segunda-feira, 16 de julho de 2018

Foi preciso que aparecesse um OBSERVADOR



Para que desassombradamente surgissem agora análises cordatas que nele leio, como as de GABRIEL MITHÁ RIBEIRO, desmistificando o conceito de colonialismo segundo o parecer hipócrita da “Seita responsável pela alarvidades outrora destruidoras do equilíbrio de um mundo africano em construção e cujos cacos jamais serão colados quer pelos da seita cada vez mais alastrante e ignara, quer pelas próprias forças aborígenes desses mesmos povos cobardemente abandonados às actuais alarvidades dos seus governantes sem escrúpulos. O segundo texto, sobre Eduardo Lourenço, um desses intelectuais de respeitabilidade obtida longe da pátria por eles superiomente desprezada, fazedores das tais opiniões sectárias, quão distantes estão, contudo, dos novéis prosseguidores do receituário ideológico, que hoje em dia, tirante os da democracia mais apoiada em bibliografia antiga ou recente, se limitam a balbuciar o receituário da protecção e do amor pelos mais humildes, acompanhado do rancor pelos que melhor se safam, sem que este último pormenor acarrete necessariamente, aos tais, o apodo de safados. Bem haja ao OBSERVADOR, pela esperança que transmite, ao alertar para noções mais sensatas. Ou menos hipócritas.

“Pare o mundo que eu quero descer!” /premium
OBSERVADOR, 13/6/2018
A Seita insiste em manter-se na crista da onda da ‘libertação dos oprimidos’ içando a bandeira do seu ‘humanismo’ que Lhe permite forçar terceiros a colher tempestades de ventos que ela mesma semeou.
No âmago das reinvenções da contemporaneidade está a Seita, excrescência religiosa que ganhou rostos e vestes laicas e um poder de quem navega sobre o mar das vidas comuns com inquestionável direito a derramar crude. Ainda aguardamos por uma geração capaz de estancar a fonte poluidora para permitir que, finalmente, as demais cruzem a mancha tóxica enquanto esta se dilui.
Mas nada muda e a contaminação continua a atacar com particular virulência o nervo central da espécie. Resta aos comuns mortais tentar colocar a cabeça de fora das águas poluídas apenas para suavizarem a intoxicação. A luta pela liberdade desceu ao nível do mero instinto animal de sobrevivência.
Pertenço a uma das gerações às quais a Seita impôs a ‘libertação da opressão’. À época era urgentíssimo acabar com o ‘colonialismo’. Passou meio século e peças desconjuntadas de sociedades inteiras, cadáveres incluídos, não param de flutuar no tsunami poluidor que foi arrasando todo o meu continente natal e hoje espraia-se com violência nas margens do continente vizinho. Indiferente, a Seita insiste em manter-se na crista da onda da ‘libertação dos oprimidos’ içando mais e mais a bandeira do seu profundo ‘humanismo’ que Lhe permite forçar terceiros a colher tempestades de ventos que ela mesma semeou. A Seita, que nunca se coibiu de recorrer a escudos humanos nas suas ‘campanhas justiceiras’, vai perdendo a vergonha de alastrar a face mais sórdida dessas práticas à sua própria casa ao apoiar a viagem e instrumentalizar a chegada dos novos navios negreiros que descarregam sem dignidade, sem lei e de forma ostensivamente provocatória destroços humanos das suas aventuras tropicais ao longo de décadas.
