Nos meus tempos do liceu não
havia leituras obrigatórias, mas apenas a obrigação de ler obras integrais que
não passavam ainda pelo cadinho de uma leitura estruturada nos vários moldes da
sua descodificação, mas apenas empiricamente limitados a leitura,
interpretação, análise gramatical e síntese, o estruturalismo ainda não
aplicado aos estudos literários, o que só aconteceria a partir dos anos 60/70. Lembro-me
de que, no 2º ciclo de então, (7º, 8º e 9º anos actuais), nos passaram pelos
olhos e os apetites obrigatórios, as Lendas
e Narrativas, o Eurico o Presbítero, O Bobo, a Morgadinha dos
Canaviais, As Pupilas do Sr. Reitor, julgo que “A Cidade e as Serras”, além d’ Os
Lusíadas, é claro, e creio que já o “Frei
Luís de Sousa”, mas também o “Auto da
Alma”, já no 5º (9º) ano. O certo é que, no 3º ciclo (hoje o Secundário), os
programas de literatura eram feitos em extensão e não se punha a leitura
integral espartilhada, hoje, segundo os moldes mais recentes de análise estruturalista
compartimentada que, facilitando a leitura, embora comprimindo-a segundo
esquemas analíticos de interdependência e mais rigor, proporcionaram uma enxada
de análise literária que nos serviria para outra qualquer obra, tanto do foro
narrativo, como dramático e até mesmo lírico. Nunca esquecerei a surpresa deslumbrada
da designação “Sinfonia em quatro
andamentos” aplicada a “O Sentimento
dum Ocidental”, de Cesário Verde, comprovativa da perfeita harmonia e
equilíbrio desse extraordinário poema, cada andamento constituído por 11
estrofes – ao todo 44 quadras com um primeiro verso introdutório decassílabo, os
três seguintes alexandrinos, alargando a reflexão, de espaço e tempo e
meditação, num descritivo progressivo, de retrospectiva histórica ou de
conceito social de sentido crítico, que remata na extraordinária imagem de um
animismo conceituoso “A dor humana busca
os amplos horizontes / E tem marés de fel como um sinistro mar”.
Tudo isto, para informar quanto
estou grata aos trabalhos de orientação de Carlos
Reis para a descodificação de “OS
MAIAS”, das “Viagens” de Garrett, entre tantos outros estudiosos
literários, de que não poderia esquecer Jacinto
do Prado Coelho, Joel Serrão e outros investigadores e autores de
colectâneas, que não existiam no meu primeiro percurso, Fernando Pessoa ainda
esse desconhecido.
Por isso transcrevo este texto de Carlos
Reis, impecável nas suas razões de referência, defendendo a manutenção de “Os Maias” no ensino, como obra-prima da
nossa literatura que nenhuma outra pode substituir. Tal como Amália ou António Variações, absolutamente inimitáveis, mau grado tantos seus
seguidores, por extraordinários que sejam - e tantos que o são, para nossa
alegria e prazer.
Estas políticas de Educação contêm, pois, actualmente, um cunho de
perversidade ou de menoridade que nos achincalha, como povo sem voz na matéria,
indiferentes ao significado de “obra-prima” que deveria ser dada a conhecer,
para o despertar das jovens gerações para o conceito de perfeição. Querer
substituí-la por outra qualquer leitura, como por exemplo “A Ilustre Casa de Ramires”, parece absurdo, obra rica do ponto de
vista linguístico, mas relativamente pobre de intriga, num artístico mas
artificial paralelo entre os antepassados do actual Ramires, rigorosos e
vingadores da sua honra, e um Gonçalo Mendes letrado e fraco, com problemas de
consciência e arroubos de valentia, em todo o caso mantendo uma nobreza de
origem que acabam por o tornar um símbolo do seu país, na interpretação de um
dos seus amigos, que o esperam no seu regresso de Moçambique. Obra, pois, de
uma fase decadente de Eça, em que o amor da pátria prevalece, eliminada a
ironia forte de “Os Maias”, até no
seu final, nostalgicamente piegas: “e
para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça amorável, que sempre
bendita fosse entre as terras”.
