quarta-feira, 25 de julho de 2018

“Não matem a cotovia, please”



Nos meus tempos do liceu não havia leituras obrigatórias, mas apenas a obrigação de ler obras integrais que não passavam ainda pelo cadinho de uma leitura estruturada nos vários moldes da sua descodificação, mas apenas empiricamente limitados a leitura, interpretação, análise gramatical e síntese, o estruturalismo ainda não aplicado aos estudos literários, o que só aconteceria a partir dos anos 60/70. Lembro-me de que, no 2º ciclo de então, (7º, 8º e 9º anos actuais), nos passaram pelos olhos e os apetites obrigatórios, as Lendas e Narrativas, o Eurico o Presbítero, O Bobo, a Morgadinha dos Canaviais, As Pupilas do Sr. Reitor, julgo que “A Cidade e as Serras”, além d’ Os Lusíadas, é claro, e creio que já o “Frei Luís de Sousa”, mas também o “Auto da Alma”, já no 5º (9º) ano. O certo é que, no 3º ciclo (hoje o Secundário), os programas de literatura eram feitos em extensão e não se punha a leitura integral espartilhada, hoje, segundo os moldes mais recentes de análise estruturalista compartimentada que, facilitando a leitura, embora comprimindo-a segundo esquemas analíticos de interdependência e mais rigor, proporcionaram uma enxada de análise literária que nos serviria para outra qualquer obra, tanto do foro narrativo, como dramático e até mesmo lírico. Nunca esquecerei a surpresa deslumbrada da designação “Sinfonia em quatro andamentos” aplicada a “O Sentimento dum Ocidental”, de Cesário Verde, comprovativa da perfeita harmonia e equilíbrio desse extraordinário poema, cada andamento constituído por 11 estrofes – ao todo 44 quadras com um primeiro verso introdutório decassílabo, os três seguintes alexandrinos, alargando a reflexão, de espaço e tempo e meditação, num descritivo progressivo, de retrospectiva histórica ou de conceito social de sentido crítico, que remata na extraordinária imagem de um animismo conceituoso “A dor humana busca os amplos horizontes / E tem marés de fel como um sinistro mar”.
Tudo isto, para informar quanto estou grata aos trabalhos de orientação de Carlos Reis para a descodificação de “OS MAIAS”, das “Viagens” de Garrett, entre tantos outros estudiosos literários, de que não poderia esquecer Jacinto do Prado Coelho, Joel Serrão e outros investigadores e autores de colectâneas, que não existiam no meu primeiro percurso, Fernando Pessoa ainda esse desconhecido.
Por isso transcrevo este texto de Carlos Reis, impecável nas suas razões de referência, defendendo a manutenção de “Os Maias” no ensino, como obra-prima da nossa literatura que nenhuma outra pode substituir. Tal como Amália ou António Variações, absolutamente inimitáveis, mau grado tantos seus seguidores, por extraordinários que sejam - e tantos que o são, para nossa alegria e prazer.
Estas políticas de Educação contêm, pois, actualmente, um cunho de perversidade ou de menoridade que nos achincalha, como povo sem voz na matéria, indiferentes ao significado de “obra-prima” que deveria ser dada a conhecer, para o despertar das jovens gerações para o conceito de perfeição. Querer substituí-la por outra qualquer leitura, como por exemplo “A Ilustre Casa de Ramires”, parece absurdo, obra rica do ponto de vista linguístico, mas relativamente pobre de intriga, num artístico mas artificial paralelo entre os antepassados do actual Ramires, rigorosos e vingadores da sua honra, e um Gonçalo Mendes letrado e fraco, com problemas de consciência e arroubos de valentia, em todo o caso mantendo uma nobreza de origem que acabam por o tornar um símbolo do seu país, na interpretação de um dos seus amigos, que o esperam no seu regresso de Moçambique. Obra, pois, de uma fase decadente de Eça, em que o amor da pátria prevalece, eliminada a ironia forte de “Os Maias”, até no seu final, nostalgicamente piegas: “e para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça amorável, que sempre bendita fosse entre as terras”.
OPINIÃO
Os Maias na encruzilhada das escolhas
Muitos alunos, por causa do “negócio” das Aprendizagens Essenciais, não terão a oportunidade de estudar o mais admirável romance da nossa literatura.
CARLOS REIS
PÚBLICO, 24 de Julho de 201
1. Quando entraram em vigor os atuais programas de Português do Ensino Secundário (ES), apoiei o que neles havia de reabilitação de um domínio curricular fundamental: o da Educação Literária. Havia razão para reparos, no tocante a escolhas de obras em alternativa, escolhas que, nalguns casos, me pareciam injustificadas; mas preferi (e sempre prefiro) valorizar o que se ganhava, em vez de criticar aquilo que me parecia discutível.
Com as Aprendizagens Essenciais postas à discussão pública pelo Ministério da Educação (ME), o caso muda de figura. Sob os véus da autonomia das escolas e da flexibilização curricular, o ME desce mais alguns furos na exigência formativa dos alunos; fazendo-o, abdica da responsabilidade de garantir que todos eles, não apenas os que frequentam escolas privadas de elite, têm acesso àquilo que de mais significativo existe na nossa história literária.
Fixo-me no caso do Português e na “lista de obras e textos para educação literária” no 11.º ano. É aqui que se encontra o casus belli, a saber: o que acontecerá ao romance Os Maias? Uma pergunta que alguns modulam assim: o que fazer com esse incómodo elefante sentado na sala, para maçada de quantos preferem modos de vida amenos? Não estão em causa apenas Os Maias, mas também as Viagens na minha terra, o Amor de perdição, A ilustre casa de Ramires, O livro de Cesário Verde e outros – todos estes com a natural “vantagem” de serem menos extensos... A resposta é expedita: negoceia-se.
