Como uma Carochinha diligente
em torno dos seus papéis, que reúne em aflição, não para os lançar no papelão,
mas para os estudar, em busca de soluções, vendo a casa europeia a decompor-se,
Teresa de Sousa informa-nos da sua
preocupação, em alerta permanente a respeito de um fim europeu que se
precipita. Nós, portugueses, por aqui vamos indo, despreocupados, indiferentes,
e alguns até ansiosos por que uma nova ordem instale outros poderes, América e
Rússia de mãos dadas, segundo informa TS, que busca soluções que não façam
mergulhar a UE no caldeirão dos feijões a ferver. E, nesse sentido, Teresa de Sousa, sempre perspicaz, alvitra
que, contra um racismo extremista que favorece os tais nacionalismos e o fim do
projecto europeu, a França, que venceu o Mundial do Futebol, com uma selecção
contendo jogadores de “outros sóis diferentes”, sem lhe importar a cor da pele
dos seus jogadores, heróis unanimemente glorificados, contra esse racismo
destruidor, digo, se exalte a solidariedade, mesmo que na ironia dos interesses
próprios, a fim de conter o fim que se avizinha.
OPINIÃO
A vingança serve-se fria?
Berlim é ainda o principal
esteio que sustenta a Europa que ainda queremos. Sem a Alemanha não haverá
nenhuma política europeia sobre as migrações ou o comércio ou a moeda que tenha
um mínimo de eficácia e que possa restaurar algum sentido comum.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO,8 de Julho de 2018
1. A
União Europeia entrou numa espiral de acontecimentos que, infelizmente, começam
a pôr demasiadas coisas em causa. Tem pela frente uma cimeira da NATO de dar calafrios aos mais optimistas. O maior
temor, expresso por um membro do gabinete da chanceler alemã, é que nem
sequer seja possível chegar a uma declaração conjunta. Vai assistir,
impotente, a uma cimeira em Helsínquia
entre os Presidentes americano e russo que terá inevitavelmente um forte
impacte político nas suas decisões para o futuro. Trump e Putin têm, pelo
menos, uma coisa em comum, que nem sequer escondem: o desejo de dividir a Europa. Em Berlim, a chanceler tornou-se num foco
de instabilidade, diametralmente oposto ao que foi até agora: uma garantia de estabilidade. Para a
União Europeia, o que está em jogo é simples: quando mais precisava de unidade, não param de multiplicar-se os sinais
de desunião. Sinal dos tempos, a História entrou em aceleração, não pelos
bons motivos que emergiram do fim da Ordem de Ialta e da implosão da União
Soviética, mas porque está de regresso a um continente que chegou a pensar que
simbolizava o seu fim. Em 1990, Jacques Delors resumiu os desafios que a
Europa enfrentava depois da queda do Muro: “Assistimos a uma súbita
aceleração da História” à qual era e foi preciso responder. Agora, como diz o
historiador francês Jacques Rupnik, “a geopolítica voltou” com as regras que
a integração europeia tinha apagado: o regresso das relações de força e das
zonas de influência, que os mais fortes determinam. Um mundo hobbesiano é tudo
aquilo que a Europa não quer na ordem mundial que se está a reconstruir. Mas é
para ele que tem de se preparar. A união seria fundamental, até porque o maior
dos seus Estados é pequeno nesta nova escala global. A desunião é cada vez mais
a regra. Apenas algumas reflexões dispersas sobre os acontecimentos mais
recentes.
2. Em Berlim, a chanceler não consegue vencer a crise que se instalou
dentro da coligação a que preside. Os sinais de que o seu fim político
pode estar próximo multiplicam-se. Mesmo assim, há palavras que
continuam a ser “proibidas” na Alemanha. “Campo” é uma delas. Merkel cedeu ao
líder da CSU, o seu mais declarado inimigo dentro do governo, aceitando a
criação de “centros de trânsito” na fronteira da Alemanha com a Áustria, onde
ficariam instalados os refugiados que pediram asilo noutros países, até serem
reencaminhados para eles. O SPD, que se manteve silencioso durante a crise que
a chanceler viveu e que não rejeita a sua política de imigração, veio dizer
agora que não haverá “centros” em lado nenhum. O acordo conseguido na
sexta-feira entre todas as partes da grande coligação (CDU/CSU e SPD) substitui
a expressão por “procedimentos de trânsito” feitos na fronteira com a Áustria,
mesmo que, na maioria dos casos, os refugiados venham da Itália ou da Grécia.
