ganha com “o suor do seu rosto”, como exemplifica Miguel Torga com o seu “Garrinchas” palmilhante, nas andanças do pedir. Hoje existem associações e pessoas disponíveis para ajudarem os desistentes sociais e isso parece-me admirável, embora, mais do que compaixão, eu sinta desprezo pelos tais parasitas, mau grado as razões que possam apresentar em seu abono. Os animais da selva lutam pela sua sobrevivência, os “pobres” humanos apelidados de “sem-abrigo”, nem isso. E os governos e as sociedades permitem-no, indiferentes a esse cancro social dos nossos tempos de promiscuidade. O Estado tornou-se mais protector, sem dúvida, mas a exploração que foi sempre nosso apanágio, continua, mesquinhos que somos. Sim, o Estado é quem canaliza os fundos europeus e fez coisas que provam que é pessoa de bem. Mas é de bem como todos somos, com disfarce e arranjinhos por detrás, como se tem visto e isso vem da tal educação e da nossa idiossincrasia de povo mesquinho, jamais reconhecido pelos tais “abutres”. Parece que os povos nórdicos são os mais democratas, por educação e racionalidade, mas penso que também porque a sua densidade populacional é mais reduzida. A nossa mesquinhez vem de longa data, fruto de uma educação estreita e elitista e mal acompanhante do progresso europeu, mau grado o contributo que deu para ele, outrora.  
OPINIÃO
O Estado come tudo e não deixa nada
O Portugal 2020 é um orçamento de Estado paralelo.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 26 de Julho de 2018
Se perguntarmos a várias pessoas para que servem os fundos europeus, imagino que entre as respostas mais comuns esteja:apoiar o desenvolvimento do país”, “ajudar empresas a expandir os seus negócios”, “promover a inovação”, “aumentar o número de PME nacionais”. Sim, todos sabemos que a primeira grande leva do dinheiro da Europa foi gasta em viadutos e autoestradas (e jipes), mas após o enorme investimento em infra-estruturas, qualquer pessoa achará natural e desejável que as novas vagas de fundos estejam a ser canalizadas para o apoio à iniciativa privada. Pois bem: não estão.
O jornalista Edgar Caetano publicou um artigo no Observador onde analisa os projectos que foram alvo de maior financiamento europeu ao abrigo do programa Portugal 2020. E chegou a esta tristíssima conclusão ao olhar para o top 30 dos apoios europeus: “26 dos maiores financiamentos foram para o Estado e só quatro para empresas.” Ou seja, 87% dos recursos de topo foram canalizados para financiar projectos estatais, e apenas uns insignificantes 13% puderam ser aproveitados por empresas privadas. O Portugal 2020 é um orçamento de Estado paralelo.
Que projectos estatais são esses? Para além da modernização da ferrovia e do investimento numa hidroeléctrica da Madeira, a grande fatia do dinheiro vai para o suspeito do costume – a obsessão nacional pela formação, ainda que o tecido produtivo português não tenha depois capacidade para absorver tantos formados. Entre os apoios prioritários estão “vários programas e bolsas para estudantes, incluindo apoios a doutoramentos e pós-doutoramentos (co-financiados a 85% e o restante pela Direcção-Geral do Ensino Superior)” e também “apoios à realização de estágios para estimular o emprego jovem, em conjunto com o Instituto do Emprego e Formação Profissional”. Como é evidente, isto é apenas utilizar fundos europeus para assumir despesa que de outra forma estaria incluída no Orçamento de Estado. Os 26 mil milhões de euros que o programa tem vindo a distribuir desde 2014 são demasiado preciosos para que o Estado não lhes meta o dente, com a voracidade própria de quem tem pouco dinheiro no bolso e muitas bocas para alimentar.
Lembram-se do mini-escândalo de Outubro de 2017, quando se percebeu que parte dos donativos angariados para ajudar as vítimas de Pedrógão estava a ser canalizada para equipar a unidade de queimados do Hospital de Coimbra? Aqui a lógica é a mesma. Ajudar a sociedade significa, em primeiro lugar, ajudar o Estado, que depois ajuda a sociedade. Nem sequer é difícil conseguir isso. No caso dos fundos europeus, o Estado é simultaneamente avaliador de candidaturas e candidato, e envolve tudo numa dose infrene de burocracia. Qualquer empresa privada de média dimensão interessada em inovar tem de ir bater a outra porta, porque o novo já é velho quando finalmente chega o OK para libertar a verba.
Resultado: o dinheiro, como está dito no artigo, “acaba por ir sempre para os mesmos” – universidades, institutos, cursos de formação profissional com os quais andamos há 40 anos a prometer desenvolver o país, sem sucesso. O Portugal 2020 é um quadro de apoio ao desenvolvimento económico de Portugal, mas como nesta terra se considera que o Estado é o único e verdadeiro motor de desenvolvimento, as empresas ficam a chuchar no dedo e o dinheiro acaba retido nas redes do Terreiro do Paço. Nem vale a pena protestar. O socialismo é mesmo isto. E parece que os portugueses gostam muito.

