domingo, 8 de julho de 2018

Somos todos provincianos



O nosso provincianismo, feito de estupefacção, já parodiado – em espanhol - na primeira peça de Gil Vicente - Auto da Visitação – de 1502 – que põe o Vaqueiro em elogios aparolados perante as belezas palacianas que elogia, incluindo os seus representantes reais, entre os quais o futuro D. João III, que acabara de nascer, (já o caminho marítimo da Índia e o descobrimento do Brasil tinham constituído feitos de vulto para o nosso país), é um traço que nos ficou, contudo, proveniente igualmente dessa “safra do apanhar”, que nos distinguiu, como ao próprio “Onzeneiro”, também vicentino, e nos encurtou o tempo de estudo necessário para que não sentíssemos tão fundo o complexo de inferioridade que sempre nos acompanhou, ante os povos mais salientes culturalmente. É muito conhecido o texto de Fernando Pessoa sobre o provincianismo português, como mal superior nosso, a que nem o próprio Eça escapou, na sua ironia devastadora e aparentemente demarcante, resultante das suas experiências viageiras por meios mais dilatados culturalmente, mas a própria ironia sendo as mais das vezes sintomática da posição de admiração pelo estrangeiro, característica provinciana, na definição de Pessoa. Transcrevo-o da Internet:

O PROVINCIANISMO PORTUGUÊS
Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. O facto é triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.
O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela — em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz.
O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.
Se há característico que imediatamente distinga o provinciano, é a admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas. Recordo-me de que uma vez, nos tempos do « Orpheu», disse a Mário de Sá-Carneiro: «V. é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa V. é vítima da educação portuguesa. V. admira Paris, admira as grandes cidades. Se V. tivesse sido educado no estrangeiro, e sob o influxo de uma grande cultura europeia, como eu, não daria pelas grandes cidades. Estavam todas dentro de si».
O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. Diga-se incidentalmente: é esta uma das explicações do socialismo. Se alguma tendência têm os criadores de civilização, é a de não repararem bem na importância do que criam. O Infante D. Henrique, com ser o mais sistemático de todos os criadores de civilização, não viu contudo que prodígio estava criando — toda a civilização transoceânica moderna, embora com consequências abomináveis, como a existência dos Estados Unidos. Dante adorava Vergílio como um exemplar e uma estrela, nunca sonharia em comparar-se com ele; nada há, todavia, mais certo que o ser a «Divina Comédia» superior à «Eneida». O provinciano, porém, pasma do que não fez, precisamente porque o não fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo. Se assim não sentisse, não seria provinciano.
É na incapacidade de ironia que reside o traço mais fundo do provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redacções, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Exarnina com grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério.
A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment — o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele «desenvolvimento da largueza de consciência», em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser provinciano.
O exemplo mais flagrante do provincianismo português é Eça de Queirós. É o exemplo mais flagrante porque foi o escritor português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado. As suas tentativas de ironia aterram não só pelo grau de falência, senão também pela inconsciência dela. Neste capítulo, «A Relíquia», Paio Pires a falar francês, é um documento doloroso. As próprias páginas sobre Pacheco, quase civilizadas, são estragadas por vários lapsos verbais, quebradores da imperturbabilidade que a ironia exige, e arruinadas por inteiro na introdução do desgraçado episódio da viúva de Pacheco. Compare-se Eça de Queirós, não direi já com Swift, mas, por exemplo, com Anatole France. Ver-se-á a diferença entre um jornalista, embora brilhante, de província, e um verdadeiro, se bem que limitado, artista.
Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos.
FERNANDO PESSOA, 1928

