quinta-feira, 19 de julho de 2018

Fragrâncias, pungências. Menoridade.



O aroma da solidariedade! Está-nos no sangue! Conforme o partido, é certo, a que pertence o objecto da nossa pungência.
 É do que tratam os dois artigos de João Miguel Tavares: o primeiro sobre a intervenção de deputados nossos de filiação esquerdina, dirigindo abusivamente petições ao governo de um país “irmão” para ser liberto um ex-presidente condenado, ornado, é certo, de anterior, embora efémera, fragrância social - como já fora o caso, se bem me lembro, de uma Evita Perón da nossa admiração e perplexidade juvenis, no contraste entre a sua dedicação social e a sua ornamentação pessoal - no sentido de este ser libertado da prisão, em função da tal fragrância, o que um juiz brasileiro camarada já tinha tentado fazer, com grande escândalo, no dito país. O segundo artigo é sobre a presunção da inocência, cá entre nós, quando se trate de crimes de poderosos - que os dos não poderosos o são de facto, sem presunção alguma. João Miguel Tavares esclarece, na sua maneira irreverentemente sensata, que por vezes lhe merece ataques baixos, dos camaradas da solidariedade e da intrusão atrevidas, próprias apenas de menoridade mental, tal como a que moveu os camaradas da petição, para mais, deputados, sem consulta prévia às outras partes da assembleia ou do país, deputados de brincadeira, que deviam ser chamados à ordem, mesmo num país sem ela. Colocamos apenas um ou outro comentário de apoio e esclarecimento, aos textos de JMT.
I - OPINIÃO
Vinte e dois deputados “lelés da cuca”
Não haverá por aí um professor de Ciência Política capaz de ir dar umas aulinhas sobre separação de poderes ao Parlamento?
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 12 de Julho de 2018
Há tanta coisa errada nisto que é difícil saber por onde começar. Vinte e dois deputados da nação portuguesa – oito do PS, seis do Bloco de Esquerda, seis do PCP, e dois do PEV – decidiram meter o nariz nos assuntos da justiça brasileira e apelar à libertação de Lula da Silva. Não o fizeram em nome individual, só porque certo dia caíram da cama e descobriram-se anarquistas – fizeram-no invocando o mandato para o qual foram eleitos, já que o vergonhoso texto que subscreveram tem como título “Apelo enviado por Deputados portugueses ao Supremo Tribunal Federal do Brasil”. De-pu-ta-dos por-tu-gue-ses. Vinte e dois deputados de um país democrático decidiram assassinar o pobre Montesquieu, lixar-se para a separação de poderes, e dar conselhos judiciais a um tribunal de outro país democrático. Bravo! E tudo isto sustentado por um texto cheio de delírios políticos e mentiras descaradas.
Cereja em cima do bolo: o abaixo-assinado, dado a conhecer na segunda-feira, surge na sequência da tentativa de um juiz de Porto Alegre libertar Lula da Silva, aproveitando o facto de ser fim-de-semana e ser ele o único juiz de plantão para analisar um habeas corpus propositadamente entregue após o fecho do tribunal. Esse juiz que tentou a libertação de Lula, Rogério Favreto de sua graça, foi durante quase 20 anos membro do PT, exerceu diversos cargos nos governos de Lula e foi nomeado por Dilma Rousseff. Até selfiezinha com o ex-presidente ele tem. Após a bizarra decisão, as queixas contra Favreto choveram no Conselho Nacional de Justiça por violação flagrante do Estado de direito democrático. Exactamente aquilo que poderíamos dizer do patético apelo dos 22 deputados portugueses, entre os quais se encontram os socialistas Fernando Rocha Andrade, Isabel Moreira, João Soares ou Pedro Bacelar de Vasconcelos. Isto não é gente que acha que a Coreia do Norte é uma democracia. Pelo contrário: alguns lutaram ainda pela instauração do regime democrático em Portugal. Mas quando o fanatismo clubístico-partidário desce sobre eles, as mais elementares regras do Estado de direito são rapidamente esquecidas.
As pessoas podem ter a opinião que quiserem sobre Lula da Silva e sobre a justiça ou injustiça da sua prisão. Aquilo que elas não podem dizer é que as decisões de Sérgio Moro não foram escrutinadas pelas várias instâncias judiciais. Os 22 deputados portugueses fingem que o Supremo Tribunal Federal não se pronunciou sobre o caso, classificam Lula como um “preso político” (onde é que eu já ouvi isto?), e decidem dar lições paternalistas aos brasileiros sobre o bom exercício da justiça, até porque, como todos sabemos, a justiça portuguesa é absolutamente exemplar e tem muitas lições a dar ao mundo.
Sejamos sérios. Isto não é uma iniciativa de Arnaldo Matos ou de Arménio Carlos. Aqueles deputados têm de ter noção do que estão a dizer. Basta olhar para a primeira frase do apelo:O Presidente Lula da Silva, mundialmente reconhecido pelo progresso na redução das desigualdades sociais ao retirar dezenas de milhões de brasileiros da miséria, encontra-se preso na sede da Polícia Federal em Curitiba.” O que é que uma coisa tem a ver com a outra? Na cabeça de um democrata, nada. Na cabeça destes deputados, pelos vistos, tem tudo. Pergunto: não haverá por aí um professor de Ciência Política capaz de ir dar umas aulinhas sobre separação de poderes ao Parlamento? Há pelo menos 22 deputados que estão desesperadamente a precisar.