Alguns comentários:
quinhe, 27.07.2018: "obsessão nacional pela formação"???? "o tecido produtivo português não tenha capacidade para absorver tantos formados"???? Desde quando a formação ocupa espaço nas empresas? Desde quando é que trabalhadores bem formados é mau para a produtividade? Já agora porque não se fala na falta de formação, a diversos níveis, dos empresários portugueses? Só num país como Portugal é que um grande número de pessoas bem formadas (e já agora informadas) em termos técnicos e académicos é um problema sério! Porque será? Será porque é mais fácil enganar cidadãos e trabalhadores do que está subjacente a décadas de analfabetismo e iliteracía como política pública? Quiçá? Espera-se que pessoas tão bem formadas e informadas como o autor desta "opinião" possam contribuir para esclarecer.
Jose 26.07.2018: Os neoliberais lutam contra o Estado através de mais Estado. Quanto mais Estado mais neoliberais (quadros do PS, PSD, CDS) ocupam a gestão de fluxos financeiros para desviar e mais poder interno têm para reprimir, usar e abusar de trabalhadores por conta de outrem. Essa corja de abutres (quadros do PS, PSD, CDS) são os agentes do desvio de dinheiros públicos para as empresas privadas para onde irão ser CEO's e abutres como Mexia... Esse mecanismo leva os salários para baixo do mínimo e por isso se empobrece trabalhando e leva os impostos para a carga máxima que impede o investimento privado. Os abutres privados reclamam então investimento público para serem eles os usufrutuários desses investimentos.
Javali Javali profissional 27.07.2018 Então porque é que o PCP e o BE pedem sempre mais Estado? LOL cada vez mais cómico.
Jose Vitorino,  Palmela  Todos falam contra o Estado, mas todos comem do Estado. Ha 15 anos desabafava um administrador de um banco de investimento, que não havia investimento em que não houvesse o aval do Estado. Em todos os casos conhecidos em que o Estado era maioritário nas empresas e que acabaram vendidas com o argumento que a gestão privada seria muito melhor para todos, depois de vendidas visivelmente só foi melhor para os que promoveram as vendas (políticos e escritórios de advogados) e accionistas foi mau para os consumidores para os trabalhadores dessas empresas para o Estado que vendeu e ainda paga (veja-se as rendas) .
Ramiro Carrola: 26.07.2018 : Digam-me cá: Se não fossem todos estes milhares de milhões de euros que desembocam de Bruxelas no Terreiro do Paço, para além das já três ou quatro bancarrotas socialistas dos últimos 40 e picos anos que levamos de partidocracia, que teria sido de Portugal do Sol e dos Turistas? Respondo: acho que estaríamos em instrução, vias de comunicação, saneamento básico, saúde, e etc., nos mesmos sombrios patamares do ano, já não digo de 1974, mas, recuando uns anitos, de 1910. Tristeza!
Perseguido e Despromovido: Vivam todos os Javalis 26.07.2018 ! Os fundos estruturais e os empréstimos são uma faca de dois gumes, pois estimulam tanto o investimento como os delírios de grandeza. O primeiro foi bom para o país, os segundos fazem pobreza e bancarrotas e arrasam o seu futuro. Penso que agora só temos os segundos.











domingo, 29 de julho de 2018

Gostei dos versos

Abençoada França, que serve o mundo com a qualidade dos seus programas televisivos que tanto contribuem para estimular, no seu mundo, (e no nosso, para quem os segue), o gosto pela arte e a beleza. Desta vez o programa de domingo à noite foi 300 choeurs fêtent la musique, em que diversos coros acompanhavam cantores conhecidos, quer em números de ópera, quer de música ligeira, êxitos do ano, árias clássicas em fusão, por vezes, com música ligeira, de extraordinário efeito harmónico. Julgo que entre nós também há grupos corais – benditos sejam – que cantam em salas, em capelas ou igrejas, vozes bem expressivas que uma televisão interessada na formação dos seus cidadãos, devia chamar para as suas programações.

Leio o texto de Maria João Avillez, e talvez por isso me acudiram os termos abençoado e bendito, da minha introdução ao seu texto, toda eu numa de recolhimento e êxtase, já que é de profundo amor o retrato que MJA faz de José Tolentino de Mendonça, ordenado Arcebispo este sábado, 28/7. Alguns dados que retiro da Internet, para colaborar com o sentimento de apreço que o inspirou:
 «Formado em teologia bíblica, Tolentino de Mendonça tornou-se padre aos 24 anos, quando editou também o seu primeiro livro de poesia. É autor de dezenas de publicações, especialmente de poesia, mas também de ensaios e textos pastorais, e foi galardoado em 2001 com a ordem do Infante D. Henrique, e em 2015 com a Ordem de Sant´Iago de Espada. Doutor em Teologia Bíblica, antigo vice-reitor da Universidade Católica e director da respectiva Faculdade de Teologia, consultor do Conselho Pontifício da Cultura, reitor do Pontifício Colégio Português em Roma, director do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura da Igreja Católica em Portugal, será arcebispo a partir de agora e arquivista e bibliotecário a partir de Setembro.»

E já agora, para formar um retrato mais completo, transcrevo dele dois poemas, que traduzem o amor que o tornou eleito- de Deus ou dos Homens que o promoveram. Versos de pensamento profundo e sinuoso, no seu sintetismo lapidado, e que abriu o apetite para os outros:


Inscrição
o brilho é o leve
júbilo
que sustenta os versos
ainda que sejamos obscuros
e nenhum nome
sirva jamais para dizer
o fogo

Revelação
Meu o ofício incerto das palavras
a evocação do tempo
o recurso ao fogo

Meu o provisório olhar
sobre este rio
o fascínio consentido das margens
sitiando a distância

Meus são os dedos que em tumulto
modelam capitéis
de sombra e arestas

Mas oculto na brisa
és Tu quem percorre o poema
despertando as aves
e dando nome aos peixes