Veja-se o que está nas Aprendizagens Essenciais: “Estas aprendizagens repercutir-se-ão no projeto individual de leitura de cada aluno que desenvolverá o seu perfil de leitor a partir de uma seleção de leituras que negociará com o professor, tendo por referência não só o conjunto das obras que constitui referência para as atividades de educação literária (...) em aula mas também o Plano Nacional de Leitura.” Deixo de lado a duplicação da referência e observo isto: nos casos de Garrett, Herculano, Camilo, Eça, Antero e Cesário, o “negócio” faz-se com três autores, uma obra narrativa, um romance, seis poemas – e chega.
2. O assunto parece risível, mas é sério e terá consequências gravíssimas, como efeito de um atávico comportamento político em Portugal: o Governo quer marcar presença educativa; para tal, muda. Programas, metas, aprendizagens, critérios, seja o que for. Muda-se e não se pensa na estabilidade curricular, um fator relevante para ajudar a garantir uma formação harmoniosamente desenvolvida, mesmo sabendo-se que os currículos não são dogmas inamovíveis.
Mas não é disso que trato agora. Prefiro centrar-me em dois temas decisivos, para pôr a nu aquilo que considero crucial: a lógica das escolhas “negociadas” é perversa, estimula a facilidade e gera efeitos antidemocráticos.
3. Primeiro tema: o cânone. Mesmo sendo esta uma matéria impopular, afirmo convictamente o seguinte: o Estado tem o dever de, como se faz noutros países, pensar um cânone de autores e de textos que estruture a Educação Literária no Ensino Secundário (é deste que estou a falar). Pensar um cânone não significa ditá-lo ex abrupto ou torná-lo coisa rígida; significa propô-lo, criar condições para que ele seja debatido e configurado, com base na tradição literária, no seu diálogo com a nossa identidade e com os valores que presidem a uma sociedade tolerante, multicultural e descomplexada relativamente ao que herdou. E significa também conhecer o lastro de saber acumulado em torno da nossa literatura, com a certeza de que não está aqui em causa um corpus mastodôntico; numa literatura que infelizmente não tem a amplidão de outras, um cânone mínimo e consensual talvez não vá além de uma vintena de títulos e de autores. Esse cânone não consente negócios, exige reflexão e aquele “honesto estudo” que contraponho à simplificação do ensino.
4. Segundo tema: Os Maias. Para mim (e não só para mim), Os Maias são um elemento fundamental daquele cânone mínimo. É assustador pensar que o Estado aceita isto: muitos alunos do ES, por causa do “negócio” das Aprendizagens Essenciais, não terão a oportunidade de estudar o mais admirável romance da nossa literatura. Digo oportunidade e sublinho, porque, para mim, é disso que se trata e já expliquei porquê noutras alturas. Considero profundamente antidemocrático que o Estado, com a boa intenção da flexibilização curricular, prive jovens daquela oportunidade, até porque ela será, porventura, a única que muitos deles terão na vida – enquanto outros, sabe-se bem porquê, continuarão a beneficiar de conteúdos curriculares determinados por escolhas mais sérias.
Dir-se-á (e é verdade) que as escolhas já existiam. Pois então, no tocante ao cânone, não deveriam existir; a insistência num erro (eu considero-o tal, com o devido respeito) não legitima o seu alastramento. É isso que está a acontecer e não estou certo de que os motivos sejam nobres; de escolha em escolha, vão-se negociando conteúdos cada vez mais ligeiros e, sobretudo, menos incómodos para que se atinjam índices respeitáveis de sucesso escolar. E o argumento de que “os alunos não leem” não colhe: ele traduz uma desistência inadmissível e uma intolerável quebra de confiança na competência dos professores e no seu empenhamento para motivarem os alunos. Melhor seria que o poder político (não apenas o atual) os aliviasse de tanto relatório, parecer, reunião, plataforma, formulário, avaliação e outras tarefas que prejudicam aquilo que é fundamental: ensinar com serenidade e estudar com tempo – coisa que um professor, em qualquer nível de ensino, deve fazer. Apetece perguntar: se um aluno de Matemática, de Física ou de Química não lê (ou seja: descuida certos conteúdos), o que se faz? Desiste-se e passa-se a coisas mais afáveis? E em Eletrotecnia, escolhe-se entre corrente contínua e corrente alternada?
Fica muito por dizer, mas acrescento isto: o argumento de que os jovens podem conhecer Eça de Queirós lendo outros romances (esses já são legíveis?) é bem engendrado, mas não convence. Os Maias são o mais extraordinário romance da literatura portuguesa e neles está quase tudo o que Eça de Queirós nos legou: um admirável retrato literário da sociedade portuguesa do século XIX, personagens (incluindo tipos sociais) que nenhuma outra obra da nossa literatura foi capaz de conceber, uma densa reflexão, em clave ficcional, acerca da história, dos seus acidentes e do modo como os homens os vivem, uma tematização do tempo e da morte, da decadência e da memória como valores e sentidos que são parte de nós, em qualquer idade ou época. Tudo isso e também uma história de amor trágica, relatada com uma elevação que só os grandes escritores alcançam.
5. É isto que está a ser posto em causa, deslizando-se no plano inclinado da simplificação curricular. Digo-o com profunda melancolia, porque leio na literatura portuguesa (ou seja: não só n’Os Maias) uma insubstituível mensagem de interpelação da condição humana e de conhecimento de nós mesmos e dos outros. Quem pensar que há outras razões, além destas, para o que aqui deixo pode ficar com essas razões. Não as reclamarei.


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