Um comentário:
  Algures nos pólderes da ordem de Orange! 15.07.2018: E Angola, é um estado de direito democrático? Estes foram os deputados do PCP que se recusaram a intervir no caso de Luaty Beirão, que ao contrário de Lula da Silva, é um cidadão português, alegando a não interferência no sistema judicial de um estado soberano estrangeiro. A coluna vertebral desses deputados é como a da enguia. Esta petição viola claramente dois princípios: 1) a interferência nos assuntos internos de outro estado, violando assim o n.º 1 do art. 7.º da Constituição, e b) o desrespeito total pelo princípio da separação de poderes, princípio que o PCP fortemente evocou quando o governo de Passos Coelho criticou as decisões do tribunal constitucional no tempo da troika.

II- OPINIÃO
Ainda não é desta que o homem vai preso?
É isto a boa justiça portuguesa. E se achar que não, caro leitor, lembre-se: você é um horrível justiceiro, sem qualquer respeito pela presunção de inocência.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 17 de Julho de 2018
Há demasiada gente em Portugal a querer convencer-nos que quem exige melhor justiça é apenas um justiceiro. Se nos atrevemos a perguntar “então, mas ele ainda não foi preso?”, logo surge uma turba de senhores bem compostos a acusarem-nos de sermos adeptos do pelourinho e desrespeitadores das regras do Estado de Direito. Perguntar-se-á: mas que Estado de Direito é este que prende pilha-galinhas enquanto os criminosos de colarinho branco se passeiam pelos corredores da Justiça livres como passarinhos, anos e anos após terem sido condenados em primeira e em segunda instância? Bom, é o Estado de Direito que temos, onde uma conta bancária bojuda garante muitos anos em liberdade, graças a advogados especialistas em recursos e dilação, que conseguem arrastar processos anos a fio, evitando que os seus clientes vão parar à prisão dentro de prazos razoáveis. Consta que a isto se chama justiça portuguesa.
Os condenados do processo Face Oculta têm sido magníficos exemplos do que estou a falar. Manuel Godinho, o chamado “sucateiro de Ovar”, foi condenado a 17 anos e meio de prisão em Setembro de 2014, pelo Tribunal de Aveiro, por ter cometido 49 crimes, entre os quais associação criminosa, corrupção, tráfico de influência e furto qualificado. Godinho recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que o absolveu do crime de associação criminosa e reduziu a pena para 15 anos e dez meses de prisão. Godinho recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, que reduziu a pena para 13 anos de prisão, num acórdão de 28 de Junho de 2018. Entretanto, Manuel Godinho poderá continuar a adiar o cumprimento da pena, recorrendo também para o Constitucional. Passaram quatro anos.
Mas há mais, e pior. Manuel Godinho foi também condenado, em Março de 2016, no âmbito de outro processo, por suborno a um vigilante. O Tribunal de Aveiro condenou-o a dois anos de prisão efectiva pelo crime de corrupção activa. Godinho recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que decidiu suspender a execução da pena de prisão efectiva. Foram adiantadas duas justificações para a suspensão: 1) tratar-se de um caso de “pequena corrupção” que, “não raro, é encarada pela colectividade com alguma complacência”; 2) a inexistência de antecedentes criminais por parte de Manuel Godinho. Sim, é mesmo verdade. Godinho não tem antecedentes criminais: ele continua a beneficiar da presunção de inocência, já que nenhuma das condenações transitou em julgado. Essa foi a segunda vez que a Relação suspendeu uma pena de prisão efectiva aplicada a Godinho. A primeira ocorreu num processo em que foi condenado a dois anos e meio de prisão por ter subornado um ex-funcionário da Refer. Como Godinho continua a recorrer, ele beneficia da ausência de antecedentes criminais em três processos paralelos onde já foi condenado como criminoso.
Querem mais? Armando Vara. Também foi condenado, em 2014, a cinco anos de prisão efectiva por três crimes de tráfico de influência. Como o Tribunal da Relação manteve integralmente a pena de primeira instância, ele não pôde recorrer para o Supremo. Recorreu para o Constitucional. O Constitucional rejeitou o recurso. O seu advogado decidiu, então, apresentar uma reclamação para a conferência de juízes do Tribunal Constitucional. Parece que a reclamação também suspende o cumprimento da pena. É isto a boa justiça portuguesa. E se achar que não, caro leitor, lembre-se: você é um horrível justiceiro, sem qualquer respeito pela presunção de inocência.

Dois comentários:
Fernando Martins do Vale,  17.07.2018: Ser inocente é um estatuto de mediocridade! O que é digno é ser arguido por corrupção, o que dá em simultâneo um estatuto de esperteza que permitiu o sucesso económico, e como em Portugal presumir é confundido com afirmar inocência, o arguido que ainda não foi condenado (mas também não foi inocentado), ganha logo o estatuto de mártir da Justiça, logo é um santo, e o crime está na nossa suspeição caluniosa.
Luis Fonte, 17.07.2018 : Aparentemente a "malta" adora corruptos, desde que sejam da sua cor política ou do seu clube... Os corruptos dos outros é que são maus, muito maus e merecem tau tau!!!! Somos um país de tarefeiros do estado e pedintes do privado, com uma série de agiotas a servir de intermediários (jornalistas, comentadores, deputados, magistrados em geral e juizes em particular...etc) entre estes e os poderosos de Cascais. Bem haja o Sr. João Miguel Tavares por criticar, tendencialmente por igual, todos os corruptos que me escravizam via impostos.



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