Os escolhidos /premium
OBSERVADOPR,MARIA JOÃO AVILLEZ
28/7/2018, 0:09
Tanto o Gianfranco Ravasi como José Tolentino Mendonça foram pescados à linha por Deus que um dia olhou para eles como costuma olhar para os escolhidos. Que como se sabe são bem menos que os chamados.
1. “Nada acontece até ser contado” dizia Virginia Woolf que muito contou e bem contou. Tinha razão: o contar pode transformar um quinhão de vida num acontecimento. E se desistirmos de contar, que outro destino para o não contado que um poço vazio? Penso muitas vezes nisso. Penso de cada vez que venho ao de cima de qualquer coisa que de imediato me sinaliza que há que contar. Contar sem que importe definir o fio – intuição? impulso? — que nos conduziu. Importa antes que o desatar do fio tenha trazido consigo aquilo que de tão misterioso altera a natureza das coisas, fazendo delas um “acontecimento”. E tanto faz que ele seja privado, pertença apenas a alguns, ou a todos: o que conta é o poder transformador do contar.
O escritor holandês Cees Nooteboom de quem leio agora um diário (“533 dias”, Siruela, Espanha) também se interrogava sobre isso mesmo: “como descrever algo que para o mundo nunca contaria como um acontecimento mas para nós, sim?”
Não preciso porém de recorrer à história dos 533 dias que Nooteboom passou na sua amada casa da ilha de Minorca para classificar de “acontecimento” uma noite inclassificável que testemunhei há dias e merece ser contada.
Passando eu agora a voluntária mensageira dessa noite.
2. Foi a meio de Julho na Capela do Rato. Alguém — ignoro quem — se propôs homenagear o poeta José Tolentino Mendonça celebrando a sua poesia e cantando-lhe os seus versos.
Contar o límpido momento que lá se viveu, fá-lo ter acontecido. Foi emotivo, profundo, íntimo. Escolhidas por Leonor Xavier — “encenadora” do límpido momento — vinte e cinco pessoas “muito diversas”, encontradas no mar dos crentes ou nas águas dos não crentes, tornaram-se, com a sua voz, parte desta celebração, ramos da mesma árvore, veios da mesma folha.
Anunciadas por mera ordem alfabética e sem mais indicação que a sua profissão, cada uma dessas pessoas “diversas” subiu três degraus de madeira e por entre a espessura de um silêncio que parecia não ter fundo, nem fim, leu, murmurou ou disse as palavras do poeta. Escolha livre, sem ensaio prévio, nem prévia combinação: “tragam um livro do Tolentino e leiam um poema” apenas dissera Leonor.
Antes, ouvira-se, breve, uma flauta; depois, plangente, uma guitarra. Aconteceu assim. Numa intimidade só possível e entendível por estar tão enrolada na raiz silenciosa do que ali se queria dizer.
3. Há muitas espécies de silêncios, sabemos bem, e mesmo que nenhum ecoe do mesmo modo, nunca será demais evocar o que mora na Capela do Rato. É um silêncio só de lá. Seja a abarrotar de pessoas nas celebrações religiosas, ou vazia de gentes e almas; seja numa simples missa dominical ou em participados encontros espirituais ou culturais, há a mesma recolhida atmosfera, tingindo os dias desta Capela. Lembra os lugares dos primeiros cristãos, rezando escondidos e talvez atordoados pela sua nova condição de desafiantes de outra ordem; lembra a dureza da procura, a alegria do caminho encontrado, a perda, a pena, a luz, a chegada. Lembra muitas e contraditórias coisas ao mesmo tempo, é um silêncio fértil.
Sou desde há largas décadas frequentadora intermitente desta Capela. Quando pela primeira vez lhe bati à porta não o fiz por razões políticas (detestaria refazer a história) mas por ser seguidora e ouvidora do verbo lúcido e admiravelmente inspirado de quem lá oficiava nos idos de sessenta do século passado, o Padre Alberto Neto. Salvou-me pelo menos uma boa parte da alma.
Depois, mesmo que com intervalos ou ausências, nunca deixei de lá ir, e mais ainda com Tolentino Mendonça. O que talvez salve o tanto que há para salvar.
4. Um dia do ano de 2012, no silêncio solitário das instalações da “sua” Capela, José Tolentino Mendonça fez-me um convite temível: que eu fosse apresentar a Guimarães os intervenientes da próxima reunião do “Pátio dos Gentios” que nesse ano ocorreria em Portugal, depois de já ter passado em anos anteriores por diversos lugares europeus. O Pátio fora uma ideia nascida da inspiração, visão e vontade do Cardeal Gianfranco Ravasi para desbravar o diálogo entre crentes e não crentes e Ravasi seria justamente o “protagonista” desse do encontro. Figura tão fulgurante merece ser aqui contada, mesmo que fugazmente. E a sua proximidade e interligação tão profunda com Tolentino torna-me esse contar ainda mais obrigatório: ordenado Padre em 1966 na Diocese de Milão com 24 anos, loquaz e vivíssimo, brilhante aluno e depois brilhante professor em Exegese Bíblica, intelectual irradiando em mil direcções do saber, perito biblista e hebraísta, gostando de inovar e inovando, Gianfranco Ravasi cedo se tornou uma referência na diocese, na Universidade, na própria cidade de Milão. Nomeado Perfeito da Biblioteca Ambrosiana — um farol de cultura em toda a Itália –, a escolha revelava um eleito mas o eleito provaria o acerto da escolha. É que o grande teólogo e eminente biblista deixará luminosa assinatura na Biblioteca ao revelar uma imensa capacidade de conciliar o conhecimento da Bíblia e das raízes cristãs com a cultura, a arte, o saber literário. Fazendo pontes e alcançando grandes — ou talvez mesmo inauditas — linhas de transversalidade.
Maestro de tão diversas partituras, amassando o seu pão cultural com a Bíblia, escreveu sobre a alma, contou-nos Jesus, ofereceu-nos leituras para todos os dia das nossas vidas. Propôs-nos Deus.
Em 2007, já nomeado Bispo por Bento XVI, Ravasi foi escolhido para presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, criado vinte anos antes por João Paulo II. Uma escolha desafiante já que, em 1993, o Papa João Paulo decidira unir o “Conselho para o Diálogo com os Não Crentes”, com o “Conselho da Cultura”, fundindo-os num mesmo corpo institucional. Tratava-se agora de uma tarefa dupla e duplamente exigente: o encontro entre a mensagem do Evangelho e os intelectuais das artes, letras e ciências como homens e mulheres ao serviço do bem e do belo; e, por outro lado, a proposta de diálogo entre pessoas que não tendo fé, sinalizavam um sobressalto ou revelavam uma inquietação face ao transcendente.
A partir de então foram-se gerando proximidades até aí supostamente sepultadas. Ergueram-se pontes, abriram-se confluências.
Uma dessas confluências chamou-se Pátio dos Gentios.
Um “Pátio” que, a convite do Padre Tolentino, num dia de 2012 e em hora tão boa que mereceria ser contada, me levou ao norte para apresentar à plateia de Guimarães um convidado especial, o Cardeal Ravasi. (E João Lobo Antunes e Marcelo Rebelo de Sousa, também oradores de um memorável encontro).
5. Porquê tudo isto agora? Porque terei hoje, a propósito de Tolentino, procurado Gianfranco Ravasi, movida por uma espécie de imperiosa necessidade de o trazer aqui? Afinal de contas houve outras colaborações minhas com José Tolentino Mendonça (em que a leitura de uma Paixão com Luís Miguel Cintra, na Igreja de S. Mamede, na Semana Santa de 2016, não terá sido a menor delas).
Porquê então?
Talvez porque simplesmente eu os tenha achado, ao Cardeal Gianfranco Ravasi e ao futuro Arcebispo José Tolentino Mendonça, muito semelhantes, um ao outro. Na radicalidade da entrega, na marca de uma mesma espiritualidade, no uso que fazem da fé, na erudição e no brilho dos respectivos percursos, na transversalidade dos universos onde se movem. Destino parecido o destes dois homens que sempre operaram em nome de Deus na busca do absoluto.
Pescados à linha por Deus que um dia olhou para eles como costuma olhar para os escolhidos. Que, como se sabe, são bem menos que os chamados.
6. Este sábado, 28 Julho, dia em que na pedra antiga do Mosteiro dos Jerónimos o Cardeal D. Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa, o Cardeal D. António Marto e o Bispo Emérito do Funchal, D. Teodoro de Faria procederão á ordenação episcopal do Arcebispo Titular de Suava, Tolentino Mendonça, deixo um breve poema seu. Foi lido há dias na Capela do Rato e é um ténue sopro, como o bater de asa de uma borboleta num solitário entardecer de verão:
“Na corda bamba, entre silêncio e silêncio, a vizinhança de Deus” (in “A Papoila e o Monge”, Assírio e Alvim).


