terça-feira, 31 de março de 2020

“VIVA ZAPATA”



E a viagem prossegue, a prever o fim, despertando o interesse por tais lugares, que os filmes e as canções foram trazendo ao conhecimento, numa grata euforia, que culmina na canção “Mexico” de Luís Mariano: “Et tu seras toujours le paradis du coeur et de l’amour”.
POR TORDESILHAS ALÉM… - 11   -  VIVA MÉXICO
HENRIQUE SALLES DA FONSECA   A BEM DA NAÇÃO, 30.03.20
Mármore branco e luzidio por tudo quanto era chão e paredes naquela bela aerogare de Cancún. Encaminhados para a fila dos guichets da Polícia de Fronteiras, a Bandeira Nacional Mexicana panda no seu pau encimado por seta doirada. Grande dignidade merecedora da admiração dos forasteiros - neste caso, eu. Verificados e carimbados os passaportes, a agente à paisana a dar-nos as bienvenidas. Cinco estrelas. Contraste absoluto com a agente fardada e de máscara que rudemente nos verificou os passaportes à entrada do Panamá. Desculpei-a porque admiti que o marido dela se tivesse portado mal na véspera. Ou porque nem sequer tivesse marido.
Esperava-nos um mexicano baixote que se apresentou como José e nos conduziu a uma carrinha – quatro adultos habituados a mordomias e oito malas não se metem numa carripana qualquer - que cheirava a limpo. Bom piso nos 30 ou 40 kms até Playa del Carmen. O guarda da cerca exterior do hotel não estava informado da nossa chegada senão para daí a dois dias, não nos deixava entrar. Barafustámos, ameaçámos com a ira divina, apregoámos o cancelamento das reservas futuras e o Fulano que estava do outro lado da comunicação do guarda lá deu licença para que entrássemos. Afinal, esse mini-déspota, tiranete, eunuco de harém, era um atabalhoado que não era capaz de fazer o nosso check-in e fomos nós (mais uma vez, a Graça e o Pepe) a fazerem tudo. O José da carrinha não nos abandonou enquanto não teve a certeza de que estávamos em segurança. De caminho para os quartos já por horas nada cristãs, o recepcionista estendeu-me a mão num gesto de boas-vindas. Mão gorda, saposa. Devem ser assim as mãos dos guardas dos haréns.
Arquitectura e decoração sumptuosas, só tínhamos por ambição verificar tudo isso no dia seguinte. Para já, cama.
Luxo, luxo, luxo.
O programa das festas era a permanência de uma semana com três excursões mas tudo saiu truncado por estarmos a assistir ao encerramento sucessivo dos espaços aéreos e a corrermos o risco de ficarmos retidos no México sem ligações a casa. Aliás, a própria companhia aérea se encarregou de antecipar o voo e nós fizemos apenas uma excursão. Mas os outros dias foram muito bons: uma dúzia de restaurantes dentro do hotel para que pudéssemos escolher à vontade no regime de tudo incluído. Para quem este regime é novidade, a exuberância dos consumos é notória; para quem está habituado (nós), a moderação é a norma. Quarto sobranceiro à piscina e a curtíssima distância da praia; baía fechada por rede anti-dentuças, os primos do cação da nossa sopa; água a condizer com as nossas expectativas – entrada afoita; comes ligeiros e bebes tanto inocentes como hard servidos à descrição com água pelo pescoço ou à sombra de alguma palapa. Aquela não é mas poderia ser a «praia do nababo».
Excursão interessante de um dia inteiro por local arqueológico (Tulum) e piramidal (Cobá). Mas, mais do que o campus arqueológico (não tive pernas que lá me levassem) e as pirâmides, interessou-me mais o que se passa actualmente com a Civilização Maya. Tanto quanto o homem do rickshaw que nos levou às pirâmides contou, em casa falam a língua maya mas na escola só aprendem castelhano; aprendem História maya mas nada mais. Concluo (talvez abusivamente) que o Estado Mexicano tem medo da Civilização Maya e do que algum revivalismo possa significar para a integridade nacional - já lhes chega Chiapas.
