Abençoada França, que
serve o mundo com a qualidade dos seus programas televisivos que tanto contribuem para estimular, no seu mundo, (e no nosso, para quem os segue), o gosto
pela arte e a beleza. Desta vez o programa de domingo à noite foi “300 choeurs fêtent la musique”, em que diversos coros acompanhavam
cantores conhecidos, quer em números de ópera, quer de música ligeira, êxitos
do ano, árias clássicas em fusão, por vezes, com música ligeira, de
extraordinário efeito harmónico. Julgo que entre nós também há grupos corais –
benditos sejam – que cantam em salas, em capelas ou igrejas, vozes bem
expressivas que uma televisão interessada na formação dos seus cidadãos, devia
chamar para as suas programações.
Leio o texto de Maria João Avillez, e
talvez por isso me acudiram os termos abençoado e bendito, da minha introdução
ao seu texto, toda eu numa de recolhimento e êxtase, já que é de profundo amor
o retrato que MJA faz de José Tolentino de Mendonça, ordenado Arcebispo este sábado,
28/7. Alguns dados que retiro da Internet, para colaborar com o sentimento de
apreço que o inspirou:
«Formado
em teologia bíblica, Tolentino de Mendonça tornou-se padre aos 24 anos, quando
editou também o seu primeiro livro de poesia. É autor de dezenas de
publicações, especialmente de poesia, mas também de ensaios e textos pastorais,
e foi galardoado em 2001 com a ordem do Infante D. Henrique, e em 2015 com a
Ordem de Sant´Iago de Espada. Doutor em Teologia Bíblica, antigo vice-reitor da
Universidade Católica e director da respectiva Faculdade de Teologia, consultor
do Conselho Pontifício da Cultura, reitor do Pontifício Colégio Português em
Roma, director do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura da Igreja
Católica em Portugal, será arcebispo a partir de agora e arquivista e
bibliotecário a partir de Setembro.»
E já agora, para formar um retrato mais completo, transcrevo dele dois poemas, que traduzem o amor que o tornou “eleito”- de Deus ou dos Homens que o promoveram. Versos de pensamento profundo e sinuoso, no seu sintetismo lapidado, e que abriu o apetite para os outros:
Inscrição
o brilho é o leve
júbilo
que sustenta os versos
júbilo
que sustenta os versos
ainda que sejamos obscuros
e nenhum nome
sirva jamais para dizer
o fogo
sirva jamais para dizer
o fogo
Revelação
Meu o ofício incerto das palavras
a evocação do tempo
o recurso ao fogo
Meu o provisório olhar
sobre este rio
o fascínio consentido das margens
sitiando a distância
Meus são os dedos que em tumulto
modelam capitéis
de sombra e arestas
Mas oculto na brisa
és Tu quem percorre o poema
despertando as aves
e dando nome aos peixes
a evocação do tempo
o recurso ao fogo
Meu o provisório olhar
sobre este rio
o fascínio consentido das margens
sitiando a distância
Meus são os dedos que em tumulto
modelam capitéis
de sombra e arestas
Mas oculto na brisa
és Tu quem percorre o poema
despertando as aves
e dando nome aos peixes
Os escolhidos /premium
28/7/2018, 0:09
Tanto o Gianfranco Ravasi como José Tolentino Mendonça foram pescados à
linha por Deus que um dia olhou para eles como costuma olhar para os
escolhidos. Que como se sabe são bem menos que os chamados.
1. “Nada acontece até ser
contado” dizia Virginia Woolf que muito contou e bem contou. Tinha razão: o
contar pode transformar um quinhão de vida num acontecimento. E se desistirmos
de contar, que outro destino para o não contado que um poço vazio? Penso muitas
vezes nisso. Penso de cada vez que venho ao de cima de qualquer coisa que de
imediato me sinaliza que há que contar. Contar sem que importe definir o fio –
intuição? impulso? — que nos conduziu. Importa antes que o desatar do fio tenha
trazido consigo aquilo que de tão misterioso altera a natureza das coisas,
fazendo delas um “acontecimento”. E tanto faz que ele seja privado, pertença
apenas a alguns, ou a todos: o que conta é o poder transformador do contar.
