domingo, 8 de julho de 2018

Todos nós tocaríamos a campainha



Para matar o Mandarim, disse-o Teodoro, amanuense do Ministério do Reino, segundo conta Eça em “O Mandarim”, o qual Teodoro, teve a sorte de ganhar seis mil contos duma assentada, com o simples toque de uma campainha, por sugestão de um sujeito vestido de preto, que está visto não era outro senão o Mafarrico tentador - e com esse toque ganhou poder e glória que foi uma coisa por demais, numa história bem contada. A maioria de nós, hoje - tirando as excepções que felizmente são de vulto por cá, na plena assunção de milhões, mesmo sem campainha - limita-se a uma raspadinha gozona com que a Santa Casa da Misericórdia vai defraudando as aspirações dos amanuenses nossos contemporâneos, entre os quais nos incluímos, ou porque as ambições são de inferior dimensão, ou porque as outras lotarias, de probabilidades também minúsculas de ganho, arrasam mais as bolsas, necessárias para os gastos mensais. Mas o Mafarrico já foi, pura história fantástica, tal como os contos de encantar da nossa infância, menos líricos do que os da Sophia de Mello Breyner, que punha poesia nas flores e nas conchinhas do mar para encanto da criançada, o que, quanto a mim, de infância plenamente feliz com as histórias de Perrault e companhia, julgo mais dirigidos aos adultos de leituras sofisticadas.
Vem o assunto à baila, em virtude do título da crónica de M. Fátima Bonifácio  Como anjos imaculados”, condenando a expansão da solidariedade social nos discursos da gente que se diz de esquerda, e que, na posse da “campainha”, digo, do comando da governação, logo utiliza em proveito próprio o seu toque enriquecedor, conquanto matador do desgraçado do mandarim – tal como o fazem os outros da burguesia, por definição, mais capitalizada, na maior parte das vezes por mérito próprio, em esforço e competência e até ignorância da campainha.
O texto é suficientemente explícito, tal como o referido, de João Miguel Tavares, com argumentações precisas e honradas.
Já vimos tantos desses “defensores do povo”, tanto cá, como nas terras que entregámos, e que souberam bem aproveitar as benesses colhidas, em proveito próprio, esquecidas as promessas…  Ah!, sim, a campainha!...