Entretanto, as notícias que nos chegavam da Europa e, mais concretamente, de Espanha, eram aterradoras. Estava (e ainda está, no momento em que escrevo estas linhas) em curso uma verdadeira chacina. Havia que apressar o regresso antes que o colapso nos impedisse de voltar a ver as famílias e os amigos.
(continua)   Março de 2020   Henrique Salles da Fonseca
NOTAS DA INTERNET:
Tulum
Tulum é uma cidade na costa das Caraíbas da Península de Iucatão, no México. É conhecida pelas praias e ruínas bem-preservadas de uma antiga cidade portuária maia. O edifício principal é uma grande estrutura em pedra denominada El Castillo (castelo), situada num penhasco montanhoso sobre a praia de areia branca e o mar
Cobá
Cobá é uma antiga cidade pré-colombiana em ruínas da civilização maia, localizada no estado de Quintana Roo, península do Iucatão, no sudeste do México. A maior parte da cidade foi construída em meados do período clássico da civilização maia, entre os anos 500 e 900 d.C. Após o início do século XI a cidade perdeu importância política, ainda que pareça ter conservado a sua importância simbólica e ritual, que lhe permitiu recuperar certa proeminência entre 1200 e 1500, quando se construíram diversos edifícios já de estilo costa oriental.
A cidade de Cobá governava um território importante e lutava contra a cidade maia-tolteca de Chichén Itzá. Tinha relações comerciais com as pequenas cidades maias da costa do mar das Caraíbas, como Xcaret, Xel-Há, Tankan e Tulum, e tinha um observatório astronómico, um campo de jogos para o denominado jogo da bola e uma pirâmide pequena logo na entrada da zona arqueológica.
O sítio arqueológico é o fulcro da maior rede de caminhos empedrados do antigo mundo maia e nele foram encontradas várias estelas que documentam ritos cerimoniais e eventos importantes do período clássico tardio (600-900). A aldeia moderna actual homónima tinha 1278 habitantes em 2010.[carece de fontes]
Chiapas
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Chiapas é um estado do México. A capital é Tuxtla Gutiérrez. Limita-se com o estado de Tabasco ao norte, de Veracruz a noroeste e de Oaxaca a oeste. A leste limita-se com a Guatemala, e ao sul com o Oceano Pacífico. Um terço de sua população é descendente dos maias, sendo que muitos deles não falam espanhol. De Tabasco ao norte, de Veracruz a noroeste e de Oaxaca a oeste. A leste limita-se com a Guatemala, e ao sul com o Oceano Pacífico. Um terço de sua população é descendente dos maias, sendo que muitos deles não falam espanhol.
História
Período pré-hispânico[
O florescimento das cidades maias na selva Lacandona, durante o período clássico (300-900 d.C.), é considerado uma das maiores realizações culturais na história da humanidade. Foi no período pré-clássico (1800 a.C.-300 d.C) que ocorreram em Chiapas os passos que tornaram possível a transição da caverna escura para o ponto brilhante da palavra inarticulado da palavra sonora, coleta de frutos, domesticação, e cultivo do milho, a convivência em agrupamento primitivo sofisticado, a língua falada por escritos glíficos, e a escultura rudimentar.
Por volta de (1500 a.C.), os seus habitantes e começam a cultivar o milho, e viviam em casas e produziam cerâmicas. Foram seus descendentes, os que falavam uma antiga língua mixezoque, que mais tarde mudaram-se para as planícies do Golfo e lá deram à luz a cultura olmeca. Em seu caminho mítico se entretinham no vale do rio Grijalva, e fundaram nas margens uma grande cidade, cujas ruínas ainda podem ser vistas na entrada da Chiapa de Corzo. Lá foi encontrado um pedaço de cerâmica com a inscrição mais antiga até agora: é datada de 36 a.C, trezentos anos depois o povo maia retomou todos esses avanços, e levou à sua máxima perfeição.