Não se vê o novo Governo italiano a recebê-los de volta, embora Merkel esteja a
tentar dois acordos bilaterais com Roma e Atenas. Segundo o resumo do Financial Times,
os refugiados têm de ser devolvidos nas 48 horas seguintes. Os austríacos temem
que, à falta de acordo com a Itália e a Grécia, fiquem por lá, contrariando a
prioridade das prioridades do Governo de Viena: ver-se livre deles. Diz o
mesmo jornal que “o acordo de paz entre a CDU e a CSU admite que os refugiados
que os outros países se recusarem a aceitar de regresso devem ser deportados
para a Áustria”. “Seehofer teve de regressar à terra”, escreve o diário
Handelsblatt. Depois do seu encontro com o chanceler austríaco, “foi obrigado a
admitir que não conseguiu nenhum resultado palpável no que respeita aos seus
controversos ‘campos de trânsito’ ou para o retorno dos refugiados para os
países onde pediram asilo”.
3.
Na última cimeira europeia, os
líderes europeus inventaram as chamadas “plataformas de desembarque” para
designar os locais onde os candidatos ao asilo ficariam retidos até ser
analisado o caso de cada um, em território fora das fronteiras europeias. O
problema não é a designação habilidosa para não desenterrar ainda mais
fantasmas. O problema é não haver até agora candidatos à sua localização. Provavelmente
os europeus acreditavam que bastaria acenar com alguns milhares de milhões
(como aconteceu com a Turquia) para “encorajar” a sua boa vontade. Restam também
muitos esclarecimentos sobre estas “plataformas”. O ACNUR já se disponibilizou
para fazer a triagem, que é o que faz em muitos outros casos. Mas é preciso
saber quem garante condições humanas decentes, a sua segurança ou a garantia de
que ninguém tenta sair de lá para jogar de novo a sua sorte. Arame farpado é
outras das imagens proibidas. No Porto, na sua brevíssima visita, Obama lembrou
que não há muros que impeçam a vontade dos que aspiram a uma vida decente.
4. As palavras mudam, o problema é o mesmo. Se a Europa continuar a
abdicar de uma política de asilo que seja comum, as fronteiras voltarão ao
espaço europeu e será muito difícil voltar a desmantelá-las. O risco é o fim de
Schengen. É aí que estamos. Sem qualquer sinal de que as coisas possam
melhorar. Pelo contrário. A Áustria olha para a sua presidência do Conselho da
União Europeia (não confundir com Conselho Europeu, com o seu presidente
próprio) como uma grande oportunidade de influenciar a Europa. Sebastian Kurz foi eleito
precisamente porque endureceu as políticas de imigração do seu país e não teve
escrúpulo em aliar-se com um partido de extrema-direita, cuja bandeira sempre
foi essa. Já não estamos a falar das
dificuldades políticas e logísticas que representa a chegada de milhões de pessoas,
impelidas pelas guerras e pela miséria, mas de um outro nível de rejeição: a
xenofobia e a defesa de uma Europa branca e cristã, culturalmente homogénea.
Kurz pode contar com alguns países de Leste, e também sabemos que o mal já
infectou quase todas as democracias europeias. Viktor Orbán acha-se
cheio de força e tem razões para isso. Já nem esconde a chantagem pura e dura
que está a exercer no PPE (Partido Popular Europeu, que integra a maioria dos
partidos de centro-direita da Europa). Há três sensibilidades distintas:
os que não toleram a sua presença no PPE, como a Suécia ou a Holanda, os que
querem mantê-lo dentro, como a Áustria, ficando no meio a CDU/CSU, que tenta
fazer a ponte numa altura em que as pontes são cada vez menos bem-vindas. O
líder húngaro ameaça com a constituição de uma “grande coligação” europeia dos
partidos que pensam como ele em relação aos imigrantes e aos refugiados, que
poderia alterar radicalmente o actual quadro político no Parlamento Europeu.
Seria ou será o prenúncio de um novo mapa político europeu que não deixa
ninguém tranquilo.
5. Entretanto, já pouca gente se dá ao
trabalho de esconder um certo prazer de ver a chanceler em risco. A vingança
serve-se fria e chegou finalmente a hora de confrontar a chanceler com alguns dos
seus erros europeus, desde o “momento hegemónico” ou “unilateral” da Alemanha,
durante boa parte da crise do euro, até à sua decisão de abrir as portas aos
refugiados da guerra na Síria sem se dar ao trabalho de consultar os parceiros.