Entretanto, a Seita havia imposto fórmulas urgentes de vitórias e mais vitórias dos países explorados sobre os países opressores. A caricatura está na visita do presidente do então novo país subdesenvolvido à mais poderosa superpotência da época onde descobriu que por lá trabalhavam vinte e quatro horas por dia e, no regresso, impôs que ‘A partir de hoje!’ a sua amada pátria revolucionária iria passar a trabalhar vinte e cinco horas por dia e a ultrapassagem da superpotência era uma questão de tempo. A variante no hemisfério norte foi a urgência de impedir que ‘os ricos ficassem com tudo o que era do povo’ que, assim, nunca se libertaria da pobreza cultural, social, económica. A Seita impôs um Estado intrometido em tudo e mais alguma e que cumprisse o sagrado desígnio de ser ele a investir, investir, investir, com e sem recursos. A vida passa e, na mancha poluidora, não param de emergir destroços de misérias, epidemias, famílias desconjuntadas, anomia, dívidas públicas colossais, património urbanístico arruinado e uma volumosa bola de impostos inutilizada na massa densa de crude. Sem remorsos e muito menos arrependimentos, a Seita quer mais e mais, agora combater o ‘neoliberalismo’, a especulação financeira, os mercados aos quais exige ‘Queremos as nossas vidas de volta!’
A Seita – sempre pronta a denegrir pela denúncia o passado anterior à sua própria existência – nunca se ensaiou em impor uma nova escola participativa que ‘libertaria’ os povos, na origem, de malformações mentais herdadas de um tempo de trevas com o qual era urgente romper. À medida que a mancha de crude foi trespassando as paredes das escolas quem por lá sobrevive vê-se forçado a especializar-se mais a mais no desvio dos destroços da indisciplina, violência, depressões, ruído. A Seita reage tornando ainda mais sagrado o farol-guia da sua navegação, agora orientado para a escola ‘inclusiva’ com ‘flexibilidade curricular’ e sem exames, os últimos uma imposição corrosiva da ‘boa’ e ‘autêntica’ relação pedagógica.
A Seita diverte-se ao mesmo tempo e cada vez mais surfando a nazarena onda feminista ou femista (sic) que ‘libertará’ as mulheres de milhões de anos de opressão masculina, dilúvio que, por arrasto, lavará a espécie de todos os pecados das opressões sexuais. Os dias passam e na mancha de crude já flutuam seres deformados pela poluição cuja cabeça vive enfiada no seu próprio baixo-ventre onde buscam loucamente o centro do universo.
No refluxo desta vaga talvez venha a celebração da páscoa, a recordação da navegação originária que fundou a Seita, o momento em que no deserto académico recebeu o mandamento sagrado de criar o ‘Homem Novo’, mas que obrigou a exegese a clarificar o significado profundo da originária palavra santa, criar o ‘Género Novo’. A causa terá sido um mero lapso do Criador que, muito atarefado nos primórdios, terá omitido a criação também da ‘Mulher Nova’ ou, com muitíssimo mais rigor, a criação da ‘Multi-Identidade-Variável-Inclusiva-de-Género’.
O “chato” que gritava nos ouvidos de Raul Seixas “Pare o mundo que eu quero descer!” talvez tivesse razão. Nada falta para habitarmos no Planeta-Manicómio.
Eduardo Lourenço e a geração lesa-pátria
OBSERVADOR, 7/7/2018
As fragilidades do pensamento social não resultam apenas de os indivíduos lerem pouco, mas também de tutelas letradas irmanadas numa bolha intelectual solitária e autocomplacente face aos seus vícios.
«Quem pode estranhar que durante dois anos um país inteiro, sabendo-o, vivia acima das suas posses, se é esse – sobretudo nas cidades, como em Lisboa, em que a regra do ‘parecer’ é imperativa – o padrão, tirado a milhares de exemplares, e o estilo de vida, dos particulares? Não só dos chamados «ricos» que mesmo ao seu nível estão habituados também a uma espécie de picarismo de alto coturno, mas de todas as camadas da população que não apanharão jamais um autocarro quando podem apanhar um táxi. (…) A austeridade pode ser um álíbi, mas a falta dela não é prova de revolucionarismo. A demagogia política e o reflexo estrutural que nos caracteriza combinaram-se para produzir o fenómeno pasmoso de alimentarmos a máquina económica com o dinheiro dos outros, gasto alegremente como se fosse nosso.»