Vem o caso a propósito do artigo de ALBERTO GONÇALVES, sobre Madonna e o seu parque de estacionamento, concedido não por gentileza mas por servilismo tacanho nosso, através do representante português, o Presidente da Câmara de Lisboa. E outros dados apelativos do tom ferozmente atrabiliário do articulista, geralmente dando no vinte, com as suas sínteses jocosas, mas resultantes também de um desmesurado orgulho, certamente por ser ele próprio o alvo principal da sua admiração e isso significar, quanto a mim, idêntico sintoma de provincianismo, pela tolice da imodéstia. Quando ontem estive a rever na TV Memória “A Ponte do Rio Kwai”, no orgulho do Coronel Nicholson (Alec Guinness) em construir uma obra de engenharia que ficasse como lição não só para os japoneses mas para o mundo inteiro, (ponte, aliás, que ele próprio destruiria heroicamente, com a sua própria imolação, ao dar-se conta do erro), pensei no orgulho inglês traduzido num certo desprezo pelos outros, como sintoma de provincianismo também, na vaidade incomensurável da sua superioridade intelectual. Nem de propósito. Apliquei-o a este texto de Alberto Caeiro, como ao de um seu comentarista que igualmente transcrevo.
Acho que todos temos algo de provinciano, quer quando admiramos, quer quando desprezamos.

As aventuras de Ronaldo na 5ª Avenida /premium
OBSERVADOR, 7/7/2018
É ridículo supor que Lisboa é mais provinciana que o resto do país: em matéria de provincianismo e atraso de vida, é a cara chapada. Eça, que morava longe, fartou-se de o notar. Em 130 anos nada mudou

A Grande Polémica dos últimos tempos prendeu-se com a intervenção directa do “mayor” de Nova Iorque no processo em que Cristiano Ronaldo requisitava um galinheiro perto da Trump Tower, onde possui um apartamento e centenas de frangos. Após deliberar durante meia hora, o município decidiu atribuir-lhe um terreno vizinho à taxa mensal de vinte cêntimos por pé quadrado. Face às críticas de cidadãos anónimos e por isso desprezíveis, todas em volta do mote “também quero um galinheiro barato junto a casa”, o “mayor” explicou-se com mestria: a decisão não é uma “situação de excepção” (ocasionalmente, se os particulares pedirem com jeitinho, a City Hall dispensa-lhes pedaços da Quinta Avenida com propósitos avícolas). De resto, cito, “é melhor do que os galináceos do sr. Ronaldo andarem à solta na rua, a perturbar o trânsito e a higiene”.
Claro que é. E as vantagens não terminam aí. Felizmente, mesmo entre a populaça, houve vozes sensatas, que se lembraram de sublinhar os benefícios para Nova Iorque que as erráticas estadias do sr. Ronaldo implicam. Nas suas páginas nas “redes sociais”, frequentadas por dezenas de milhões, ele divulga lojas de bagels, quiosques de pretzels, galerias do SoHo e praias de Long Island. Em consequência, no mundo inteiro, gente que nunca ouvira falar de Manhattan e redondezas precipita-se para lá às manadas a fim de imitar o estilo de vida do sr. Ronaldo. Além do galinheiro, NYC deve-lhe uma estátua.
Por azar, no mundo real isto não passa de ficção. Os factos prendem-se com a cedência, pela câmara de Lisboa, de um vasto parque de estacionamento à cançonetista Madonna. O negócio, a preços para aí de 1932, irritou inúmeras almas. E a irritação destas irritou outras, que consideram a medida adequada à fama da cançonetista, a qual para cúmulo faz publicidade a casas de fado, aos pastéis de nata, a Sintra e ao Benfica. Ou seja, no mundo real a dona Madonna foi enxotada de uma mansão próxima ao Central Park após os vizinhos se fartarem do barulho. Em Lisboa, vê-se recebida de braços e pernas abertos. E, caso a senhora resolva guinchar, de ouvidos fechados. A troco de quê? Parece que do “prestígio”.
Faz sentido. Jamais conheci quem quisesse de borla um disco da dona Madonna: a que pretexto, que não o da parolice mais radical, alguém haveria de querer pagar pela própria? Custa desiludir os excitados, mas uma cidade que se sente valorizada pela presença de uma “vedeta” não é bem uma cidade: é uma vítima da periferia, uma coisinha remota e obscura, um ermo em suma. Não tenciono discutir se Lisboa é um ermo. A questão é que alguns lisboetas, incluindo o sujeito que preside à autarquia, julgam que sim. Pelos vistos, o impacto turístico de séculos de História, patética ou heróica consoante a perspectiva, empalidece perante o “like” da intérprete de “La Isla Bonita”.
Ao contrário do que sucede com os poderes políticos e económicos, não pretendo concentrar-me na capital. Acredito que idêntico grau de deslumbramento aconteceria se George Clooney adquirisse uma quinta no Gerês ou os U2 montassem estúdio em Pombal. Ou, por mero absurdo, se Obama passasse pelo Porto a dizer patetices e torcegar o tráfego. É ridículo supor que Lisboa é mais provinciana que o resto do país: em matéria de provincianismo, e atraso de vida, é a cara chapada. Eça, que morava longe, fartou-se de o notar. O engraçado (“engraçado” não é a palavra exacta) é que, 130 anos depois, a lendária “identidade” não mudou. Nas últimas décadas, entraram por aí “fundos”, tecnologia, carros, turistas, “start-ups”, o que calhou. Os portugueses aproveitaram tudo, misturaram tudo, consumiram tudo e, na essência, permaneceram isolados como antes. E pasmados como nunca.
Em suma, a nossa existência carece da legitimação de terceiros. Uma “vedeta” facilita. Se não se arranja a “vedeta”, qualquer estrangeiro anónimo serve: não deve haver lugar na Terra onde os visitantes são interrogados com tanta frequência – e ansiedade – acerca da opinião que têm de Portugal. Dado que os visitantes são geralmente simpáticos e a opinião é geralmente positiva, os repórteres que os massacram podem espalhar a aprovação com patriótico furor. E, após escutar atentamente os louvores do sr. Hans Meier, contabilista de Zurique, sobre o bacalhau e o sol, os portugueses podem concluir que são os maiores. E adormecer em paz, cheiinhos de medo de não serem nada.
Nota de rodapé
As três principais figuras do Estado subiram a um palco para cantar a “Casinha” dos Xutos e Pontapés, e as figuras que fizeram não se descrevem. Um deputado do PCP foi apanhado nas consultas de um hospital privado, o representante exacto de tudo o que o comunismo combate. A passagem da “selecção” da bola pelo campeonato do sector inspirou as habituais exibições de patriotismo, felizmente moderadas pela eliminação sumária. A dívida pública alcançou novos recordes, justificando os amplos louvores ao dr. Centeno. Muitos inimigos das touradas continuam a ser mais repulsivos do que o repulsivo espectáculo que querem proibir, sendo “proibir” a palavra-chave e o único desígnio dessa gente. O PSD juntou-se ao PS para depositar o dr. Soares no Panteão, isto se os partidos ainda merecerem ser citados separadamente. E houve a frota automóvel de Madonna em Lisboa e a ecologia, alimentada a jato, de Obama no Porto. Tudo aconteceu na meia dúzia de dias em que gozei férias. O país não tem férias, mas goza que se farta.