Junto com os inumeráveis e inquestionáveis achados artísticos e intelectuais, eles também descobriram alguns problemas que parecem ter complicado a vida dos antigos maias: o aumento da sobre-exploração das terras selvagens e estratificação social rígida, a exaltação excessiva do solo, incursões militares incessante contra os vizinhos, o medo da doença e da fome, e a ameaça de uma catástrofe natural anunciando o fim do seu mundo. Cada um destes problemas tem sido sugerido pelos estudiosos como a explicação do colapso "Maya", o colapso político e cultural, isto é das cidades selvagens no final do século IX. Provavelmente foi uma infeliz conjuntura de vários desses elementos que levaram os maias clássicos à ruína. Em seu lugar surgiu uma sociedade que frustrou os sonhos de grandeza de uma vida mais modesta, principalmente preocupada com a restauração do respeito pela terra sagrada e os agricultores correm para o trabalho. ….
Período Colonial
Quando os espanhóis chegaram no século XVI, no território do estado, se depararam com pessoas de origem maia e outros que não eram, como o zoques e Chiapanecas. Todos foram submetidos entre 1524 e 1530. Somente os lacandones resistiram até 1695, e portanto, o estado atual de Chiapas foi totalmente ocupada pelos europeus. Vários capitães foram os conquistadores de Chiapas, (entre os quais Francisco Gil Zapata)
Desde 1528, com a fundação do primeiro povoado espanhol no Vale do Jovel, se inicia o período colonial. Os índios foram escravizados, marcados como animais e sujeitos ao pagamento de tributo e trabalho forçado. Contato com os europeus também trouxe doenças desconhecidas para estas pessoas. Os soldados da conquistas se tranformaram em comissários de encomiendas. A população indígena cai drasticamente para epidemias recorrentes e fome.
A condição dos índios tornou-se uma fonte de confronto político e ideológico. As ordens religiosas, em particular os dominicanos, tornaram-se defensores do povo aborígene. Em 1542, em que pode ser considerado um triunfo do frei Bartolomé de Las Casas, novas leis são aprovadas de Barcelona, para limitar o poder dos administradores. As ordens religiosas ganharam a partir de então, maior influência sobre a população indígena. A eles é autorizado a redução e congregação e da população, bem como o nome de um santo acima do nome indígena da cidade: San Juan Chamula, San Lorenzo Zinacantán, Santa Catarina, San Clemente Pochutla, entre outros. Se inicia a apresentação religiosa e consolidação do sistema colonial…….
À medida que a economia crescia também ocorreram mudanças. Introduziram novas culturas como a cana-de- açúcar, trigo, cevada, índigo, que junto com o milho, algodão, cacau, feijão e outros foram se tornando os pilares da economia colonial. Também introduziam novas técnicas de produção, tais como enxadas, arado de aço com ponta e rotação de culturas. Qual foi realmente notável foi a introdução de gado, cavalos e ovelhas. Com esta melhoria da agricultura pode-se implantar o adubo animal, além de sua utilização para o trabalho e transporte. Em períodos sucessivos, a economia colonial centrada sobre o cacau, pecuária e índigo no final da colônia, a condição física de Chiapas em larga medida, as tendências econômicas regionais. Tinham as regiões de gado, milho ou grandes plantações, e dava a impressão de várias províncias em uma só, dada a dificuldade e falta de comunicação.
Outro elemento importante deste período histórico é a população. A indígena, principalmente se integraria ao branco, predominantemente espanhóis, que estavam concentrados em Ciudad Real e ao longo da colônia estavam mudando para outros povoados como uma Comitán, Chiapa e Tuxtla. A miscigenação, proibida pela legislação colonial era inevitável, e a partir da segunda metade do século XVII, os números cresceram tornando-se maioria no século XIX. Mas, além de índios e brancos foram trazidos para Chiapas escravos de origem africanos. …Assim, os escravos negros executavam tarefas domésticas, corte de cana e tarefas associadas com a pecuária. Seus números cresceram em que tinham que fazer o trabalho mais pesado, e era onde a população indígena estava em declínio.
Período Pós-Colonial]
No final da era colonial, a sociedade de Chiapas se desenvolvia em três universos relativamente distintos uns dos outros: as aldeias indígenas, fazendas e casas mestiças, e as vilas de origem espanhola. Nas duas últimas saíram cidadãos que concretizaram a independência da província de Chiapas, em primeiro lugar da Espanha em 1821 e depois da América Central em 1824. Houve então uma experiência incipiente democracia que é memorável: a tomada de decisões em reuniões na cidade com pessoas em lugar visível, em várias capitais regionais.
