O aroma da solidariedade! Está-nos no sangue! Conforme o partido, é
certo, a que pertence o objecto da nossa pungência.
É do que tratam os dois artigos
de João
Miguel Tavares: o primeiro sobre a intervenção de deputados nossos de
filiação esquerdina, dirigindo abusivamente petições ao governo de um país
“irmão” para ser liberto um ex-presidente condenado, ornado, é certo, de
anterior, embora efémera, fragrância social - como já fora o caso, se bem me
lembro, de uma Evita Perón da nossa admiração e perplexidade juvenis, no
contraste entre a sua dedicação social e a sua ornamentação pessoal - no
sentido de este ser libertado da prisão, em função da tal fragrância, o que um
juiz brasileiro camarada já tinha tentado fazer, com grande escândalo, no dito
país. O segundo artigo é sobre a presunção da inocência, cá entre nós, quando se
trate de crimes de poderosos - que os dos não poderosos o são de facto, sem
presunção alguma. João Miguel Tavares
esclarece, na sua maneira irreverentemente sensata, que por vezes lhe merece
ataques baixos, dos camaradas da solidariedade e da intrusão atrevidas, próprias
apenas de menoridade mental, tal como a que moveu os camaradas da petição, para
mais, deputados, sem consulta prévia às outras partes da assembleia ou do país,
deputados de brincadeira, que deviam ser chamados à ordem, mesmo num país sem
ela. Colocamos apenas um ou outro comentário de apoio e esclarecimento, aos textos de JMT.
I - OPINIÃO
Vinte e dois deputados “lelés da cuca”
Não haverá por aí um professor
de Ciência Política capaz de ir dar umas aulinhas sobre separação de poderes ao
Parlamento?
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 12 de Julho
de 2018
Há tanta coisa errada nisto que
é difícil saber por onde começar. Vinte
e dois deputados da nação portuguesa – oito do PS, seis do Bloco de
Esquerda, seis do PCP, e dois do PEV – decidiram meter o nariz nos assuntos
da justiça brasileira e apelar à libertação de Lula da Silva. Não o fizeram em
nome individual, só porque certo dia caíram da cama e descobriram-se
anarquistas – fizeram-no invocando o mandato para o qual foram eleitos, já que
o vergonhoso texto que subscreveram tem como título “Apelo enviado por
Deputados portugueses ao Supremo Tribunal Federal do Brasil”. De-pu-ta-dos por-tu-gue-ses. Vinte e dois
deputados de um país democrático decidiram assassinar o pobre Montesquieu,
lixar-se para a separação de poderes, e dar conselhos judiciais a um tribunal
de outro país democrático. Bravo! E tudo isto sustentado por um texto cheio de
delírios políticos e mentiras descaradas.
Cereja em cima do bolo: o
abaixo-assinado, dado a conhecer na segunda-feira, surge na sequência da
tentativa de um juiz de Porto Alegre libertar Lula da Silva, aproveitando o
facto de ser fim-de-semana e ser ele o único juiz de plantão para analisar
um habeas corpus propositadamente entregue após o fecho
do tribunal. Esse juiz que tentou a libertação de Lula, Rogério Favreto de sua graça, foi durante quase 20 anos membro do
PT, exerceu diversos cargos nos governos de Lula e foi nomeado por Dilma
Rousseff. Até selfiezinha com o ex-presidente
ele tem. Após a bizarra decisão, as queixas contra Favreto choveram no Conselho
Nacional de Justiça por violação flagrante do Estado de direito democrático. Exactamente aquilo que poderíamos dizer do
patético apelo dos 22 deputados portugueses, entre os quais se encontram os
socialistas Fernando Rocha Andrade, Isabel Moreira, João Soares ou Pedro
Bacelar de Vasconcelos. Isto não é gente que acha que a Coreia do Norte é uma
democracia. Pelo contrário: alguns lutaram ainda pela instauração do regime
democrático em Portugal. Mas quando o fanatismo clubístico-partidário desce
sobre eles, as mais elementares regras do Estado de direito são rapidamente
esquecidas.
As pessoas podem ter a
opinião que quiserem sobre Lula da Silva e sobre a justiça ou injustiça da sua
prisão. Aquilo que elas não podem dizer é que as decisões de Sérgio Moro não
foram escrutinadas pelas várias instâncias judiciais. Os 22 deputados portugueses fingem que o
Supremo Tribunal Federal não se pronunciou sobre o caso, classificam Lula como
um “preso político” (onde é que eu já ouvi isto?), e decidem dar lições
paternalistas aos brasileiros sobre o bom exercício da justiça, até porque,
como todos sabemos, a justiça portuguesa é absolutamente exemplar e tem muitas
lições a dar ao mundo.
Sejamos sérios. Isto não é
uma iniciativa de Arnaldo Matos ou de Arménio Carlos. Aqueles deputados têm de
ter noção do que estão a dizer. Basta olhar para a primeira frase do apelo: “O
Presidente Lula da Silva, mundialmente reconhecido pelo progresso na redução
das desigualdades sociais ao retirar dezenas de milhões de brasileiros da
miséria, encontra-se preso na sede da Polícia Federal em Curitiba.” O que é que uma coisa tem a ver com a
outra? Na cabeça de um democrata, nada. Na cabeça destes deputados, pelos
vistos, tem tudo. Pergunto: não haverá por aí um professor de Ciência
Política capaz de ir dar umas aulinhas sobre separação de poderes ao
Parlamento? Há pelo menos 22 deputados que estão desesperadamente a precisar.