sábado, 28 de julho de 2018

Mas Macron veio cá, LOL


Mas Macron desceu ao povoado, e António Costa passeou-se com ele, e o repórter até falou na dificuldade de os acompanhar do Rossio até à Praça do Comércio, para nos mostrar o companheirismo de Macron e de A. Costa, este serviable como convém, aquele condescendente, mas parece que se trata duma boa liaison económica entre a Espanha, a França e nós, que não gostamos de deixar os nossos créditos por mãos alheias e por isso eu até apreciei a passeata e o sorriso rasgado de Costa revelador do seu prazer nisso dos créditos, apesar da desordem cá, por causa das greves prolongadas, comandadas pelos tais donos e as suas vozes de que fala A. G.. Além de que já se pagou mais da dívida, texto que transcrevo para confirmar, e desfazer a má vontade de Alberto Gonçalves, que para mais se esquece, quando compara a falta de mortos nos incêndios suecos com os dos incêndios gregos e portugueses, a diferente densidade populacional e tamanho dos respectivos países, o que torna o confronto menos equitativo. Mas leiamos a epígrafe do texto do Público, de Sérgio Aníbal, e alegremo-nos com a boa nova:
Dívida ao FMI fica com juros baixos e ainda há espaço para poupar mais. Do empréstimo inicial de 26.300 milhões de euros, Portugal vai ficar a partir desta quarta-feira a dever apenas 4600 milhões. Mas mesmo agora que as taxas estão mais baixas ainda pode fazer sentido pensar numa amortização antecipada.  . PÚBLICO, 24 de Janeiro de 2018

