O nosso provincianismo, feito
de estupefacção, já parodiado – em espanhol - na primeira peça de Gil Vicente -
Auto da Visitação – de 1502 – que põe o Vaqueiro em elogios aparolados
perante as belezas palacianas que elogia, incluindo os seus representantes
reais, entre os quais o futuro D. João III, que acabara de nascer, (já o
caminho marítimo da Índia e o descobrimento do Brasil tinham constituído feitos
de vulto para o nosso país), é um traço que nos ficou, contudo, proveniente igualmente
dessa “safra do apanhar”, que nos distinguiu, como ao próprio “Onzeneiro”,
também vicentino, e nos encurtou o tempo de estudo necessário para que não sentíssemos
tão fundo o complexo de inferioridade que sempre nos acompanhou, ante os povos
mais salientes culturalmente. É muito conhecido o texto de Fernando Pessoa
sobre o provincianismo português, como mal superior nosso, a que nem o próprio
Eça escapou, na sua ironia devastadora e aparentemente demarcante, resultante das
suas experiências viageiras por meios mais dilatados culturalmente, mas a
própria ironia sendo as mais das vezes sintomática da posição de admiração pelo
estrangeiro, característica provinciana, na definição de Pessoa. Transcrevo-o
da Internet:
O PROVINCIANISMO PORTUGUÊS
Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a
realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num síndroma o mal
superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. O facto é
triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países,
que se consideram civilizantes com orgulho e erro.
O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte
no desenvolvimento superior dela — em segui-la pois mimeticamente, com uma
subordinação inconsciente e feliz.
O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes:
o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o
entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental
superior, a incapacidade de ironia.
Se há característico que imediatamente distinga o provinciano, é a
admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris.
Como há-de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo
um paranóico com o delírio das grandezas. Recordo-me de que uma vez, nos tempos
do « Orpheu», disse a Mário de Sá-Carneiro: «V. é europeu e civilizado,
salvo em uma coisa, e nessa V. é vítima da educação portuguesa. V. admira
Paris, admira as grandes cidades. Se V. tivesse sido educado no estrangeiro, e
sob o influxo de uma grande cultura europeia, como eu, não daria pelas grandes
cidades. Estavam todas dentro de si».
O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico
provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a
modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui
importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. Diga-se
incidentalmente: é esta uma das explicações do socialismo. Se alguma tendência
têm os criadores de civilização, é a de não repararem bem na importância do que
criam. O Infante D. Henrique, com ser o mais sistemático de todos os criadores
de civilização, não viu contudo que prodígio estava criando — toda a civilização
transoceânica moderna, embora com consequências abomináveis, como a existência
dos Estados Unidos. Dante adorava Vergílio como um exemplar e uma estrela,
nunca sonharia em comparar-se com ele; nada há, todavia, mais certo que o ser a
«Divina Comédia» superior à «Eneida». O provinciano, porém, pasma do que não
fez, precisamente porque o não fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo. Se assim
não sentisse, não seria provinciano.
É na incapacidade de ironia que reside o traço mais fundo do
provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê
nos cafés e nas redacções, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A
essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do
texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do
facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de
todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, e como
sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa
fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Exarnina com grande
seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de
menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas
assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir,
do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a
circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser
feita a sério.
A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da
expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses
chamam detachment — o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se
em dois, produto daquele «desenvolvimento da largueza de consciência», em que,
segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para
a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser provinciano.
O exemplo mais flagrante do provincianismo português é Eça de Queirós. É
o exemplo mais flagrante porque foi o escritor português que mais se preocupou
(como todos os provincianos) em ser civilizado. As suas tentativas de ironia
aterram não só pelo grau de falência, senão também pela inconsciência dela.
Neste capítulo, «A Relíquia», Paio Pires a falar francês, é um documento
doloroso. As próprias páginas sobre Pacheco, quase civilizadas, são estragadas
por vários lapsos verbais, quebradores da imperturbabilidade que a ironia
exige, e arruinadas por inteiro na introdução do desgraçado episódio da viúva
de Pacheco. Compare-se Eça de Queirós, não direi já com Swift, mas, por
exemplo, com Anatole France. Ver-se-á a diferença entre um jornalista, embora
brilhante, de província, e um verdadeiro, se bem que limitado, artista.
Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O
provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não
somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não
somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no
conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido.
Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos.