OPINIÃO
Os Maias na encruzilhada das
escolhas
Muitos alunos, por causa do “negócio”
das Aprendizagens Essenciais, não terão a oportunidade de estudar o mais
admirável romance da nossa literatura.
CARLOS REIS
PÚBLICO, 24 de Julho de 201
1. Quando entraram em
vigor os atuais programas de Português do Ensino Secundário (ES), apoiei o que
neles havia de reabilitação de um domínio curricular fundamental: o da Educação
Literária. Havia razão para reparos, no tocante a escolhas de obras em
alternativa, escolhas que, nalguns casos, me pareciam injustificadas; mas
preferi (e sempre prefiro) valorizar o que se ganhava, em vez de criticar
aquilo que me parecia discutível.
Com as Aprendizagens
Essenciais postas à discussão pública pelo Ministério da Educação (ME), o caso
muda de figura. Sob os véus da autonomia das escolas e da flexibilização
curricular, o ME desce mais alguns furos na exigência formativa dos alunos;
fazendo-o, abdica da responsabilidade de garantir que todos eles, não apenas os
que frequentam escolas privadas de elite, têm acesso àquilo que de mais
significativo existe na nossa história literária.
Fixo-me no caso do Português e
na “lista de obras e textos para educação literária” no 11.º ano. É aqui que se
encontra o casus belli, a saber: o que acontecerá ao romance Os
Maias? Uma pergunta que alguns modulam assim: o que fazer com esse incómodo
elefante sentado na sala, para maçada de quantos preferem modos de vida amenos?
Não estão em causa apenas Os Maias, mas também as Viagens na
minha terra, o Amor de perdição, A ilustre casa de Ramires, O livro
de Cesário Verde e outros – todos estes com a natural “vantagem” de serem
menos extensos... A resposta é expedita: negoceia-se.
Veja-se o que está nas
Aprendizagens Essenciais: “Estas aprendizagens repercutir-se-ão no projeto
individual de leitura de cada aluno que desenvolverá o seu perfil de leitor a
partir de uma seleção de leituras que negociará com o professor, tendo por
referência não só o conjunto das obras que constitui referência para as
atividades de educação literária (...) em aula mas também o Plano Nacional de
Leitura.” Deixo de lado a duplicação da referência e observo isto:
nos casos de Garrett, Herculano, Camilo, Eça, Antero e Cesário, o “negócio”
faz-se com três autores, uma obra narrativa, um romance, seis poemas – e chega.
2. O assunto parece
risível, mas é sério e terá consequências gravíssimas, como efeito de um
atávico comportamento político em Portugal: o Governo quer marcar presença
educativa; para tal, muda. Programas, metas, aprendizagens, critérios, seja o
que for. Muda-se e não se pensa na estabilidade curricular, um fator relevante
para ajudar a garantir uma formação harmoniosamente desenvolvida, mesmo
sabendo-se que os currículos não são dogmas inamovíveis.
Mas não é disso que trato
agora. Prefiro centrar-me em dois temas decisivos, para pôr a nu aquilo que
considero crucial: a lógica das escolhas “negociadas” é perversa, estimula a
facilidade e gera efeitos antidemocráticos.