Um comentário:
Algures
nos pólderes da ordem de Orange! 15.07.2018: E Angola,
é um estado de direito democrático? Estes foram os deputados do PCP que
se recusaram a intervir no caso de Luaty Beirão, que ao contrário de Lula da
Silva, é um cidadão português, alegando a não interferência no sistema judicial
de um estado soberano estrangeiro. A coluna
vertebral desses deputados é como a da enguia. Esta petição viola claramente
dois princípios: 1) a interferência nos assuntos internos de outro estado,
violando assim o n.º 1 do art. 7.º da Constituição, e b) o desrespeito total
pelo princípio da separação de poderes, princípio que o PCP fortemente evocou
quando o governo de Passos Coelho criticou as decisões do tribunal
constitucional no tempo da troika.
II- OPINIÃO
Ainda não é desta que o homem vai preso?
É isto a boa justiça portuguesa. E se achar que não,
caro leitor, lembre-se: você é um horrível justiceiro, sem qualquer respeito
pela presunção de inocência.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 17 de Julho de 2018
Há demasiada gente em
Portugal a querer convencer-nos que quem exige melhor justiça é apenas um
justiceiro. Se nos atrevemos a perguntar “então, mas ele ainda não foi preso?”,
logo surge uma turba de senhores bem compostos a acusarem-nos de sermos adeptos
do pelourinho e desrespeitadores das regras do Estado de Direito.
Perguntar-se-á: mas
que Estado de Direito é este que prende pilha-galinhas enquanto os criminosos
de colarinho branco se passeiam pelos corredores da Justiça livres como
passarinhos, anos e anos após terem sido condenados em primeira e em segunda
instância? Bom, é o Estado de Direito que temos, onde uma conta bancária bojuda
garante muitos anos em liberdade, graças a advogados especialistas em recursos
e dilação, que conseguem arrastar processos anos a fio, evitando que os seus
clientes vão parar à prisão dentro de prazos razoáveis. Consta que a isto se
chama justiça portuguesa.
Os condenados do
processo Face Oculta têm
sido magníficos exemplos do que estou a falar. Manuel Godinho, o chamado
“sucateiro de Ovar”, foi condenado a 17 anos e meio de prisão em Setembro de
2014, pelo Tribunal de Aveiro, por ter cometido 49 crimes, entre os quais
associação criminosa, corrupção, tráfico de influência e furto qualificado.
Godinho recorreu para o Tribunal da
Relação do Porto, que o absolveu do crime de associação criminosa e reduziu a
pena para 15 anos e dez meses de prisão. Godinho recorreu para o Supremo
Tribunal de Justiça, que reduziu a pena para 13 anos de prisão, num acórdão de
28 de Junho de 2018. Entretanto, Manuel Godinho poderá continuar a adiar o cumprimento
da pena, recorrendo também para o Constitucional. Passaram quatro anos.
Mas há mais, e pior. Manuel Godinho foi também condenado, em Março de
2016, no âmbito de outro processo, por suborno a um vigilante. O
Tribunal de Aveiro condenou-o a dois anos de prisão efectiva pelo crime de
corrupção activa. Godinho recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que
decidiu suspender a execução da pena de prisão efectiva. Foram adiantadas duas
justificações para a suspensão: 1)
tratar-se de um caso de “pequena corrupção” que, “não raro, é encarada pela
colectividade com alguma complacência”; 2) a inexistência de antecedentes
criminais por parte de Manuel Godinho. Sim, é mesmo verdade. Godinho não tem
antecedentes criminais: ele continua a beneficiar da presunção de inocência, já
que nenhuma das condenações transitou em julgado. Essa foi a segunda vez que a
Relação suspendeu uma pena de prisão efectiva aplicada a Godinho. A primeira
ocorreu num processo em que foi condenado a dois anos e meio de prisão por ter
subornado um ex-funcionário da Refer. Como Godinho continua a recorrer, ele
beneficia da ausência de antecedentes criminais em três processos paralelos
onde já foi condenado como criminoso.
Querem mais? Armando Vara. Também foi condenado, em
2014, a cinco anos de prisão efectiva por três crimes de tráfico de influência.
Como o Tribunal da Relação manteve integralmente a pena de primeira
instância, ele não pôde recorrer para o Supremo. Recorreu para o
Constitucional. O Constitucional rejeitou o recurso. O seu advogado decidiu,
então, apresentar uma reclamação para a conferência de juízes do Tribunal
Constitucional. Parece que a reclamação também suspende o cumprimento da pena.
É isto a boa justiça portuguesa. E se
achar que não, caro leitor, lembre-se: você é um horrível justiceiro, sem
qualquer respeito pela presunção de inocência.
Dois comentários:
Fernando
Martins do Vale, 17.07.2018: Ser inocente é um estatuto de mediocridade! O que é digno é ser arguido
por corrupção, o que dá em simultâneo um estatuto de esperteza que permitiu o
sucesso económico, e como em Portugal presumir é confundido com afirmar
inocência, o arguido que ainda não foi condenado (mas também não foi
inocentado), ganha logo o estatuto de mártir da Justiça, logo é um santo, e o
crime está na nossa suspeição caluniosa.
Luis Fonte,
17.07.2018 : Aparentemente a "malta" adora
corruptos, desde que sejam da sua cor política ou do seu clube... Os corruptos
dos outros é que são maus, muito maus e merecem tau tau!!!! Somos um país de
tarefeiros do estado e pedintes do privado, com uma série de agiotas a servir de
intermediários (jornalistas, comentadores, deputados, magistrados em geral e
juizes em particular...etc) entre estes e os poderosos de Cascais. Bem haja o
Sr. João Miguel Tavares por criticar, tendencialmente por igual, todos os
corruptos que me escravizam via impostos.
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