Quanto ao artigo de Alberto Gonçalves, coloco o comentário de apreço do Professor Pardal, que subscrevo, é claro:
Um comentário:
Professor Pardal: Uma brilhante alegoria do Estado da Nação. Um excelente reflexo daquilo em que se tornou este país e este mundo. Aquilo a que chamamos o mainstream media controla a agenda e regula a informação que chega à maioria da população, chegando, por vezes, a deliberadamente manipulá-la. 
Dou como exemplo a muito actual "crise dos refugiados". É absolutamente impressionante como os casos de violações, motins e coisas afins que se vão passando diariamente em inúmeras cidades europeias passam olimpicamente à margem dos telejornais. A recente invasão de Ceuta é só mais um caso. 
Poderia acrescentar muito mais exemplos de falta de seriedade jornalística actualmente. Para não ser fastidioso deixo apenas mais um, talvez o mais flagrante que é a parcialidade existente em relação a Israel. Incrivelmente, centenas de rockets e de engenhos explosivose incendiários que são enviados da faixa de Gaza nunca são noticiados. Incrivelmente, uma cultura de morte e guerra é glorificada enquanto uma sociedade pacífica e democrática é ostracizada.
São mesmo a voz do dono. 
As vozes e os donos /premium
Há sobretudo o aroma da doença que precede o fim, e a terrível impressão de que ainda estamos no princípio. Portugal tornou-se uma imensa exposição de fancaria que as vozes dos donos vendem aos berros.
Um deputado do antigo PSD, Carlos Abreu Amorim, comparou os incêndios gregos aos portugueses e despertou a cólera das boas consciências. As boas consciências irromperam a rejeitar a utilização de uma desgraça para fins políticos. Uma obscuridade do PS classificou o comentário de “vergonhoso e indigno” (ao invés dos comentários vergonhosos e dignos). Uma moça do BE falou em “demagogia barata” (a do Bloco sai caríssima). E a sensível filha de Adriano Moreira afirmou que “não se pode descer mais baixo”. Ou pode?
Claro que sim. Trinta e cinco segundos após as patrulhas definirem os limites da linguagem e proibirem o aproveitamento da tragédia de lá para caluniar o governo daqui, passou-se à fase posterior. A fase posterior consistiu no aproveitamento da tragédia de lá para desresponsabilizar o governo daqui, exercício que, ao invés de fúria, suscita regozijo geral. Na ânsia de agradar aos chefes, numerosos serviçais da oligarquia desataram a explicar às massas porque é que os governos (socialistas, escusado acrescentar) não devem ser criticados quando as coisas ardem. Em prosa pungente, o novo director de um defunto diário evocou o calor, os ventos, as árvores, a humidade, as mudanças climáticas, a densidade urbana, o turismo, o sr. Trump e a pesca da solha para concluir, acho eu, que nenhum governante (salvo os de “direita”, suspeito) tem culpa dos incêndios.
Alguém disse o contrário? Entre gente civilizada, julgo que não. E os serviçais da oligarquia, as vozes dos donos, sabem. Não sendo demasiado iluminados, sabem o suficiente para saber que o problema não passa exactamente pelos incêndios, mas pelas vítimas que estes causaram. Sabem que a recente devastação na Suécia, provocada pelo “aquecimento global”, pelo Abominável Homem das Neves e pelo que se lembrarem, até ver não matou uma única pessoa. Sabem que os massacres portugueses e gregos de 2017 (em dose dupla) e de 2018 são dos fogos florestais mais mortíferos dos últimos 70 ou 80 anos, no Ocidente e não só. Sabem que os dois (ou três) exemplos constituem casos singulares de ineficácia do Estado no cumprimento da solitária missão que de facto lhe cabe. Sabem que pior do que apanhar o sacrossanto Estado em flagrante delito é, logo de seguida, apanhar as suas figuras gradas numa impecável exibição de mentiras, desorientação, sentimentalismo, desprezo, cinismo e crueldade. Sabem que, no auge da calamidade, um primeiro-ministro de férias em Espanha entra no território do grotesco. Sabem que a nossa gloriosa nação está nas mãos de criaturas cuja competência não as prepara para sequer gerir um galinheiro, e cujo carácter aconselha a que não sejam deixadas a sós com as galinhas.
As vozes dos donos sabem. E sabem que a vassalagem que prestam as torna menos recomendáveis do que os respectivos amos, e menos habilitadas a emitir palpites acerca das vítimas que manipulam a troco de uns trocos. E sabem que nós sabemos que as vítimas não importam e nunca importaram, excepto na medida – aborrecida, concedo –  em que obrigam a controlar eventuais danos na popularidade. Apesar de beatas e repulsivas, as vozes dos donos sabem. E não querem saber: a fim de defender a nomenklatura, são capazes de tudo.
Na verdade, porém, não precisavam de quase nada. Os esforços de propaganda das televisões em peso e da vasta maioria da imprensa (?) padecem de excesso de zelo e redundância. O país já se rendeu aos que nele mandam, sem condições e sem necessidade de sujeitar as vozes dos donos a semelhantes trabalhos. Quando o dr. Costa passeou o calção a mil quilómetros dos cadáveres de Pedrógão e não houve alcatrão e penas para o acolher no regresso, percebeu-se que desistimos em definitivo de nos assemelharmos a uma sociedade moderadamente higiénica e suportável. De então para cá, a pocilga fatalmente refinou-se, tal como a jovial resignação dos seus habitantes aos enxovalhos que lhes atiram para cima.

Hoje, a nomenklatura poderia cantar a “Casinha” no velório de falecidos à conta dos cortes hospitalares – e não sofreria qualquer remoque. Há amigos da saúde pública que se tratam na privada, e inimigos da especulação imobiliária que especulam com fervor. Há desastres sucessivos nas finanças e saques imparáveis no fisco. Há palco aberto aos fascistas das “causas”, crescentemente fanáticas e amalucadas. Há corrupção impune, pulhice recompensada, populismo em rédea solta. E isto sem consequências, sem escrutínio, sem dissensão, sem vergonha, sem esperança, sem remorso. Há, principalmente, o aroma da doença que precede o fim, e a terrível impressão de que ainda estamos no princípio. Portugal tornou-se uma imensa exposição de fancaria, que as vozes dos donos vendem aos berros.