As palavras não são de Pedro Passos Coelho. Ficaram registadas em O Labirinto da Saudade, de Eduardo Lourenço, publicado em 1978, livro que modelou a viciosidade intelectual do regime. Dos nove ensaios que o constituem, seis revelam uma qualidade sofrível, os que versam sobre a atualidade em torno de questões identitárias e sociais – psicanálise coletiva, mentalidade coletiva e emigração –, enquanto apenas três ensaios, os de cariz mais marcadamente histórico e literário, passariam no crivo da qualidade intelectual, um que aborda a literatura «(…) como interpretação de Portugal», outro o pensamento de Teófilo Braga sobre Camões e um terceiro a escrita ensaística de António Sérgio.
Tão grande desequilíbrio – que resume a um terço os textos que não deixam dúvidas sobre as qualidades do autor – evidencia, por um lado, as dificuldades do filósofo-ensaísta em lidar com a atualidade e, por outro lado, que terá pesado a carga politizada na sua transformação em patrono intelectual da geração pós-revolucionária.
Em qualquer sociedade, as fragilidades do pensamento social não resultam apenas de os indivíduos lerem pouco, mas também de tutelas letradas irmanadas numa bolha intelectual solitária cujos membros observam complacências mútuas face a vícios de pensamento. Sendo esse o balanço das últimas quatro décadas em Portugal, O Labirinto da Saudade permite compreender a génese do fenómeno, um livro em que a intermitente qualidade intelectual serviu para escudar a propagação social de vícios do pensamento.
Anoto que a radical hegemonia do pensamento de esquerda (universidades, comunicação social, partidos políticos, música, teatro, cinema, artes) tem a ver com o contexto da guerra fria em que se deu a epifania revolucionária de 1974 da qual resultou a renovação das tutelas da sociedade portuguesa, momento em que uma das superpotências atravessava uma crise conjuntural profunda iniciada no ano anterior (choque petrolífero, derrota no Vietname, escândalo do Watergate), enquanto a superpotência rival entrava no seu ciclo de maior projeção internacional, mas também o princípio do seu fim (1991). Tais circunstâncias tornaram quase impossível dissipar, naquele contexto, a névoa de ignorância sobre a natureza do regime soviético.
Sendo conjuntural, a cristalização dessa herança como uma fatalidade em Portugal deveu-se aos intelectuais que, à época, radicalizaram os seus significados. Naqueles momentos faltou um Edmund Burke que, perante desafios bem mais exigentes, nas Reflexões sobre a revolução em França manteve a primazia da racionalidade filosófica sobre a frivolidade do imediato, equiparando a importância da renovação das instituições de governação à necessidade de preservar as estruturas e símbolos de regulação da vida social e económica herdados, e que se reformariam no seu tempo próprio, uma vez que a rotura abrupta dos últimos acarretaria consequências perversas a prazo. Burke escrevia sobre a revolução iniciada em 1789 em cima dos acontecimentos (1790) e acertou por saber tirar partido do distanciamento de quem os analisava de fora, a partir do Reino Unido.
Quase dois séculos passados, Eduardo Lourenço partilhou idênticos pressupostos. Teve o mérito de abrir as portas para se afirmar como pensador de referência beneficiando de interpretar Portugal, país europeu periférico, a partir de França onde conquistara prestígio intelectual e de um maior intervalo cronológico entre os factos (1974-1975) e a escrita (1978). Todavia, utilizou esse capital para fazer de O Labirinto da Saudade um apologista de facção de utopias ingénuas da sociedade socialista, aprimorando a relação patológica congénita destas com o passado dado nascerem sempre contaminadas pela radicalização do ódio primário ao passado imediato.