FERNANDO PESSOA, 1928
Vem o caso a propósito do
artigo de ALBERTO GONÇALVES, sobre Madonna e o seu parque de estacionamento,
concedido não por gentileza mas por servilismo tacanho nosso, através do representante
português, o Presidente da Câmara de Lisboa. E outros dados apelativos do tom ferozmente
atrabiliário do articulista, geralmente dando no vinte, com as suas sínteses
jocosas, mas resultantes também de um desmesurado orgulho, certamente por ser
ele próprio o alvo principal da sua admiração e isso significar, quanto a mim,
idêntico sintoma de provincianismo, pela tolice da imodéstia. Quando ontem
estive a rever na TV Memória “A Ponte do Rio Kwai”, no orgulho do Coronel Nicholson (Alec Guinness)
em construir uma obra de engenharia que ficasse como lição não só para os
japoneses mas para o mundo inteiro, (ponte, aliás, que ele próprio destruiria
heroicamente, com a sua própria imolação, ao dar-se conta do erro), pensei no
orgulho inglês traduzido num certo desprezo pelos outros, como sintoma de
provincianismo também, na vaidade incomensurável da sua superioridade
intelectual. Nem de propósito. Apliquei-o a este texto de Alberto Caeiro, como
ao de um seu comentarista que igualmente transcrevo.
Acho que todos temos algo de
provinciano, quer quando admiramos, quer quando desprezamos.
As aventuras de Ronaldo na 5ª
Avenida /premium
OBSERVADOR, 7/7/2018
É ridículo supor que Lisboa é mais provinciana
que o resto do país: em matéria de provincianismo e atraso de vida, é a cara
chapada. Eça, que morava longe, fartou-se de o notar. Em 130 anos nada mudou
A Grande Polémica dos últimos tempos prendeu-se com a intervenção
directa do “mayor” de Nova Iorque no processo em que Cristiano Ronaldo requisitava
um galinheiro perto da Trump Tower, onde possui um apartamento e centenas de
frangos. Após deliberar durante meia hora, o município decidiu atribuir-lhe um
terreno vizinho à taxa mensal de vinte cêntimos por pé quadrado. Face às
críticas de cidadãos anónimos e por isso desprezíveis, todas em volta do mote
“também quero um galinheiro barato junto a casa”, o “mayor” explicou-se com
mestria: a decisão não é uma “situação de excepção” (ocasionalmente, se os
particulares pedirem com jeitinho, a City Hall dispensa-lhes pedaços da Quinta
Avenida com propósitos avícolas). De resto, cito, “é melhor do que os
galináceos do sr. Ronaldo andarem à solta na rua, a perturbar o trânsito e a
higiene”.
Claro que é. E as vantagens não terminam aí. Felizmente, mesmo entre a
populaça, houve vozes sensatas, que se lembraram de sublinhar os benefícios
para Nova Iorque que as erráticas estadias do sr. Ronaldo implicam. Nas suas
páginas nas “redes sociais”, frequentadas por dezenas de milhões, ele divulga
lojas de bagels, quiosques de pretzels, galerias do SoHo e praias de Long
Island. Em consequência, no mundo inteiro, gente que nunca ouvira falar de
Manhattan e redondezas precipita-se para lá às manadas a fim de imitar o estilo
de vida do sr. Ronaldo. Além do galinheiro, NYC deve-lhe uma estátua.
Por azar, no mundo real isto não passa de ficção. Os factos prendem-se
com a cedência, pela câmara de Lisboa, de um vasto parque de estacionamento à
cançonetista Madonna. O negócio, a preços para aí de 1932, irritou inúmeras
almas. E a irritação destas irritou outras, que consideram a medida adequada à
fama da cançonetista, a qual para cúmulo faz publicidade a casas de fado, aos
pastéis de nata, a Sintra e ao Benfica. Ou seja, no mundo real a dona Madonna
foi enxotada de uma mansão próxima ao Central Park após os vizinhos se fartarem
do barulho. Em Lisboa, vê-se recebida de braços e pernas abertos. E, caso a
senhora resolva guinchar, de ouvidos fechados. A troco de quê? Parece que do
“prestígio”.
Faz sentido. Jamais conheci quem quisesse de borla um disco da dona
Madonna: a que pretexto, que não o da parolice mais radical, alguém haveria de
querer pagar pela própria? Custa desiludir os excitados, mas uma cidade que se
sente valorizada pela presença de uma “vedeta” não é bem uma cidade: é uma
vítima da periferia, uma coisinha remota e obscura, um ermo em suma. Não
tenciono discutir se Lisboa é um ermo. A questão é que alguns lisboetas,
incluindo o sujeito que preside à autarquia, julgam que sim. Pelos vistos, o
impacto turístico de séculos de História, patética ou heróica consoante a
perspectiva, empalidece perante o “like” da intérprete de “La Isla Bonita”.
