De vez em quando escuto as
lições de António José Saraiva, que a TV Memória reproduz, voz cansada e
simples, mas objectiva e segura do muito saber modesto, falando do passado
histórico, de um povo isolado do mundo, com Castela a leste, impeditiva de uma
comunicação com o resto da Europa, espartilhada, esta, mas produtiva e
evoluída, na sua maior intercomunicação e rivalidade de povos. Povo pouco dinâmico
o nosso, mau grado as pretensões dos que o amaram, e foram tantos, ao longo da
sua história, tentando mesmo figurar o país num “quase cumo de cabeça de
Europa toda”, na versão de Camões, a que Pessoa acrescenta em homenagem de
tão expressiva alegoria e irrealidade um “rosto com que fita”:
O DOS CASTELOS
A Europa jaz, posta nos
cotovelos:
De Oriente a
Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe
românticos cabelos
Olhos gregos,
lembrando.
O cotovelo
esquerdo é recuado;
O direito é em
ângulo disposto.
Aquele diz
Itália onde é pousado;
Este diz
Inglaterra onde, afastado,
A mão
sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com
olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente,
futuro do passado.
O rosto com
que fita é Portugal.
MENSAGEM, 8-12-1928
Eram grandes poetas, amaram o
seu país, dando o seu contributo para o desenvolver, mas criticaram-no também
nas subtilezas ou grosserias dos seus desvios. E assim ficámos eternamente, nos desvios,
tentando uns remendar o que outros destroem, ao longo da sua história de crises
e reconstruções, em que a megalomania e a cupidez desastrosas dominam. E tanta
vez a parlapatice e a pequice, como as histórias que nos conta Paulo Tunhas no texto que segue, próprias de
um país na sua mais caricata infância. O certo é que o PR já muitas vezes tem
sido criticado, por uma saliência palreira e grotesca, não julgo que tal nunca
lhe tenha sido comunicado, poderia aprender a ser mais comedido e lembrar
que os portugueses não lhe merecem que os submeta assim ao ridículo das suas
saliências de chefe supremo, comportando-se como menino teimoso e sem tento.
Não, de todo. Nem o “Brasão”, nem o “Mar Português”, nem mesmo o “Encoberto”,
gerador do nosso Fado, partes da “Mensagem”, justificam tanta megalomania atrevida.
É preciso saber enxergar. E enxergar-se.
Esta nossa tristeza /premium
OBSERVADOR, 5/7/2018
Ao contrário dos broncos
americanos, nós por cá temos a poção mágica em que Marcelix caiu quando era
pequenino e que Costix nos distribui. Um golinho e, zás!, somos “os melhores
dos melhores".
O espectáculo que os nossos
políticos nos oferecem regularmente coloca-nos numa posição difícil. Não é
fácil, com efeito, oscilar perpetuamente entre o riso e a melancolia. Quem é
dado à indignação tem, de certa maneira, a vida facilitada. Entre o riso e a
melancolia a indignação faz uma pontinha que torna a vida um bocadinho menos
esquizofrénica. Mas para quem, como é o meu caso, não é particularmente dado a
indignações, por boas e más razões, esta vida de oscilação perpétua faz mal e
dá vontade de voar para longe, muito longe, ou de levar vida de eremita a
sério, sem televisão, sem jornais, sem nada que nos faça sequer suspeitar da
existência das criaturas que nos pastoreiam.
Estes últimos dias têm sido
férteis em episódios que recomendam soluções radicais do tipo atrás mencionado.
Senão, vejamos. Tivemos direito a um Presidente da República que se prestou
ao ofício de comentador desportivo (com linguagem técnica e tudo) na ocasião
dos jogos de futebol da selecção. Só lhe faltou tirar do bolso estatísticas (a
selecção nunca perdeu a um sábado e coisas assim) e desenhar tácticas futuras
para a equipa, embora, neste último caso, não garanto que não o tenha feito e a
coisa me tivesse passado desapercebida. Pessoalmente, não consigo deixar de
achar uma certa graça a Marcelo e a ter por ele uma certa simpatia. Mas vê-lo
naquela situação (uma situação semelhante a muitas outras em que ele gosta de
se colocar) deprime fundo, até porque, contra todas as aparências, transmite um
sentimento de inconsciente e grave infelicidade por parte do personagem. Ele
não achará que aquilo é, muito banalmente, anormal? Não perceberá que a
excentricidade levada a certos patamares de despropósito não é sinal de
autenticidade, mas do seu exacto contrário – artificialidade?