Num país onde a modelação social da liberdade de pensamento estava congelada desde o fim da monarquia constitucional (1910), isto é, tinha atravessado a I República (1910-1926) e a II República (1926/1933-1974) ainda que por razões diversas, a intelectualidade da III República (1974) acabaria por sair do berço viciada em ignorar ou deturpar o que não lhe interessa no mundo que a rodeia, uma síndrome de castração intelectual que alimenta inevitáveis falhanços intelectuais a prazo.
O núcleo fundador dessa patologia do conhecimento instituiu-se em torno do recalcamento da URSS enquanto realidade singular (política, social, histórica, económica) passível de interpretação por critérios universais definidores da racionalidade analítica, atitude no entanto obstinadamente contrariada pela elite letrada que dominou o século XX. De França, Eduardo Lourenço transplantou o arquétipo para Portugal. Fê-lo num contexto em que os portugueses se buscavam a si mesmos no rescaldo da revolução, ciclo raro em que os indivíduos aprendem o sentido da existência coletiva por experiência própria muito mais do que através da superficialidade impessoal da televisão, rádio ou jornais. Significa que a nova semente intelectual foi lançada num terreno social fertilíssimo onde, além disso, dominava uma pirâmide etária esmagadoramente jovem que via abertas as portas das universidades como nunca. As consequências de longa duração foram inevitáveis e o balanço está hoje à vista.
Ao inserir Portugal num mundo então disputado pelas superpotências, O Labirinto da Saudade limita-se a laivos de crítica contra os ‘capitalistas’ dos EUA (suficiente para modelar a mira crítica das novas gerações letradas), enquanto a URSS não existe (semente do recalcamento intelectual do que pode incomodar). A atitude sustenta o à-vontade com que o autor rotula o Estado Novo de «totalitarismo» (p.26) «semitotalitário» (p.44), apreciações definidoras dos que desconheciam a realidade vivida na parte do mundo à qual se filiavam, caso contrário ser-lhes-ia bem mais difícil ousar termos desse teor ignorando Estaline e visando Salazar, ditador autoritário na matéria intelectualmente mais honesto do que os seus críticos. Se ainda hoje é extraordinariamente difícil combater a ignorância sobre a natureza dos regimes comunistas, e que assumiu proporções planetárias intergeracionais, as dificuldades acentuam-se em sociedades dominadas ao longo de décadas pelo culto intelectual da ignorância e, por essa razão, pouco sensíveis ao confronto dos factos, como a portuguesa.
Alargando a perspetiva, as mais perniciosas manifestações da síndrome de castração intelectual encontram a semente em O Labirinto da Saudade. Ao contrário de Edmund Burke, Eduardo Lourenço foi obsessivo em preparar os seus discípulos para procurarem no período histórico antecedente, o Estado Novo, quase só manifestações intelectuais, culturais ou existenciais bacocas que, sem dúvida, existiram. Mas também antes e após essa época, assim como a realidade vivida e pensada no quotidiano é precisamente a que se situa além dessas superficialidades. Instigar tal atitude significa coartar às sociedades a conquista e consolidação, por si mesmas, da liberdade de pensamento. Naqueles anos pós-revolucionários, como em qualquer época, domesticar ou aprisionar uma sociedade é sinónimo de castrar aprioristicamente as interpretações que ela, por si mesma, possa fazer do passado imediato, regra de ouro das tentações ditatoriais cuja quebra é o que melhor define a liberdade intelectual. Salvo raras exceções, a sociedade portuguesa anda desviada dessa tradição desde 1910.
Não é por isso surpreendente que o discurso do autor esteja marcado por incómodos sempre latentes quando lida com as ideias de pátria ou nação portuguesas que ele mesmo torna obsessivas. Opta por embrulhá-las em refinados argumentos filosóficos-literários-historiográficos mas que, à revelia do rigor terminológico e analítico ou do simples bom senso, soçobram vezes sem conta em adjetivações provocatórias na sua infantilidade. Estas agravam-se quando o objeto de análise mescla Portugal e Salazar, embora Eduardo Lourenço admita, e bem!, que o fenómeno se situa aquém e além do Estado Novo.