Ao contrário do que sucede com os poderes políticos e económicos, não
pretendo concentrar-me na capital. Acredito que idêntico grau de deslumbramento
aconteceria se George Clooney adquirisse uma quinta no Gerês ou os U2 montassem
estúdio em Pombal. Ou, por mero absurdo, se Obama passasse pelo Porto a dizer
patetices e torcegar o tráfego. É ridículo supor que Lisboa é mais
provinciana que o resto do país: em matéria de provincianismo, e atraso de
vida, é a cara chapada. Eça, que morava longe, fartou-se de o notar. O
engraçado (“engraçado” não é a palavra exacta) é que, 130 anos depois, a
lendária “identidade” não mudou. Nas últimas décadas, entraram por aí
“fundos”, tecnologia, carros, turistas, “start-ups”, o que calhou. Os
portugueses aproveitaram tudo, misturaram tudo, consumiram tudo e, na essência,
permaneceram isolados como antes. E pasmados como nunca.
Em suma, a nossa existência carece da legitimação de terceiros. Uma
“vedeta” facilita. Se não se arranja a “vedeta”, qualquer estrangeiro anónimo
serve: não deve haver lugar na Terra onde os visitantes são interrogados com
tanta frequência – e ansiedade – acerca da opinião que têm de Portugal. Dado
que os visitantes são geralmente simpáticos e a opinião é geralmente positiva,
os repórteres que os massacram podem espalhar a aprovação com patriótico furor.
E, após escutar atentamente os louvores do sr. Hans Meier, contabilista de Zurique,
sobre o bacalhau e o sol, os portugueses podem concluir que são os maiores. E
adormecer em paz, cheiinhos de medo de não serem nada.
Nota de rodapé
As três principais figuras do Estado subiram a um palco para cantar a
“Casinha” dos Xutos e Pontapés, e as figuras que fizeram não se descrevem. Um
deputado do PCP foi apanhado nas consultas de um hospital privado, o
representante exacto de tudo o que o comunismo combate. A passagem da
“selecção” da bola pelo campeonato do sector inspirou as habituais exibições de
patriotismo, felizmente moderadas pela eliminação sumária. A dívida pública
alcançou novos recordes, justificando os amplos louvores ao dr. Centeno. Muitos
inimigos das touradas continuam a ser mais repulsivos do que o repulsivo
espectáculo que querem proibir, sendo “proibir” a palavra-chave e o único
desígnio dessa gente. O PSD juntou-se ao PS para depositar o dr. Soares no
Panteão, isto se os partidos ainda merecerem ser citados separadamente. E houve
a frota automóvel de Madonna em Lisboa e a ecologia, alimentada a jato, de
Obama no Porto. Tudo aconteceu na meia dúzia de dias em que gozei férias. O
país não tem férias, mas goza que se farta.
Um Comentário
Vasco Bragança: Por mero acaso, e não obnubilando o brilho
habitual das crónicas do AG, desta vez não estou de acordo com ele. Eça, que
deu o pontapé de saída nas observações sobre o provincianismo geral existente
no nosso país, também criticava, até de forma mais incisiva, o deslumbre do
basbaque pelas frivolidades. Sobretudo se elas se situassem na grande cidade
(Lisboa em particular), satirizando a mundanidade do seu tempo. O provinciano
elitista (vale dizer o lisboeta semi-ilustrado) achava que o mundo se continha
entre o Chiado e a Rua do Alecrim...
É por isso que entendo que o verdadeiro provincianismo está em relevar o
pequeno escândalo da cunhazinha, da Madonna e da Câmara. E, na verdade, a
historiazinha tornou-se o tema do momento, no país inteiro, cujos desocupados
habitantes aproveitaram nova ocasião para sentir o sabor inebriante da indignação...
Como se uma trivial história de rua e de garagem de um bairro, ao qual se anda
a puxar o lustro de um certo je ne sais quoi, fosse a coisa mais importante
para o país e para os seus cidadãos.
Em post aqui colocado a propósito do tema, relembrei os indignados de
uma pouca vergonha recente da mesma Câmara, que andou durante anos a distribuir
imóveis pela cidade (3 mil duzentos e tal), como se fossem rebuçados, a metade
dos seus funcionários e a agentes culturais, bem como às famílias daqueles, à qual
muito pouca gente ligou. A intenção era dar-lhes a noção da perspectiva. Mas há
coisas que nunca mudam.
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