OPINIÃO
Como anjos imaculados
Desconfio instintivamente de quantos apreciam o luxo, desfrutam do luxo, mas se dizem de esquerda.
M. FÁTIMA BONIFÁCIO
Público, 4 de Julho de 2018
O recente escândalo em torno da compra, pelo dirigente do radicalíssimo Podemos, de uma vivenda e sua inevitável piscina, pela quantia de 600.000 euros, apenas se justifica se o caso servir para contemplarmos a insanável contradição moral e política em que vivem perenemente enredados os muitos que se apregoam como representantes e defensores dos mais pobres e desfavorecidos, mas que, como a carne é fraca, apreciam e não dispensam as mais diversas iguarias, de casas a automóveis, de champanhe a caviar persa. O caso, em si mesmo, não vale nada: convenhamos que 600.000 euros não chega a ser dinheiro a sério, que no mercado imobiliário de hoje em dia se cifra em valores muito acima de um milhão. O casal Iglesias ambicionou mais do que um vulgar apartamento, quis um lar como deve ser, uma casinha com jardim e piscina. Por aquele preço, a casinha com jardim e piscina é necessariamente modesta e por certo edificada numa qualquer Picheleira dos arredores de Madrid.
Mas constitui sem dúvida uma muito ofensiva imodéstia aos olhos dos que vivem em habitações pobres e exíguas, numa espécie de lúgubres vãos de escada, em bairros sociais periféricos e de má construção. Estes são aos montes, e é para estes que Iglesias fala, é a estes que Iglesias promete salvação. Mas enquanto os não salva, trata de se salvar a si mesmo. Há muitíssimo poucos Mujicas (José Mujica viveu pobremente durante a sua presidência do Uruguai), foram, são e serão sempre uma espécie raríssima, digna de exposição num altar museológico. São heróis, sim. Só que heróis há poucos.
Como bem notou João Miguel Tavares (PÚBLICO, 22.5.18), todos os marxistas, quer em versão light quer em versão hard, todos os dirigentes de esquerda, todos os dirigentes radicais e todos os dirigentes revolucionários são oriundos das classes médias, médias mesmo ou médias altas. Haverá uma ou outra excepção, mas excepção mais aparente do que real. Por exemplo, José Estaline, também conhecido por Koba, o georgiano filho de uma costureira e de um sapateiro, que, tendo ascendido a secretário-geral do PCUS em 1922 (cargo em que se manteve até à morte, 1953), fez logo, assim que chegou ao topo, a sua “opção de classe”: optou por viver burguesmente à grande – ou, talvez mais exactamente, optou pela (tosca) imitação de um modo de vida imperial, mantendo uma corte obediente e reverente nos luxuosos apartamentos do Kremlin ou nas suas várias datchas nas imediações do Mar Negro (Sebag Montefiore, Stalin. The Court of  the  Red  Tsar, 2003). Compreende-se: a carne é fraca.
Poucos conceitos serão tão hipócritas como o de “opção de classe”, para não mencionar nem me demorar no intrínseco absurdo de que a expressão enferma. Nascemos numa classe social, como nascemos numa determinado país, região ou cidade. Não se muda de classe por “opção”, como quem muda de casaco. Crescemos num mundo familiar que se pauta por uma determinada liturgia familiar e social, traduzida em hábitos, em cerimoniais, em formas de tratamento, no que os ingleses chamam manners, e é neste caldo de cultura que os nossos gostos, a nossa estética germina e se vai formando. Um Cunhal a comer febras de porco com as mãos saberá sempre a esforço e a falso. Um Soares a viver num T3 na Amadora chega a ser impensável. De um Mitterrand, então, nem se fala. E por aí fora, milhares de exemplos possíveis. No entanto, tudo isto é tido como natural e aceitável. Não por mim.
Desconfio instintivamente de quantos apreciam o luxo, desfrutam do luxo, mas se dizem de esquerda. O argumento é velho e estafado: hoje não, que vivemos numa sociedade burguesa e capitalista. Mas quando a Revolução Igualitária se fizer, ah, então abdicamos dos nossos confortos e privilégios. Pura mentira. Não, não passarão sem os seus hábitos e consumos burguesíssimos. Acontece, isso sim, que se a sonhada Revolução surgisse e triunfasse, toda esta gente, habituada a sobretudos de cachemira, camisas Façonnable ou sapatos Church’s, integraria automaticamente a nova elite oligárquica, e, como acontecia nos países socialistas da defunta URSS, teria ao seu dispor, em lojas privadas e exclusivas, daquelas em que se paga com os dólares inacessíveis ao comum dos mortais, o que de melhor se produz ou fabrica no Ocidente desprezivelmente capitalista e burguês.
Não é que, em absoluto, não se mude de classe: mas o facto, o facto crítico e decisivo, é que só se quer mudar para uma mais alta – ninguém, muito compreensivelmente, se dispõe a carregar no botão zero do elevador social. E aqui reside a contradição insanável: como pode alguém arrogar-se o suposto mérito moral de se declarar de esquerda, de se alistar na luta pela supremacia da esquerda, de se reclamar lutador pela causa de todos os pobres, humilhados e ofendidos, se esse alguém vive no capitalismo como o peixe vive na água ou as vacas pastam nos prados açorianos? Não é credível. Não acredito no socialismo dos socialistas que berram pela igualdade e têm um Porsche na garagem; que berram pelo socialismo e só se sabem vestir em Paris, Milão ou Nova Iorque. E que, a título de oração nocturna, lavam a consciência declinando o alfabeto socialista da primeira letra à última, dormindo em seguida como anjos imaculados.
Historiadora



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