O rol fala por si: «irrealista»«impotência mascarada de poderio»«ficção ideológica»«mitologia arcaica e reacionária»«mentira orgânica»«‘vazio’ quase absoluto»«máscara»,«visão burguesa»«modo burlesco, alógico, provocador»«apoplético e delirante narcisismo»«místico-nacionalista»«‘Portugal-menino-jesus-das-nações’»«‘lusitanidade’ (…) nos termos mais cegos e dementes»«loucura natural e gloriosa»«colonialistas de segunda classe sem meios nem vontade para assumir uma grandeza de ficção»«inconsciência coletiva»«sonambulismo incurável»«‘mentira congenital’»«cegueira colonialista»«mistificação»«somos um povo de ‘sonhadores’»«o salazarismo mitificou alindando até ao grotesco»«política absoluta e criminosa»«Somos um povo de pobres com mentalidade de ricos».
Camões não escapa ao tiro-ao-alvo. «(…) Jorge de Sena encarregou-se de subtrair, com flamejante «fúria camoniana», ‘Os Lusíadas’ ao ‘ideário fascista’ que deles fazia bandeira e bíblia (…). Foi excelente subtrair assim pública e oficialmente, Camões, à banal ideologia reacionária que com notório, mas não de todo infundado abuso, fizera dele o padrão e a caução do mais exaltado e desvairado ‘nacionalismo’» (pp. 123-124). Ainda assim, «(…) Camões foi o cantor patético e violento, o ‘cruzado’ intelectual e moral consciente de sê-lo, mesmo se nela não foi humanamente mais, como a poetas pode suceder, que um marginal génio, codilhado e mal pago. Pobres, saímos de casa para ser ou tentar ser senhores (…)» (p.125).
», esses que Também não escapam os que chegavam à ex-metrópole com o fim abrupto do império que alimentava esse «desvairado ‘nacionalismo’transformavam o Aeroporto da Portela na «Pequena porta, portaló de espécie particular para recolha do lixo imperial» (p.39). O ferrete identificará para sempre o autor deste texto removido para um país onde esse ‘lixo imperial’ vive interditado de responder à letra com justo impacto público e, por cima, ao fim de quatro décadas e ainda sem direito a qualquer reparo tem de suportar a glorificação em cinema, por estes dias, do ilustríssimo pensamento que legitimou os seus carrascos.
Se qualquer identidade nacional necessita de reinvenções do sentido do seu destino coletivo, o que sobrará de referentes agregadores como pátria e nação depois de arrasados ao longo de décadas num ambiente de complacência intelectual generalizada?
Uma geração de letrados que se destacou pelo apagamento da anterior tradição patriótica para, em golpes de engenharia, se reconverter à orientação socialista internacionalista (‘multicultural’ na substância) algum dia teria de começar a ter de lamber as feridas. Revela-se sintomático que tão celebrado patrono dos caminhos intelectuais percorridos possa atravessar, com laivos de distanciamento inocente, a troca de argumentos em curso sobre a designação do futuro museu, ele que na sua obra magistral ensinou«Não trabalhar foi sempre, em Portugal, sinal de nobreza e quando, como na Europa futuramente protestante, o trabalho se converte por sua vez em sinal de eleição, nós descobrimos colectivamente a maneira de refinar uma herança ancestral transferindo ‘para o preto’ essa penosa obrigação. É mesmo essa a autêntica essência dos ‘Descobrimentos’, o resto, embora imenso, são adjacências» (p.130). No original, o termo ‘Descobrimentos’ está isolado em itálicos para evitar contaminar a decência da linguagem. Acrescento que Eduardo Lourenço remeteu a expansão ultramarina e o império para o âmago da identidade portuguesa, embora ouse avaliar sumariamente esse mesmo império a partir de França sem experiência vivencial, atitude irmanada à de outros ícones intelectuais do século XX que refletiram sobre o ‘colonialismo’ na África negra por telepatia.
