Para matar o Mandarim, disse-o
Teodoro, amanuense do Ministério do Reino, segundo conta Eça em “O Mandarim”, o
qual Teodoro, teve a sorte de ganhar seis mil contos duma assentada, com o
simples toque de uma campainha, por sugestão de um sujeito vestido de preto,
que está visto não era outro senão o Mafarrico tentador - e com esse toque
ganhou poder e glória que foi uma coisa por demais, numa história bem contada. A
maioria de nós, hoje - tirando as excepções que felizmente são de vulto por cá,
na plena assunção de milhões, mesmo sem campainha - limita-se a uma raspadinha gozona
com que a Santa Casa da Misericórdia vai defraudando as aspirações dos
amanuenses nossos contemporâneos, entre os quais nos incluímos, ou porque as
ambições são de inferior dimensão, ou porque as outras lotarias, de
probabilidades também minúsculas de ganho, arrasam mais as bolsas, necessárias para os
gastos mensais. Mas o Mafarrico já foi, pura história fantástica, tal como os
contos de encantar da nossa infância, menos líricos do que os da Sophia de
Mello Breyner, que punha poesia nas flores e nas conchinhas do mar para encanto
da criançada, o que, quanto a mim, de infância plenamente feliz com as histórias
de Perrault e companhia, julgo mais dirigidos aos adultos de leituras sofisticadas.
Vem o assunto à baila, em
virtude do título da crónica de M. Fátima Bonifácio “Como anjos imaculados”, condenando a
expansão da solidariedade social nos discursos da gente que se diz de esquerda,
e que, na posse da “campainha”, digo, do comando da governação, logo utiliza em
proveito próprio o seu toque enriquecedor, conquanto matador do desgraçado do
mandarim – tal como o fazem os outros da burguesia, por definição, mais
capitalizada, na maior parte das vezes por mérito próprio, em esforço e
competência e até ignorância da campainha.
O texto é suficientemente
explícito, tal como o referido, de João Miguel Tavares, com argumentações
precisas e honradas.
Já vimos tantos desses
“defensores do povo”, tanto cá, como nas terras que entregámos, e que souberam
bem aproveitar as benesses colhidas, em proveito próprio, esquecidas as
promessas… Ah!, sim, a campainha!...
OPINIÃO
Como anjos imaculados
Desconfio instintivamente de quantos apreciam o
luxo, desfrutam do luxo, mas se dizem de esquerda.
M. FÁTIMA BONIFÁCIO
Público, 4 de Julho de 2018
O recente escândalo em torno da compra, pelo dirigente do radicalíssimo
Podemos, de uma vivenda e sua inevitável piscina, pela quantia de 600.000
euros, apenas se justifica se o caso servir para contemplarmos a insanável
contradição moral e política em que vivem perenemente enredados os muitos que
se apregoam como representantes e defensores dos mais pobres e desfavorecidos,
mas que, como a carne é fraca, apreciam e não dispensam as mais diversas
iguarias, de casas a automóveis, de champanhe a caviar persa. O caso, em si
mesmo, não vale nada: convenhamos que 600.000 euros não chega a ser dinheiro a
sério, que no mercado imobiliário de hoje em dia se cifra em valores muito
acima de um milhão. O casal Iglesias ambicionou mais do que um vulgar
apartamento, quis um lar como deve ser, uma casinha com jardim e piscina. Por
aquele preço, a casinha com jardim e piscina é necessariamente modesta e por
certo edificada numa qualquer Picheleira dos arredores de Madrid.
Mas constitui sem dúvida uma muito ofensiva imodéstia aos olhos dos que
vivem em habitações pobres e exíguas, numa espécie de lúgubres vãos de escada,
em bairros sociais periféricos e de má construção. Estes são aos montes, e é
para estes que Iglesias fala, é a estes que Iglesias promete salvação. Mas
enquanto os não salva, trata de se salvar a si mesmo. Há muitíssimo poucos
Mujicas (José Mujica viveu pobremente durante a sua presidência do Uruguai),
foram, são e serão sempre uma espécie raríssima, digna de exposição num altar
museológico. São heróis, sim. Só que heróis há poucos.