O escritor holandês Cees
Nooteboom de quem leio agora um diário (“533 dias”, Siruela, Espanha) também se
interrogava sobre isso mesmo: “como descrever algo que para o mundo nunca
contaria como um acontecimento mas para nós, sim?”
Não preciso porém de recorrer
à história dos 533 dias que Nooteboom passou na sua amada casa da ilha de
Minorca para classificar de “acontecimento” uma noite inclassificável que
testemunhei há dias e merece ser contada.
Passando eu agora a voluntária
mensageira dessa noite.
2. Foi a meio de Julho na
Capela do Rato. Alguém — ignoro quem — se propôs homenagear o poeta José
Tolentino Mendonça celebrando a sua poesia e cantando-lhe os seus versos.
Contar o límpido momento que
lá se viveu, fá-lo ter acontecido. Foi emotivo, profundo, íntimo. Escolhidas
por Leonor Xavier — “encenadora” do límpido momento — vinte e cinco pessoas
“muito diversas”, encontradas no mar dos crentes ou nas águas dos não crentes,
tornaram-se, com a sua voz, parte desta celebração, ramos da mesma árvore,
veios da mesma folha.
Anunciadas por mera ordem
alfabética e sem mais indicação que a sua profissão, cada uma dessas pessoas
“diversas” subiu três degraus de madeira e por entre a espessura de um silêncio
que parecia não ter fundo, nem fim, leu, murmurou ou disse as palavras do
poeta. Escolha livre, sem ensaio prévio, nem prévia combinação: “tragam um
livro do Tolentino e leiam um poema” apenas dissera Leonor.
Antes, ouvira-se, breve, uma
flauta; depois, plangente, uma guitarra. Aconteceu assim. Numa intimidade só
possível e entendível por estar tão enrolada na raiz silenciosa do que ali se
queria dizer.
3. Há
muitas espécies de silêncios, sabemos bem, e mesmo que nenhum ecoe do mesmo
modo, nunca será demais evocar o que mora na Capela do Rato. É um silêncio só
de lá. Seja a abarrotar de pessoas nas celebrações religiosas, ou vazia de
gentes e almas; seja numa simples missa dominical ou em participados encontros
espirituais ou culturais, há a mesma recolhida atmosfera, tingindo os dias
desta Capela. Lembra os lugares dos primeiros cristãos, rezando escondidos e
talvez atordoados pela sua nova condição de desafiantes de outra ordem; lembra
a dureza da procura, a alegria do caminho encontrado, a perda, a pena, a luz, a
chegada. Lembra muitas e contraditórias coisas ao mesmo tempo, é um silêncio fértil.
Sou desde há largas décadas
frequentadora intermitente desta Capela. Quando pela primeira vez lhe bati à
porta não o fiz por razões políticas (detestaria refazer a história) mas por
ser seguidora e ouvidora do verbo lúcido e admiravelmente inspirado de quem lá
oficiava nos idos de sessenta do século passado, o Padre Alberto Neto.
Salvou-me pelo menos uma boa parte da alma.
Depois, mesmo que com
intervalos ou ausências, nunca deixei de lá ir, e mais ainda com Tolentino Mendonça.
O que talvez salve o tanto que há para salvar.
4. Um
dia do ano de 2012, no silêncio solitário das instalações da “sua” Capela, José
Tolentino Mendonça fez-me um convite temível: que eu fosse apresentar a
Guimarães os intervenientes da próxima reunião do “Pátio dos Gentios” que nesse
ano ocorreria em Portugal, depois de já ter passado em anos anteriores por
diversos lugares europeus. O Pátio fora uma ideia nascida da inspiração, visão
e vontade do Cardeal Gianfranco Ravasi para desbravar o diálogo entre crentes e
não crentes e Ravasi seria justamente o “protagonista” desse do encontro.