Período Contemporâneo]
O século XX abriu em Chiapas com a guerra entre Tuxtla e San Cristobal, em 1911. …..
Entre 1920 e 1936 os mapaches enfrentaram os carracistas, os socialistas e comunistaspara o controle do estado. …..
Entre 1941 e 1970 Chiapas está passando por um período de estabilidade. O problema central continua sendo o isolamento e confinamento, que por sua vez despertou atitudes regionais e locais. "Aquele que nasceu em San Cristobal de Las Casas, -escreve em 1964 José Casahonda Castillo, sente e pensa que seu belo vale é Chiapas. O tapachulteco, o tuxtleco, o comiteco, o pichucalqueño, pensa da mesma maneira". Esse isolamento não permite o trânsito de pessoas e bens, cada região e às vezes mesmo de cada concelho, auto-suficiente e até culturalmente, e ainda poderia ser avaliada a influência do localismo.
Portanto, uma preocupação do tempo seria a construção de estradas que favoreça o desenvolvimento econômico. Ela transforma a paisagem urbana de Tuxtla Gutiérrez e Tapachula. Se inicia a construção da ferrovia, … Foi registrado que a partir desta integração econômica, aumentou e surgiu nesta fase, o caráter de um setor social que não existia: o agricultor.
O desenvolvimento de infra-estrutura facilitou o crescimento de algumas atividades econômicas: exploração de milho, café, bananas e algodão, assim como bovinos e suínos. A população também cresceu, ….
Invasões de terras, criação de organizações sociais, camponeses, professores, trabalhadores e estudantes, são um reflexo de uma crise de legitimidade e de um desgaste do sistema político mexicano e a insatisfação das demandas sociais. Entre 1970 e 2000 a sociedade chiapaneca mudou dramaticamente. A estrutura agrária é agora a favor do sector ejido e comunidade. Os povos indígenas, anteriormente vistos apenas como parte da paisagem, passaram a desempenhar um papel de protagonista central. O levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), de janeiro de 1994, é a última expressão de despertar indígena do estado. A mudança da preferência eleitoral de 20 de agosto, resume os anos de luta e aspirações de mudança democrática e pacífica dos homens e mulheres de Chiapas de todas as idades e status social.

Conflitos:  A partir de 1994, o estado de Chiapas ficou reconhecido internacionalmente pela insurreição do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), dividindo o México em dois lados: o governo federal e os zapatistas. Atualmente há 32 municípios autônomos zapatistas em Chiapas. O grupo é uma referência a Emiliano Zapata, general que liderou a Revolução Mexicana de 1910, admirado por defender os direitos dos fazendeiros pobres. A rebelião zapatista no estado mais pobre do México começou em 1994, com a tomada pelo EZLN de quatro cidades mais notavelmente San Cristóbal de las Casas, mais de 600 propriedades rurais, o que totalizou cerca de um quarto do território do estado. Apesar dos duros combates iniciais contra as tropas do governo, o EZLN aposta em ações pacíficas e de impacto - como a ocupação de povoados e a organização de congressos políticos internacionais no meio da selva de Chiapas. Sua plataforma, transmitida pelo principal porta-voz, o subcomandante Marcos, prevê a democratização do país e a ampliação da autonomia e das oportunidades para os grupos indígenas.

segunda-feira, 30 de março de 2020

A incógnita está no retorno da bonança



Depois de um tal escândalo que encerra a maioria das populações nos seus lares, com invisível mas não despicienda pulseira electrónica, ainda bem que há os estudiosos e analistas, como Pacheco Pereira que vão preenchendo com as suas reflexões os dias em que, tal como a Inês Pereira, solteira e forçada pela preconceituosa mãe, a ficar metida em casa a bordar, soltaremos expressões do nosso enfadamento, como ela bem fez, rebelde à tirania:

“Renego deste lavrar / e do primeiro que o usou / ó diabo que o eu dou, / que tão mau é de aturar. / Ó Jesu! Que enfadamento, / e que raiva e que tormento, / que cegueira e que canseira! Eu hei-de buscar maneira / d’algum outro aviamento.”