Como
bem notou João Miguel Tavares (PÚBLICO, 22.5.18), todos os marxistas, quer em
versão light quer em versão hard, todos os dirigentes de
esquerda, todos os dirigentes radicais e todos os dirigentes revolucionários
são oriundos das classes médias, médias mesmo ou médias altas. Haverá uma ou
outra excepção, mas excepção mais aparente do que real. Por exemplo, José
Estaline, também conhecido por Koba, o georgiano filho de uma costureira e de
um sapateiro, que, tendo ascendido a secretário-geral do PCUS em 1922 (cargo em
que se manteve até à morte, 1953), fez logo, assim que chegou ao topo, a sua
“opção de classe”: optou por viver burguesmente à grande – ou, talvez mais
exactamente, optou pela (tosca) imitação de um modo de vida imperial, mantendo
uma corte obediente e reverente nos luxuosos apartamentos do Kremlin ou nas
suas várias datchas nas imediações do Mar Negro (Sebag
Montefiore, Stalin. The Court of the Red Tsar, 2003).
Compreende-se: a carne é fraca.
Poucos conceitos serão
tão hipócritas como o de “opção de classe”, para não mencionar nem me demorar
no intrínseco absurdo de que a expressão enferma. Nascemos numa classe social,
como nascemos numa determinado país, região ou cidade. Não se muda de classe
por “opção”, como quem muda de casaco. Crescemos num mundo familiar que se
pauta por uma determinada liturgia familiar e social, traduzida em hábitos, em
cerimoniais, em formas de tratamento, no que os ingleses chamam manners, e é neste caldo de
cultura que os nossos gostos, a nossa estética germina e se vai formando. Um
Cunhal a comer febras de porco com as mãos saberá sempre a esforço e a falso.
Um Soares a viver num T3 na Amadora chega a ser impensável. De um Mitterrand,
então, nem se fala. E por aí fora, milhares de exemplos possíveis. No entanto,
tudo isto é tido como natural e aceitável. Não por mim.
Desconfio
instintivamente de quantos apreciam o luxo, desfrutam do luxo, mas se dizem de
esquerda. O argumento é velho e estafado: hoje não, que vivemos numa sociedade
burguesa e capitalista. Mas quando a Revolução Igualitária se fizer, ah, então
abdicamos dos nossos confortos e privilégios. Pura mentira. Não, não passarão
sem os seus hábitos e consumos burguesíssimos. Acontece, isso sim, que se a
sonhada Revolução surgisse e triunfasse, toda esta gente, habituada a
sobretudos de cachemira, camisas Façonnable ou sapatos Church’s,
integraria automaticamente a nova elite oligárquica, e, como acontecia nos
países socialistas da defunta URSS, teria ao seu dispor, em lojas privadas e
exclusivas, daquelas em que se paga com os dólares inacessíveis ao comum dos
mortais, o que de melhor se produz ou fabrica no Ocidente desprezivelmente
capitalista e burguês.
Não é que, em absoluto,
não se mude de classe: mas o facto, o facto crítico e decisivo, é que só se
quer mudar para uma mais alta – ninguém, muito compreensivelmente, se dispõe a
carregar no botão zero do elevador social. E aqui reside a contradição
insanável: como pode alguém arrogar-se o suposto mérito moral de se declarar de
esquerda, de se alistar na luta pela supremacia da esquerda, de se reclamar
lutador pela causa de todos os pobres, humilhados e ofendidos, se esse alguém
vive no capitalismo como o peixe vive na água ou as vacas pastam nos prados
açorianos? Não é credível. Não acredito no socialismo dos socialistas que
berram pela igualdade e têm um Porsche na garagem; que berram pelo socialismo e
só se sabem vestir em Paris, Milão ou Nova Iorque. E que, a título de oração
nocturna, lavam a consciência declinando o alfabeto socialista da primeira
letra à última, dormindo em seguida como anjos imaculados.
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