A crítica é verdadeira. O poder traz sempre consigo mais responsabilidade que
nem sempre a chanceler quis assumir. Mas talvez seja má altura para vinganças
servidas frias. Berlim é ainda o principal esteio que sustenta a Europa que
ainda queremos. Sem a Alemanha não haverá nenhuma política europeia sobre as
migrações ou o comércio ou a moeda que tenha um mínimo de eficácia e que possa
restaurar algum sentido comum. E, como acontece muitas vezes depois de uma
liderança forte e prolongada, a sua substituição não será pacífica. Como
escreveu Le Monde, "Na Europa, a direita dura impõe a sua
linha".
ANÁLISE
Liberté, Egalité, Mbappé
Merkel e Macron, sobre quem
recai a responsabilidade de salvar a Europa, podem bem inspirar-se nos Pogbas e
Griezmanns da selecção francesa.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO,22 de Julho de 2018
1. A Europa, cumprindo escrupulosamente o seu modelo social único no
mundo, vai de férias. São sagradas. Incluem os responsáveis
políticos. As crises podem perfeitamente esperar até Setembro. Provavelmente,
este querido mês de Agosto europeu será o que sempre foi. Ou não. A velocidade
com que tudo muda à nossa volta de uma semana para a outra, de um dia para o
outro, de uma hora para a outra, vai obrigar os responsáveis a manterem-se
atentos à agenda internacional.
Donald Trump não vai acabar
com a “guerra comercial” para ir de férias. O escândalo da sua relação com o
seu homólogo russo ainda está muito longe do último episódio. Tocou num nervo
demasiado sensível da identidade americana? Ver-se-á. De resto, o Presidente
americano pode continuar a sua “guerra” contra o mundo, directamente do
seu resort de Mar-a-Lago, na Florida. Angela Merkel monitoriza ao minuto as
ameaças americanas ao livre comércio com a Europa. Se houver “guerra”, será um
dos países mais afectados. É o preço de um excedente comercial que é o maior do
mundo. As grandes construtoras automóveis temem o pior. A “guerra comercial” de
Trump tem um efeito diferente de país para país, mas já pesa sobre as decisões
de investimento e acabará por repercutir-se no crescimento da economia
europeia.
A Economist, no
seu número dedicado à Organização Mundial do Comércio (OMC), tenta contrariar o
pânico. Enquanto Trump ameaça todos os dias
aplicar novas tarifas aos produtos chineses e aos carros de luxo alemães, os
representantes das negociações comerciais da Europa, EUA e Japão negoceiam
entre si discretamente uma reforma da OMC cujo objectivo é precisamente
combater as distorções chinesas das suas regras. Além disso, neste mundo
globalizado, muitas vezes o que parece não é. Os EUA são um mercado imenso para
as marcas alemãs, praticamente sem concorrência. Quase não se vêem outras
marcas europeias menos “luxuosas”, às vezes um Volvo, mas raramente. Mesmo assim, convém recordar que a BMW tem
fábricas nos EUA, ao contrário, por exemplo, da Audi, que as tem no México.
E que, se quisermos ir mais longe, entre as japonesas, com uma presença
enorme no mercado americano, a Nissan chama-se hoje Renault-Nissan. Há outro
exemplo de escola. O iPhone representa cerca de 70% de incorporação americana
(a tecnologia), mais uns 10 ou 20% de valor acrescentado na China, que faz a
montagem e que, por sua vez, contrata parte do fabrico das peças ao Vietname.
Quando os EUA importam iPhones da China estão a importar o quê? Um produto chinês?
Não. Ou seja, o funcionamento do
comércio internacional pode dar uma imagem muito distorcida da realidade em
matéria de défices comerciais.
Regressando à Economist,
quando a imprensa europeia notícia em letras garrafais que a política
proteccionista de Trump está a aproximar a Europa da China, falta a parte das
queixas que os europeus têm em relação à China, não muito diferentes das
americanas. Rezam as crónicas que, quando Merkel esteve recentemente em Lisboa,
levantou a questão da venda da totalidade da EDP aos chineses, que está na
forja. António Costa respondeu-lhe com outra pergunta: “Mas há uma política
europeia em relação a isso?” Não há. A China tira proveito da crise nos países
do Sul e da abertura dos países de Leste a qualquer investimento, de
preferência que não seja alemão. Coloca os seus peões. Um dia há-de querer
cobrar politicamente o investimento. Trump dá uma enorme ajuda, é verdade, mas
isso não dispensa a Europa de definir uma estratégia para lidar com a grande
potência em ascensão.