A cadeira de baloiço



Pois! Era a irmã do Solnado, que gostava de dizer coisas, que dizia “pois!” em comentário da sua participação nas conversas. Era no tempo em que ainda não havia esta coisa da Internet, que facilita as adesões às escritas com os “Gostos” da aprovação, e ela tinha forçosamente que utilizar a interjeição da sua anuência, que é muitas vezes também a nossa - como no caso ora descrito por Vicente Jorge Silva, sobre Trump. Mas também havia uma “cadeira de baloiço” para quando algum dos familiares de Solnado era despedido. E foi daí que Solnado, desempregado repentinamente, por ter partido um comprimido no laboratório onde trabalhava, respondeu ao anúncio da guerra de 1908. É, provavelmente, a nossa cadeira de baloiço para os tempos que se avizinham, da nossa incompreensão. O comentário de Jose responde às preocupações de Vicente Jorge Silva, que são as mesmas que as nossas. Mas terão um fim, tal como a guerra do Solnado. Entretanto, vamos baloiçando, na cadeira dos despedimentos.
OPINIÃO
Quando o inverosímil não tem limites
A incredulidade mistura-se, cada vez mais, à habituação com o novo normal deste teatro grotesco de Trump.
VICENTE JORGE SILVA
PÚBLICO, 22 de Julho de 2018
A 3 de Junho passado escrevia aqui: "De Trump já nada pode vir que nos surpreenda." Enganei-me. Como vimos nas últimas semanas, Trump parece apostado em ultrapassar todos os limites de um comportamento errático, caótico, irresponsável, irracional, impensavelmente infantil e em choque absoluto com a natureza das funções que exerce – e que, no seu caso, são as de presidente da (ainda) maior potência mundial.
Havia fundadas suspeitas de que estivesse refém de Putin, suspeitas essas que se acentuaram nas vésperas da sua cimeira com o chefe do Kremlin, quando foram acusados 12 espiões russos por pirataria informática durante a campanha eleitoral de 2016. Ora, que fez Trump na conferência de imprensa depois da cimeira com Putin? Pois fez tudo para confirmar essas suspeitas, declarando confiar na palavra do líder russo enquanto invectivava os serviços secretos americanos. Depois, perante o tumulto que provocou nos Estados Unidos – nomeadamente entre as altas esferas do Partido Republicano e media que lhe eram afectos –, suscitando acusações de "traição" e outras amenidades, acabou por dar o dito por não dito com uma das declarações mais patéticas que algum dia se ouviram da boca de um chefe de Estado (americano ou não). Admitiu, assim, que dissera o contrário do que devia ter dito sobre a interferência da Rússia nas eleições presidenciais, responsabilizando Putin por essa eventual interferência. Mas como isto parecia comprometer a sua lua-de-mel com o Presidente russo, logo avançou com o convite para uma nova cimeira entre os dois em Washington, notícia essa que apanhou de surpresa alguns dos círculos mais próximos da Casa Branca e levou o responsável pelas agências dos serviços secretos a soltar uma gargalhada quando interrogado na NBC: "Repita lá isso…" A incredulidade mistura-se, cada vez mais, à habituação com o novo normal deste teatro
Se enquadrarmos estes episódios no contexto precedente, do G7 à cimeira da NATO, em que, entre outras coisas, Trump apontou o dedo à União Europeia como "o inimigo" ou a Merkel como refém de Putin (por causa da dependência energética da Alemanha em relação à Rússia, mas antecipando com isso, infantilmente, o disfarce da sua própria dependência perante o líder russo), sem esquecer a nova declaração de guerra comercial com a Europa e a China, temos os ingredientes de uma ficção cinematográfica onde se cruzam o Dr. Strangelove com It’s a Mad, Mad, Mad, Mad World. Mas o que noutros tempos seria mais do que suficiente para desencadear um processo de impeachment (tantos são os sinais de total descontrolo ou demência e suspeitas cada vez mais fundadas de "traição" ou submissão a uma potência estrangeira) parece hoje dissipar-se num ambiente interno e internacional propício a relativizar tudo isto como as "excentricidades" de Trump ou uma "fixação doentia" na sua personagem (é o que faz, por exemplo, Rui Ramos no Observador).
Se a América perdeu a bússola e tarda em encontrá-la, quase o mesmo podemos dizer de uma Europa que demorou tempo demais a unificar-se e autonomizar-se face à América (é isso que Trump capitaliza, acusando os europeus, demagógica mas certeiramente, de viverem à custa da protecção militar americana). O lado perverso da globalização gerou fenómenos convergentes dos dois lados do Atlântico e que sustentam a deriva populista em curso: as crises identitárias e de exclusão social, a crescente fragilização dos valores democráticos entre as classes mais afectadas por essas crises e que se recolhem nas redes sociais onde cada um busca apenas o reflexo das suas próprias fixações. Daí este tempo das "democracias iliberais" ou das nostalgias autoritárias, quando o espírito crítico e o discernimento da razão perdem terreno para a irracionalidade mais grotesca e o inverosímil deixa de ter limites. 
Um comentário merecido:
Jose, 22.07.2018: 1.º não se pode reduzir às pessoas de Trump, Putin, Merkel, Xi, Qium... Os problemas da humanidade. 2.º não é razoável reduzir a zero a soma das vontades dos cidadãos e das suas instituições e discursos. 3.º as mudanças surpreendem sempre os que, acomodados, são desapossados inesperadamente. 4.º as mudanças geram reações naturais que se exprimem de várias formas desde a colagem à mudança à descrença, à frustração e à impotência. 5.º a história é só passado não determina o futuro que pode sempre ser a descontinuação do passado. 6.º a América não é pai e mãe da humanidade e pode decidir dizê-lo. 7.º a Rússia não é nem nunca foi o papão do mundo. 8.º as teorias da conspiração são fantasias. 9.º quem espera por sapatos de defunto anda toda a vida descalço. Conclusão: cada povo trate da vida!


sexta-feira, 27 de julho de 2018

Será que o Acordo Ortográfico de 1990 foi “postergado”?