3. Primeiro tema: o
cânone. Mesmo sendo esta uma matéria impopular, afirmo convictamente o
seguinte: o Estado tem o dever de, como se faz noutros países, pensar um cânone
de autores e de textos que estruture a Educação Literária no Ensino Secundário
(é deste que estou a falar). Pensar um cânone não significa ditá-lo ex
abrupto ou torná-lo coisa rígida; significa propô-lo, criar condições para
que ele seja debatido e configurado, com base na tradição literária, no seu
diálogo com a nossa identidade e com os valores que presidem a uma sociedade
tolerante, multicultural e descomplexada relativamente ao que herdou. E
significa também conhecer o lastro de saber acumulado em torno da nossa
literatura, com a certeza de que não está aqui em causa
um corpus mastodôntico; numa literatura que infelizmente não tem a
amplidão de outras, um cânone mínimo e consensual talvez não vá além de uma
vintena de títulos e de autores. Esse cânone não consente negócios, exige
reflexão e aquele “honesto estudo” que contraponho à simplificação do ensino.
4. Segundo tema: Os
Maias. Para mim (e não só para mim), Os Maias são um elemento
fundamental daquele cânone mínimo. É assustador pensar que o Estado aceita
isto: muitos alunos do ES, por causa do “negócio” das Aprendizagens Essenciais,
não terão a oportunidade de estudar o mais admirável romance da nossa
literatura. Digo oportunidade e sublinho, porque, para mim, é disso
que se trata e já expliquei porquê noutras alturas. Considero profundamente
antidemocrático que o Estado, com a boa intenção da flexibilização curricular,
prive jovens daquela oportunidade, até porque ela será, porventura, a única que
muitos deles terão na vida – enquanto outros, sabe-se bem porquê, continuarão a
beneficiar de conteúdos curriculares determinados por escolhas mais sérias.
Dir-se-á (e é verdade) que as
escolhas já existiam. Pois então, no tocante ao cânone, não deveriam existir; a
insistência num erro (eu considero-o tal, com o devido respeito) não legitima o
seu alastramento. É isso que está a acontecer e não estou certo de que os
motivos sejam nobres; de escolha em escolha, vão-se negociando conteúdos cada
vez mais ligeiros e, sobretudo, menos incómodos para que se atinjam índices
respeitáveis de sucesso escolar. E o argumento de que “os alunos não leem” não
colhe: ele traduz uma desistência inadmissível e uma intolerável quebra de
confiança na competência dos professores e no seu empenhamento para motivarem os
alunos. Melhor seria que o poder político (não apenas o atual) os aliviasse de
tanto relatório, parecer, reunião, plataforma, formulário, avaliação e outras
tarefas que prejudicam aquilo que é fundamental: ensinar com serenidade e
estudar com tempo – coisa que um professor, em qualquer nível de ensino, deve
fazer. Apetece perguntar: se um aluno de Matemática, de Física ou de
Química não lê (ou seja: descuida certos conteúdos), o que se faz?
Desiste-se e passa-se a coisas mais afáveis? E em Eletrotecnia, escolhe-se
entre corrente contínua e corrente alternada?
Fica muito por dizer, mas
acrescento isto: o argumento de que os jovens podem conhecer Eça de Queirós
lendo outros romances (esses já são legíveis?) é bem engendrado, mas não
convence. Os Maias são o mais extraordinário romance da literatura
portuguesa e neles está quase tudo o que Eça de Queirós nos legou: um admirável
retrato literário da sociedade portuguesa do século XIX, personagens (incluindo
tipos sociais) que nenhuma outra obra da nossa literatura foi capaz de
conceber, uma densa reflexão, em clave ficcional, acerca da história, dos seus
acidentes e do modo como os homens os vivem, uma tematização do tempo e da
morte, da decadência e da memória como valores e sentidos que são parte de nós,
em qualquer idade ou época. Tudo isso e também uma história de amor trágica,
relatada com uma elevação que só os grandes escritores alcançam.
5. É isto que está a ser
posto em causa, deslizando-se no plano inclinado da simplificação curricular.
Digo-o com profunda melancolia, porque leio na literatura portuguesa (ou seja:
não só n’Os Maias) uma insubstituível mensagem de interpelação da condição
humana e de conhecimento de nós mesmos e dos outros. Quem pensar que há outras
razões, além destas, para o que aqui deixo pode ficar com essas razões. Não as
reclamarei.
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