2. Também é difícil ir de férias quando o ambiente geopolítico em que a
Europa se move está em mudança acelerada. Alguém tem de começar a pensar no
futuro da Europa, num mundo que ameaça cair no caos, onde a “politica de
potência” está a substituir a ordem multilateral com a qual se habituou a
viver, funcionando como uma grande potência civil, contando com a aliança
transatlântica para protegê-la, dissuadindo qualquer aventura bélica nas suas
fronteiras. Já não conta. O novo dinamismo, criado há pouco mais de um ano com
a eleição de Emmanuel Macron, evaporou-se diante das dificuldades da chanceler
alemã, enfraquecida politicamente pela crise dos refugiados e pela inesperada
instabilidade do sistema político alemão. A maioria dos governos europeus da
Velha Europa está, mais ou menos, em roda livre, à procura de uma fórmula que
lhes permita conter os populismos e os nacionalismos e contrariar a
fragmentação. Em Washington, Trump continua a disparar para todos os lados,
mesmo que acabe sempre no mesmo sítio: dá-se bem com Putin, mal com os
europeus, vai continuar a privilegiar a relação com ele. Putin agradece
reconhecidamente. Não vai largar facilmente esta “magnífica oportunidade” que
lhe aumenta a margem de manobra na Europa, o seu verdadeiro objectivo estratégico.
Além disso, nem sempre as coisas correm bem quando se trata de Putin. Escreve
a Economist:
“Bush viu a alma de Putin e Putin invadiu a Geórgia; Obama carregou no 'reset' e
Putin invadiu a Ucrânia.”
3. Entretanto, o "Brexit"
tornou-se num problema ainda mais grave do que se poderia sequer imaginar. Tal
como com a deriva americana, o pior dos cenários está a desenrolar-se diante
dos nossos olhos, sem que alguém consiga parar para pensar numa solução que não
seja o descalabro de uma saída sem regras. É confrangedor olhar para um país
como o Reino Unido, habituado a contar no mundo “acima da sua dimensão”,
mergulhado numa crise existencial, com os conservadores em modo de autofagia,
sem capacidade para definir o que é o seu interesse no médio e longo prazo,
destituído de velhos aliados, a braços com uma negociação que é uma manta de
retalhos, para a qual não se preparou nem avaliou devidamente as consequências.
O que acontecerá no dia 30 de Março, caso não haja acordo, quando as fronteiras
se erguerem para controlar os fluxos de mercadorias, tão intensos e tão
naturais que é quase impossível pensar de outra maneira? Theresa May não sabe
exactamente o que fazer. Mas também Bruxelas parece que ainda não percebeu que
a estratégia negocial que definiu no início já serve de pouco. O mandato de
Michel Barnier percebia-se: impedir que o "Brexit" se transformasse
num mau exemplo para outros países europeus, mais interessados nos benefícios
do que nas responsabilidades que advêm da adesão. Já se viu que esse perigo não
existe. Pelo contrário, o problema agora vem dos países que querem ficar na
União e, ao mesmo tempo, tentar sabotar as suas regras por dentro. A partir de
agora, o objectivo é fazer o melhor possível para controlar os danos
inevitáveis. Quando, mais do que nunca, a Europa precisa de “pesar” num mundo
regressado à “política de potência”, tirar-lhe a segunda economia e a maior
capacidade militar não parece muito avisado.
4. Quando “Les Bleus”
chegaram a Paris para descer os Champs-Elysées, 20 anos depois da sua anterior
vitória no Mundial, foram recebidos como heróis, aquecendo a alma de um país
que hesita entre a eterna “malaise”
e os velhos tiques de centro do universo. Ninguém se preocupou com a cor da
pele desses heróis franceses, envoltos na tricolor, capazes de cantar com alma
a Marselhesa.
Em 1998, a equipa que venceu o mundial era a de Zidane ou de Pires. Muitos
franceses olharam para ela como a mais saborosa vitória contra o nacionalismo
truculento da Frente Nacional, nessa altura liderada pelo não menos truculento
Jean-Marie Le Pen. Mas ninguém se lembrou de dizer que tinha vencido o Magrebe.
Deixar que surja sequer a ideia de que ganhou a “equipa de África” é tão
afrontoso para os próprios jogadores como para uma ideia de República que
prevalece em França, para o bem e para o mal, na qual não há raças, nem
origens, mas apenas cidadãos. Como escreveu um jornal francês, a festa podia
resumir-se assim: “Liberté,
Égalité, Mbappé.” O título desta crónica está finalmente justificado. Merkel e Macron,
sobre quem recai a responsabilidade de salvar a Europa, podem bem inspirar-se
nos Pogbas e Griezmanns da selecção francesa.
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