Mais dois artigos sobre o ensino, o primeiro, sobre as “Aprendizagens essenciais” nos Ensinos Básico e Secundário, que não discuto. O texto de Filipe Oliveira debruça-se essencialmente sobre a Matemática e terá as suas razões. Quanto às diversas disciplinas, eu julgo que as matérias até têm sido prolixas e bem orientadas, pelo menos os manuais do Básico que tenho lido me parecem bem feitos e exigentes. O que continuo a condenar é o método de ensino que exclui a memorização de dados primários essenciais, com repetições de estruturas linguísticas básicas em termos de escrita, para obstar à proliferação dos erros, ou a aprendizagem das tabuadas como ponto de partida para o entendimento matemático mais saudável, o que não obstaria à utilização posterior do computador. Mas o que de repente me despertou a atenção no texto de Filipe Oliveira foi que, escrevendo segundo o AO, todas as palavras do texto, segundo os princípios desse Acordo Ortográfico, apareceram sublinhadas a vermelho, ao contrário do texto de Manuel Alegre, e mesmo deste meu, que já não me sublinha a falta dos cc e C.ia, o que muito me alegrou. Se o AO já não é aplicável, fico feliz, mas estranho o facto de essa flexibilização – ou condenação definitiva do AO90? - ser feita com matreirice, e sem a frontalidade do reconhecimento do erro, que é, afinal, frutuoso – segundo teoria pedagógica destes tempos. Quanto ao texto de Manuel Alegre, sobre a continuidade do estudo de “OS MAIAS” no Secundário, ainda bem que ele ama a sua língua e os bons escritores portugueses, como bom cultor que é da sua língua escrita. O mesmo não direi do seu amor da pátria que ajudou a reduzir, com falsos argumentos libertários, que se prova bem hoje quanto eles contribuíram para os males actuais.
Mas, sim, acima de tudo, digamos com António FerreiraFloresça, fale, cante, ouça-se e viva a portuguesa língua e já onde for, senhora vá de si, soberba e altiva...” Respeitemos os nossos filhos e eduquemo-los nesse amor, não por altivez mas apenas por bom senso.
II - OPINIÃO
Aprendizagens essenciais: menos trabalho, mais ignorância /premium
PÚBLICO, 20/7/2018
É lamentável a falta de confiança que o Ministério demonstra para com professores e alunos ao reduzir desta forma drástica os conhecimentos a adquirir e as capacidades a desenvolver no Secundário.
O Ministério da Educação colocou recentemente à discussão pública os documentos Aprendizagens Essenciais (AE), relativos ao Ensino Básico e ao Ensino Secundário. Segundo o Ministério, as AE são «documentos de orientação curricular base na planificação, realização e avaliação do ensino e da aprendizagem».
Começo pelo menos importante, ainda que grave e sintomático. Apesar de pouco extensas, as AE de Matemática – documento oficial do Ministério da Educação – estão repletas  de erros de ortografia e de gralhas (ficamos por exemplo a saber, após leitura, que «os alunos devem resolver tarefas por forma a que sejam capazes de (…)», devem também «identificar acontecimentos impossível, certo, elementar,(…)», e «estudar da sucessão de termo geral(…)»), existem casos de dupla grafia e inúmeros sinais de pontuação em falta, incluindo pontos finais esquecidos ou duplicados.
Mas o mais grave, naturalmente, são as próprias “aprendizagens” tidas por “essenciais” para o futuro cidadão do século XXI. Tal como a redacção das AE deixa adivinhar, não houve qualquer cuidado na selecção dos temas estruturantes para uma formação robusta em Matemática. Os conteúdos são enumerados de forma vaga e aparentemente aleatória, com recurso a muitas repetições e a flagrantes copy-pastes. Por serem documentos sem fio condutor, há inúmeros esquecimentos, omissões e incongruências. Foram também eliminadas todas as referências concretas às aplicações da Matemática ao mundo real prescritas no programa. Que mais-valia poderão estas directivas trazer ao ensino? Afogados numa miríade de documentos oficiais que se excluem mutuamente (Programas e Metas Curriculares em vigor, Programas anteriores revogados, Perfil do Aluno, Aprendizagens Essenciais e Orientações Curriculares da DGE) como se espera que os professores possam preparar o próximo ano lectivo com tranquilidade e segurança? E como esperar que documentos tão superficiais como as AE possam constituir-se enquanto referenciais de avaliação? É de prever que venham a causar sérias perturbações: a recente polémica em torno do exame nacional de Matemática A veio justamente sublinhar a necessidade de objectivos curriculares claros e precisos, bem como a inadequação de se trabalhar com base em intersecções confusas entre referenciais distintos.
Quando se trabalham conteúdos de forma avulsa e não se respeita a natureza intrinsecamente cumulativa da Matemática, rapidamente se cai num ensino centrado em receituários de fórmulas e de procedimentos, isto é, na pior forma de ensinar. É exactamente isso que as AE preconizam. Após tantos sucessos e tantas provas dadas, é lamentável a falta de confiança que o Ministério demonstra para com professores e alunos ao reduzir desta forma drástica os conhecimentos a adquirir e as capacidades a desenvolver ao longo do Ensino Secundário, ciclo em que as simplificações e omissões das AE atingem o seu paroxismo. Na verdade, nunca se pediu tão pouco à Escola, nem de forma tão desastrada.
Não era este o rumo que se preconizava para o nosso sistema de ensino. Nos anos recentes formou-se um amplo consenso em torno da necessidade de currículos claros, objectivos e que definam com rigor aquilo que os alunos devem saber em cada etapa da sua formação. Um dos primeiros passos nesse sentido foi dado por Isabel Alçada, ministra da Educação de 2009 a 2011, com a primeira elaboração de Metas de Aprendizagem. O processo foi subsequentemente reforçado e reestruturado, com a elaboração de Metas Curriculares mais precisas e completas durante o mandato de Nuno Crato.
