sábado, 7 de julho de 2018

Espectáculo



De vez em quando escuto as lições de António José Saraiva, que a TV Memória reproduz, voz cansada e simples, mas objectiva e segura do muito saber modesto, falando do passado histórico, de um povo isolado do mundo, com Castela a leste, impeditiva de uma comunicação com o resto da Europa, espartilhada, esta, mas produtiva e evoluída, na sua maior intercomunicação e rivalidade de povos. Povo pouco dinâmico o nosso, mau grado as pretensões dos que o amaram, e foram tantos, ao longo da sua história, tentando mesmo figurar o país num “quase cumo de cabeça de Europa toda”, na versão de Camões, a que Pessoa acrescenta em homenagem de tão expressiva alegoria e irrealidade um “rosto com que fita”:
O DOS CASTELOS
A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.
MENSAGEM, 8-12-1928
Eram grandes poetas, amaram o seu país, dando o seu contributo para o desenvolver, mas criticaram-no também nas subtilezas ou grosserias dos seus desvios. E assim ficámos eternamente, nos desvios, tentando uns remendar o que outros destroem, ao longo da sua história de crises e reconstruções, em que a megalomania e a cupidez desastrosas dominam. E tanta vez a parlapatice e a pequice, como as histórias que nos conta Paulo Tunhas no texto que segue, próprias de um país na sua mais caricata infância. O certo é que o PR já muitas vezes tem sido criticado, por uma saliência palreira e grotesca, não julgo que tal nunca lhe tenha sido comunicado, poderia aprender a ser mais comedido e lembrar que os portugueses não lhe merecem que os submeta assim ao ridículo das suas saliências de chefe supremo, comportando-se como menino teimoso e sem tento. Não, de todo. Nem o “Brasão”, nem o “Mar Português”, nem mesmo o “Encoberto”, gerador do nosso Fado, partes da “Mensagem”, justificam tanta megalomania atrevida. É preciso saber enxergar. E enxergar-se.