Num livro cujo subtítulo é Psicanálise Mítica do Destino Português, a síndrome de castração intelectual explica o esvaziamento do significado do ‘mito’. Do passado ancestral à contemporaneidade, o conceito ajudara a captar e interpretar o funcionamento complexo das identidades coletivas. Todavia, a inépcia em lidar com as ideias de pátria nação levou, por arrasto, o filósofo-ensaísta a castrar parte essencial do significado do mito e respetivos ritos, circunscrevendo-os apenas à dimensão pejorativa, falsa, dissimulada. Daí que, em 1978, tomasse como pressuposto do desenvolvimento – que finalmente a revolução tornaria possível! – a desfiliação dos portugueses do seu próprio e longo passado histórico e, para ser convincente, Eduardo Lourenço sobrecarregou-o de pretensas cargas ‘mitológicas’. A consequência intelectual foi a de até o passado factual passar a caber nesse ‘saco mitológico’ sem fundo.
Tendo em conta o fortíssimo impacto do pensamento do autor nos paroquiais meios universitários onde passaram a brotar progressistas e ativistas, a moda pegou ao ponto do ataque aos ‘mitos’– que estes agentes aprendem da cátedra a detetar por todo o lado (os dos outros, nunca os próprios) – se ter tornado no escudo dos ineptos em legitimar o seu desprezo ou ódio às identidades de matriz portuguesa. Por alguma razão, a intelectualidade da III República nunca largou o pódio dos corrosivos da identidade própria apesar da forte concorrência ocidental e única no planeta afetada pela patologia.
Um dos ensaios ou capítulo, «Somos um povo de pobres com mentalidade de ricos» (pp.129-137), tem a vantagem de concentrar os vícios intelectuais dispersos pelo livro com a peculiaridade de revelar o arquétipo luso do desprezo da bolha letrada pelo ‘povo’. Eduardo Lourenço mal consegue puxar o lustro ao indisfarçável ressentimento intelectual porque o ‘povo’ terá tido manifestações de empatia pelo regime anterior impossíveis de apagar da memória coletiva. Em jeito de quem se vinga de amores traídos, o autor ficciona um ‘povo’ que, além da secular tradição viciosa de se afastar do trabalho em busca das glórias ilusórias do império, é dominado pela «(…) célebre mentalidade milagreira portuguesa [que] procede desta situação, em si não insólita, mas aberrante pela extensão e o tempo que se prolongou»(p.132).
Se uma certa dose de intuição terá feito Salazar comprar no supermercado das imagens para fins políticos as virtudes do trabalho, religiosidade ou pobreza para controlar o ‘povo’, no mesmo fornecedor para fins pedagógicos a intuição de Eduardo Lourenço fê-lo preferir as imagens da preguiça ‘colonialista’ e da crendice para condicionar os novos governantes na terapia a aplicar a esse mesmo ‘povo’. Bastou rotular o primeiro de delirante-inconsciente-mistificador-mentiroso-orgânico para o último converter os discípulos à sua genialidade. Claro que o filósofo-ensaísta sustentou as suas teses:  «E será decerto pouco provável esperar, antes de longos anos, da almejada sociedade socialista a construir, uma mudança consciente naquilo que não é da ordem do político, embora o implique, mas da ordem obscura e da trama quase orgânica da ‘mentalidade’. Mas se essa mudança não é uma utopia, só pode esperar-se da transformação da mentalidade económica e social coadjuvada com uma prática pedagógica digna de uma sociedade anti-individualista, antiegoísta, como, em princípio, uma sociedade socialista deve ser» (p.135).
O mesmo foi defendido por intelectuais brilhantes da antiga URSS, Cuba, Coreia do Norte, Venezuela ou Moçambique, entre outros países parcial ou totalmente arruinados. Quantas décadas mais a tralha que a bolha intelectual vigente produz continuará a passar por sabedoria ou, pior, por genialidade?


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