Esta estratégia, acompanhada de uma avaliação séria e responsável, deu bons resultados. Dados recentes da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), referentes ao ano letivo 2016/2017, confirmam a descida sustentada das taxas de retenção e de abandono escolar que se tem vindo a verificar nos últimos anos. Essas taxas encontram-se actualmente em mínimos históricos. Também, um outro estudo recente da DGEEC, que compara as classificações internas nos anos lectivos 2012/2013 e 2015/2016, dá conta, na disciplina de Matemática A-10.º ano, de «uma deslocação sistemática no sentido das melhores classificações, com a consequente melhoria das respectivas médias.» Na verdade, dados oficiais do Ministério mostram um aumento «estatisticamente significativo» do sucesso escolar dos alunos do 10.º ano após a introdução do novo Programa e Metas Curriculares de Matemática em cada um dos três períodos que compõem o ano lectivo. Note-se finalmente que os alunos sujeitos a este novo programa do Secundário foram já avaliados pelo Exame Nacional de Matemática A de 2018. Mostraram-se extremamente resilientes face a uma prova consensualmente reconhecida como complexa, extensa e com uma estrutura muito penalizadora para os alunos. A realidade desmente categoricamente o «aumento brutal do insucesso» profetizado por algumas instituições, que advogavam também estarem criadas, com os novos programas, «as condições para piorar em grande linha os resultados dos alunos portugueses» nas avaliações internacionais de 2015. Na verdade, Portugal obteve no PISA 2015 o melhor resultado de sempre, situando-se pela primeira vez acima da média da OCDE. Também no TIMSS 2015 houve uma melhoria de resultados, ainda mais acentuada relativamente a 2011, tendo sido avaliados alunos do 4.º ano que seguiram o novo programa nos 3.º e 4.º anos de escolaridade – recomendado já no 2.º ano – e que foram submetidos a uma prova final do 1.º Ciclo de acordo com as Metas Curriculares.
À revelia de todos estes factos, e ao invés de criar uma comissão de acompanhamento que auxiliasse os professores a ultrapassar as naturais dificuldades que sentem na implementação de um programa novo (tal como está previsto na lei e foi praticado aquando de todas as alterações curriculares do passado), o Ministério decidiu deixar alunos e professores ao abandono durante três anos  e regressar agora ao obscurantismo curricular através desta e de outras iniciativas legislativas de natureza dita “reversiva”, que têm vindo a minar sistematicamente tudo o que o país conquistou de positivo na área da Educação nos últimos 20 anos.
Felizmente, o país conta com excelentes professores de Matemática. Sabem que as Aprendizagens Essenciais são inutilizáveis enquanto instrumentos de organização do Ensino. Como sempre, não deixarão de planificar o próximo ano lectivo tendo o melhor interesse dos alunos como principal prioridade. Por seu lado, a Sociedade Portuguesa de Matemática não se poupará a esforços para combater esta verdadeira obliteração intelectual que se prepara para os jovens que em Setembro iniciarão o seu percurso no Ensino Secundário.
Coordenador do Programa e Metas Curriculares de Matemática e Professor no ISEG – Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.
II- O saneamento de Os Maias
Desiste-se da Escola Pública. Mas também do SNS, cada vez mais descaracterizado e reduzido a um serviço caritativo para pobres enquanto florescem as mil flores dos hospitais privados para quem pode pagar.
MANUEL ALEGRE
PÚBLICO, 26 de Julho de 2018
Depois de ler o artigo de Carlos Reis sobre o “saneamento” de Os Maias, pergunto-me se Portugal não estará a desistir de si mesmo, da sua literatura, da sua língua, da sua Escola Pública?
Os mais pobres, aqueles cujos pais não têm biblioteca em casa, não vão ler Eça de Queiroz, nem Garrett, nem Camilo, nem, pelos vistos, Cesário Verde. Fica para os colégios privados, a quem parece estar a deixar-se a preparação das futuras elites. À Escola Pública restará a leitura rápida de textos fáceis e curtos, ao contrário de uma cultura de exigência sem a qual jamais poderá cumprir o seu papel de ser um factor de igualdade de oportunidade para todos. Mas, enfim, Os Maias, como as Viagens na Minha Terra e o Amor de Perdição colidem com o facilitismo, não há espaço nem tempo, não cabem num SMS.
Desiste-se da Escola Pública. Mas também do SNS, cada vez mais descaracterizado e reduzido a um serviço caritativo para pobres enquanto florescem as mil flores dos hospitais privados para quem pode pagar. Como é que não se consegue travar a drenagem do SNS para o privado? Como é que se deixa degradar a TAP e os CTT a um ponto nunca visto? E como é que sectores estratégicos da economia continuam em mãos de empresas chinesas que são, como se sabe, instrumentos de um Estado que não é o nosso?
Vão com certeza chamar-me soberanista e um dia destes ainda vou ter de pedir desculpa por ser português, gostar do meu país, da sua língua (apesar do acordo ortográfico), dos seus Os Lusíadas e daqueles navegadores que segundo disse Amílcar Cabral, numa entrevista que lhe fiz para a Voz da Liberdade, “deram de facto novos mundos ao mundo e aproximaram povos e continentes”? Sim, eu sei que há limites para o voluntarismo e para uma “intervenção consciente num processo histórico inconsciente”. Mas também sei que foram a abdicação, o conformismo e o politicamente correcto que abriram caminho à vitória de Trump e de todos os populismos que estão a pôr em causa o que parecia definitivamente adquirido. Vejo a pavonearem-se por aí, em várias alas direitas, ex-esquerdistas que, no Verão Quente de 75, queriam substituir Camões pelos textos de dirigentes dos movimentos de libertação africanos.
Alguns de nós, que tínhamos estado presos e exilados por nos opormos à guerra e ao colonialismo, não nos calámos nem deixámos sanear Camões. Também hoje não sou capaz de me resignar perante esse atentado à cultura e à Escola Pública resultante da abdicação do Ministério da Educação que remete para as escolas a decisão de eventualmente passar Eça de Queiroz à clandestinidade.
ao Presidente da República cabe o cumprimento da Constituição no que respeita à defesa da língua e da Escola Pública. Gostava de saber o que pensam da retirada de Os Maias da “lista de obras e textos para a Educação Literária” no 11.º ano. Sei que há muitos números e contas a fazer até à aprovação do Orçamento de Estado. Mas gostem ou não, nada é tão prioritário como Eça de Queiroz e Os Maias.