Esta nossa tristeza /premium
OBSERVADOR, 5/7/2018
Ao contrário dos broncos americanos, nós por cá temos a poção mágica em que Marcelix caiu quando era pequenino e que Costix nos distribui. Um golinho e, zás!, somos “os melhores dos melhores".
O espectáculo que os nossos políticos nos oferecem regularmente coloca-nos numa posição difícil. Não é fácil, com efeito, oscilar perpetuamente entre o riso e a melancolia. Quem é dado à indignação tem, de certa maneira, a vida facilitada. Entre o riso e a melancolia a indignação faz uma pontinha que torna a vida um bocadinho menos esquizofrénica. Mas para quem, como é o meu caso, não é particularmente dado a indignações, por boas e más razões, esta vida de oscilação perpétua faz mal e dá vontade de voar para longe, muito longe, ou de levar vida de eremita a sério, sem televisão, sem jornais, sem nada que nos faça sequer suspeitar da existência das criaturas que nos pastoreiam.
Estes últimos dias têm sido férteis em episódios que recomendam soluções radicais do tipo atrás mencionado. Senão, vejamos. Tivemos direito a um Presidente da República que se prestou ao ofício de comentador desportivo (com linguagem técnica e tudo) na ocasião dos jogos de futebol da selecção. Só lhe faltou tirar do bolso estatísticas (a selecção nunca perdeu a um sábado e coisas assim) e desenhar tácticas futuras para a equipa, embora, neste último caso, não garanto que não o tenha feito e a coisa me tivesse passado desapercebida. Pessoalmente, não consigo deixar de achar uma certa graça a Marcelo e a ter por ele uma certa simpatia. Mas vê-lo naquela situação (uma situação semelhante a muitas outras em que ele gosta de se colocar) deprime fundo, até porque, contra todas as aparências, transmite um sentimento de inconsciente e grave infelicidade por parte do personagem. Ele não achará que aquilo é, muito banalmente, anormal? Não perceberá que a excentricidade levada a certos patamares de despropósito não é sinal de autenticidade, mas do seu exacto contrário – artificialidade?
Continuando com Marcelo, desta vez com o seu encontro com Donald Trump. O mínimo que se pode dizer, numa reunião em que Trump tinha visivelmente outras coisas mais importantes em que pensar, é que Marcelo foi igual a si mesmo. Quem não se lembra da sua memorável conversa com a rainha de Inglaterra, na qual, para além de vários outros prodígios, lhe procurou avivar a memória acerca do inolvidável general Craveiro Lopes e do doce balanço da carruagem que a transportou no “big square” (o Terreiro do Paço), que tanto provocara o encantamento da sua infância? Lembrou ao presidente americano, a propósito da brincadeira deste segundo a qual Cristiano Ronaldo lhe poderia disputar o cargo, que Portugal não é a mesma coisa que os Estados Unidos. Sábia verdade, mas neste caso um pouco reaccionária, por razões que nem é necessário explicar. Além disso, contam os jornais, consta que deu a Trump uma “lição de história”.
Aqui, o interessante da coisa não vem tanto de Marcelo como da vasta alegria patriótica que a tal “lição” provocou por cá. A ler grande parte do que se escreveu, fica-se com a ideia de que a nossa infinita superioridade sobre os EUA ficou matematicamente demonstrada. Os broncos dos americanos que esqueçam os prémios Nobel, as bibliotecas das universidades e tudo o resto. Nós por cá temos a poção mágica em que Marcelix caiu quando era pequenino e que Costix nos distribui em casos de eventual aflicção. Um golinho e, zás!, somos inteligentíssimos e “os melhores dos melhores”. É cómico? Claro que é cómico. Mas, passado o riso inicial, é deprimente. Não temos de ser assim tão voluntariamente inferiores, não merecemos isso.
Queria evitar mais uma referência a Marcelo, mas é impossível. Ele está em todo o lado. No “Rock in Rio” lá estava mais uma vez ele, desta vez numa homenagem ao falecido guitarrista de rock Zé Pedro. Pelo menos desde que encetou um duo com o sussurrante Pedro Abrunhosa que o nosso Presidente da República é um habituado dos grandes palcos do rock. Desta vez brindou-nos com a sua versão de “A minha alegre casinha / Tão modesta quanto eu”, acompanhado por um elenco de luxo, em que refulgiam António Costa e Ferro Rodrigues, além da promissora candidata ao estrelato Catarina Martins. Marcelo e os seus convidados especiais brilharam, é claro. E pelo menos eu ri-me que me fartei. Mas será que que o espectáculo se recomendava verdadeiramente? Longe de mim pretender que os profissionais de sucesso nas mais variadas áreas não devam ser objecto de homenagem, e o caso do guitarrista dos “Xutos e Pontapés” não é evidentemente excepção alguma. A questão está toda no modo. E que pensar daquele modo, em que o poder encena uma proximidade com o “povo”, numa sociedade em que a sua real e efectiva distância para com esse mesmo “povo” é abissal? Há alguma maneira de não pensar o pior? Duvido.
Finalmente, um episódio em que o nosso omnipresente Marcelo não estava lá. Mas estava Fernando Medina, presidente da Câmara de Lisboa. Medina já tinha ido, quando a cantora Madonna anunciou a sua intenção de vir viver em Lisboa, visitá-la ao seu hotel para a incentivar a dar o glorioso passo. De acordo com qualquer padrão de comportamento aceitável, a visita era em si intrinsecamente ridícula. Agora, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu oferecer-lhe provisoriamente um parque de estacionamento para os seus quinze carros pela quantia mensal de 720 euros. Provavelmente, há décadas que Madonna não gastava tão pouco dinheiro em nada. Mas Fernando Medina lá se ofereceu, atento e venerando e em nome do superior interesse dos munícipes de Lisboa, ao obsequioso gesto. Com a confusão que vai por aí sobre o que se chama “cultura”, suponho que Medina julga que a sua atitude representa uma elevada contribuição para a elevação cultural dos lisboetas e dos portugueses em geral. Não contribui nada, como é bom de ver. Mas isso não é uma coisa que aquelas cabeças corram o risco de perceber. Mais uma vez: é cómico? É certamente. Mas é sobretudo, na sua inferioridade, uma tristeza.
Andou o país, com grande escândalo, a discutir durante meses as desgraças de um clube de futebol presidido por um indivíduo, é verdade, muito singular. Mas tudo isso não conta literalmente nada se comparado com as figuras que fazem os nossos políticos. Literalmente nada. E querem eles que os levemos a sério quando nos falam de assuntos graves como, por exemplo, as migrações? Deveremos acreditar que, a par do seu pouco recomendável cérebro irracional que passeiam pelo país, possuem um outro cérebro de uma impecável racionalidade que usam para questões mais sérias? Não será pedir-nos credulidade a mais?
Muitos defendem que Portugal é um país onde não corremos riscos imediatos de uma vitória do populismo. Se a tese é verdadeira, avanço uma explicação para o facto: é porque a parolice (uso a palavra com propriedade) dos políticos serve de antídoto ao populismo. Faz rir, e enquanto nos rimos afastamos o pior. O problema é se não temos vontade de rir de Portugal, sobretudo se o riso acaba em desejo de chorar com esta nossa tristeza.

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