Um Comentário
Vasco Bragança: Por mero acaso, e não obnubilando o brilho habitual das crónicas do AG, desta vez não estou de acordo com ele. Eça, que deu o pontapé de saída nas observações sobre o provincianismo geral existente no nosso país, também criticava, até de forma mais incisiva, o deslumbre do basbaque pelas frivolidades. Sobretudo se elas se situassem na grande cidade (Lisboa em particular), satirizando a mundanidade do seu tempo. O provinciano elitista (vale dizer o lisboeta semi-ilustrado) achava que o mundo se continha entre o Chiado e a Rua do Alecrim...
É por isso que entendo que o verdadeiro provincianismo está em relevar o pequeno escândalo da cunhazinha, da Madonna e da Câmara. E, na verdade, a historiazinha tornou-se o tema do momento, no país inteiro, cujos desocupados habitantes aproveitaram nova ocasião para sentir o sabor inebriante da indignação... Como se uma trivial história de rua e de garagem de um bairro, ao qual se anda a puxar o lustro de um certo je ne sais quoi, fosse a coisa mais importante para o país e para os seus cidadãos.
Em post aqui colocado a propósito do tema, relembrei os indignados de uma pouca vergonha recente da mesma Câmara, que andou durante anos a distribuir imóveis pela cidade (3 mil duzentos e tal), como se fossem rebuçados, a metade dos seus funcionários e a agentes culturais, bem como às famílias daqueles, à qual muito pouca gente ligou. A intenção era dar-lhes a noção da perspectiva. Mas há coisas que nunca mudam.


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