Continuando com Marcelo,
desta vez com o seu encontro com Donald Trump. O mínimo que se pode dizer, numa
reunião em que Trump tinha visivelmente outras coisas mais importantes em que
pensar, é que Marcelo foi igual a si mesmo. Quem não se lembra da sua memorável
conversa com a rainha de Inglaterra, na qual, para além de vários outros
prodígios, lhe procurou avivar a memória acerca do inolvidável general Craveiro
Lopes e do doce balanço da carruagem que a transportou no “big square” (o
Terreiro do Paço), que tanto provocara o encantamento da sua infância? Lembrou
ao presidente americano, a propósito da brincadeira deste segundo a qual
Cristiano Ronaldo lhe poderia disputar o cargo, que Portugal não é a mesma
coisa que os Estados Unidos. Sábia verdade, mas neste caso um pouco
reaccionária, por razões que nem é necessário explicar. Além disso, contam os
jornais, consta que deu a Trump uma “lição de história”.
Aqui, o interessante da
coisa não vem tanto de Marcelo como da vasta alegria patriótica que a tal
“lição” provocou por cá. A ler grande parte do que se escreveu, fica-se com a
ideia de que a nossa infinita superioridade sobre os EUA ficou matematicamente
demonstrada. Os broncos dos americanos que esqueçam os prémios Nobel, as
bibliotecas das universidades e tudo o resto. Nós por cá temos a poção mágica
em que Marcelix caiu quando era pequenino e que Costix nos distribui em casos
de eventual aflicção. Um golinho e, zás!, somos inteligentíssimos e “os
melhores dos melhores”. É cómico? Claro que é cómico. Mas, passado o riso
inicial, é deprimente. Não temos de ser assim tão voluntariamente inferiores,
não merecemos isso.
Queria evitar mais uma
referência a Marcelo, mas é impossível. Ele está em todo o lado. No “Rock in
Rio” lá estava mais uma vez ele, desta vez numa homenagem ao falecido
guitarrista de rock Zé Pedro. Pelo menos desde que encetou um duo com o
sussurrante Pedro Abrunhosa que o nosso Presidente da República é um habituado
dos grandes palcos do rock. Desta vez brindou-nos com a sua versão de “A minha
alegre casinha / Tão modesta quanto eu”, acompanhado por um elenco de luxo, em
que refulgiam António Costa e Ferro Rodrigues, além da promissora candidata ao
estrelato Catarina Martins. Marcelo e os seus convidados especiais brilharam, é
claro. E pelo menos eu ri-me que me fartei. Mas será que que o espectáculo se
recomendava verdadeiramente? Longe de mim pretender que os profissionais de
sucesso nas mais variadas áreas não devam ser objecto de homenagem, e o caso do
guitarrista dos “Xutos e Pontapés” não é evidentemente excepção alguma. A
questão está toda no modo. E que pensar daquele modo, em que o poder encena uma
proximidade com o “povo”, numa sociedade em que a sua real e efectiva distância
para com esse mesmo “povo” é abissal? Há alguma maneira de não pensar o pior?
Duvido.
Finalmente, um episódio
em que o nosso omnipresente Marcelo não estava lá. Mas estava Fernando Medina,
presidente da Câmara de Lisboa. Medina já tinha ido, quando a cantora Madonna
anunciou a sua intenção de vir viver em Lisboa, visitá-la ao seu hotel para a
incentivar a dar o glorioso passo. De acordo com qualquer padrão de
comportamento aceitável, a visita era em si intrinsecamente ridícula. Agora, a
Câmara Municipal de Lisboa decidiu oferecer-lhe provisoriamente um parque de
estacionamento para os seus quinze carros pela quantia mensal de 720 euros.
Provavelmente, há décadas que Madonna não gastava tão pouco dinheiro em nada.
Mas Fernando Medina lá se ofereceu, atento e venerando e em nome do superior
interesse dos munícipes de Lisboa, ao obsequioso gesto. Com a confusão que vai
por aí sobre o que se chama “cultura”, suponho que Medina julga que a sua
atitude representa uma elevada contribuição para a elevação cultural dos
lisboetas e dos portugueses em geral. Não contribui nada, como é bom de ver.
Mas isso não é uma coisa que aquelas cabeças corram o risco de perceber. Mais
uma vez: é cómico? É certamente. Mas é sobretudo, na sua inferioridade, uma
tristeza.
Andou o país, com grande
escândalo, a discutir durante meses as desgraças de um clube de futebol
presidido por um indivíduo, é verdade, muito singular. Mas tudo isso não conta
literalmente nada se comparado com as figuras que fazem os nossos políticos.
Literalmente nada. E querem eles que os levemos a sério quando nos falam de
assuntos graves como, por exemplo, as migrações? Deveremos acreditar que, a par
do seu pouco recomendável cérebro irracional que passeiam pelo país, possuem um
outro cérebro de uma impecável racionalidade que usam para questões mais
sérias? Não será pedir-nos credulidade a mais?
Muitos defendem que
Portugal é um país onde não corremos riscos imediatos de uma vitória do
populismo. Se a tese é verdadeira, avanço uma explicação para o facto: é porque
a parolice (uso a palavra com propriedade) dos políticos serve de antídoto ao
populismo. Faz rir, e enquanto nos rimos afastamos o pior. O problema é se não
temos vontade de rir de Portugal, sobretudo se o riso acaba em desejo de chorar
com esta nossa tristeza.
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