Figura tão fulgurante merece ser aqui contada, mesmo que fugazmente. E a sua
proximidade e interligação tão profunda com Tolentino torna-me esse contar
ainda mais obrigatório: ordenado Padre em 1966 na Diocese de Milão com 24 anos,
loquaz e vivíssimo, brilhante aluno e depois brilhante professor em Exegese
Bíblica, intelectual irradiando em mil direcções do saber, perito biblista e
hebraísta, gostando de inovar e inovando, Gianfranco Ravasi cedo se tornou uma
referência na diocese, na Universidade, na própria cidade de Milão. Nomeado
Perfeito da Biblioteca Ambrosiana — um farol de cultura em toda a Itália –, a
escolha revelava um eleito mas o eleito provaria o acerto da escolha. É que o grande
teólogo e eminente biblista deixará luminosa assinatura na Biblioteca ao
revelar uma imensa capacidade de conciliar o conhecimento da Bíblia e das
raízes cristãs com a cultura, a arte, o saber literário. Fazendo pontes e
alcançando grandes — ou talvez mesmo inauditas — linhas de transversalidade.
Maestro de tão diversas
partituras, amassando o seu pão cultural com a Bíblia, escreveu sobre a alma,
contou-nos Jesus, ofereceu-nos leituras para todos os dia das nossas vidas.
Propôs-nos Deus.
Em 2007, já nomeado Bispo por
Bento XVI, Ravasi foi escolhido para presidente do Pontifício Conselho para a
Cultura, criado vinte anos antes por João Paulo II. Uma escolha desafiante já
que, em 1993, o Papa João Paulo decidira unir o “Conselho para o Diálogo com os
Não Crentes”, com o “Conselho da Cultura”, fundindo-os num mesmo corpo
institucional. Tratava-se agora de uma tarefa dupla e duplamente exigente: o
encontro entre a mensagem do Evangelho e os intelectuais das artes, letras e
ciências como homens e mulheres ao serviço do bem e do belo; e, por outro lado,
a proposta de diálogo entre pessoas que não tendo fé, sinalizavam um
sobressalto ou revelavam uma inquietação face ao transcendente.
A partir de então foram-se
gerando proximidades até aí supostamente sepultadas. Ergueram-se pontes,
abriram-se confluências.
Uma dessas confluências
chamou-se Pátio dos Gentios.
Um “Pátio” que, a convite do
Padre Tolentino, num dia de 2012 e em hora tão boa que mereceria ser contada,
me levou ao norte para apresentar à plateia de Guimarães um convidado especial,
o Cardeal Ravasi. (E João Lobo Antunes e Marcelo Rebelo de Sousa, também
oradores de um memorável encontro).
5. Porquê
tudo isto agora? Porque terei hoje, a propósito de Tolentino, procurado
Gianfranco Ravasi, movida por uma espécie de imperiosa necessidade de o trazer
aqui? Afinal de contas houve outras colaborações minhas com José Tolentino
Mendonça (em que a leitura de uma Paixão com Luís Miguel Cintra, na Igreja de
S. Mamede, na Semana Santa de 2016, não terá sido a menor delas).
Porquê então?
Talvez porque simplesmente eu
os tenha achado, ao Cardeal Gianfranco Ravasi e ao futuro Arcebispo
José Tolentino Mendonça, muito semelhantes, um ao outro. Na radicalidade
da entrega, na marca de uma mesma espiritualidade, no uso que fazem da fé, na
erudição e no brilho dos respectivos percursos, na transversalidade dos
universos onde se movem. Destino parecido o destes dois homens que sempre
operaram em nome de Deus na busca do absoluto.
Pescados à linha por Deus que
um dia olhou para eles como costuma olhar para os escolhidos. Que, como se
sabe, são bem menos que os chamados.
6. Este sábado, 28 Julho,
dia em que na pedra antiga do Mosteiro dos Jerónimos o Cardeal D. Manuel
Clemente, Patriarca de Lisboa, o Cardeal D. António Marto e o Bispo Emérito do
Funchal, D. Teodoro de Faria procederão á ordenação episcopal do Arcebispo
Titular de Suava, Tolentino Mendonça, deixo um breve poema seu. Foi lido há
dias na Capela do Rato e é um ténue sopro, como o bater de asa de uma borboleta
num solitário entardecer de verão:
“Na corda bamba, entre silêncio
e silêncio, a vizinhança de Deus” (in “A Papoila e o Monge”, Assírio e Alvim).
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