Longe estamos, é certo, das ânsias juvenis da pobre Inês, que depressa se arrependeria dos desejos libertários que um primeiro casamento com “homem avisado” desiludirá, mas que um segundo, é certo, proporcionará, com o “asno” Pero Marques, (aliás, seu primeiro pretendente preterido, a favor do nobre escudeiro - de condição machista e essencialmente cavalar, que felizmente tem o bom senso de ser morto nas “partes d’além, ainda que por um mouro pastor). A nossa idade coronária mais se deve prender, contudo, neste estatuto prisional, com livros de cariz filosófico, tais como “A vida é sonho”, de Quevedo, mais condizente com o mito da caverna, de que temos cada vez mais consciência, na prisão forçada. Talvez o façamos agora, livro várias vezes retomado e nunca acabado, por o acharmos de difícil e canseirosa leitura. Será a altura ideal, para acrescentar ao desprazer desta prisão, e desiludir de vez.


OPINIÃO CORONAVÍRUS
No meio da tempestade
As grandes diferenças entre 1918 e 2020 são duas: a globalização e o tecido comunicacional. E é esse tecido que muda quase tudo nesses cem anos de diferença.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 28 de Março de 2020
A história é uma coisa muito complicada. Permite fazer comparações e permite enganarmo-nos com as comparações. Representa muitas vezes o único património de experiência para vermos como foi no passado e, ao mesmo tempo, seduz-nos com comparações que são enganosas, porque o passado não é o presente. Mas vale sempre a pena usarmos o único reservatório de experiência para defrontarmos uma situação nova. A história não substitui a ciência, a biologia, a medicina, a matemática. A ciência pode saber ainda pouco sobre a covid-19, mas sabe bastante sobre epidemias e pandemias, e esta, no seu desenvolvimento, não parece afastar-se dos padrões conhecidos. Já sabe menos sobre os comportamentos sociais que estão associados a esta pandemia do século XXI, e talvez aí a história saiba mais.
Comecemos por uma pergunta: como é que uma pandemia, com um vírus de uma família conhecida, altamente contagioso mas relativamente moderado nos seus efeitos, e com uma taxa de mortalidade baixa em geral, provoca este verdadeiro cataclismo social e económico, com o encerramento de quase todas as actividades produtivas, as cidades vazias, os transportes parados, milhões de pessoas confinadas em casa?
A pergunta não serve para contrariar os esforços actuais para travar o contágio do vírus e a importância do distanciamento social não só para impedir a propagação da doença, mas para proteger os grupos de risco conhecidos, em particular os mais velhos. A pergunta não questiona a atitude dura das autoridades sanitárias e dos Estados para tratar o maior número de pessoas, aliviar as que sofrem e impedir um grande número de mortes nos grupos de risco. Acima de tudo, não questiona a salvaguarda do efeito de sobrecarga dos sistemas de saúde, talvez o mais perigoso efeito da disseminação da infecção. Mas tem sentido, até porque é legítimo colocar a questão de saber se não estamos a ter uma overdose de resposta, cujos efeitos perversos podem ser maiores, sem razão. A pergunta não diz que estamos a ter excesso de resposta, diz que essa hipótese pode ser legitimamente colocada sem pôr em causa o que se está a passar, tanto mais que há muitos factores desconhecidos sobre a pandemia. Mas o principal factor conhecido nas respostas sociais, o medo, provavelmente nunca daria espaço a que se mudasse alguma coisa.
Se tivermos em conta a pergunta, devemos analisar muitas das diferenças entre a pandemia da covid-19 e a sua antepassada mais semelhante na dimensão, a gripe pneumónica de 1918-9, a “gripe espanhola”. O grau de destruição e morte da pandemia de 1918 foi enorme, na ordem de muitas dezenas de milhões de pessoas, mas as fábricas não pararam, a quarentena severa limitou-se, em grande parte, aos hospitais e às casernas, embora a proibição de concentrações, espectáculos e outros ajuntamentos, assim como o uso de máscaras, aproxime a gripe de 1918 da covid-19. Um caso grave de contágio colectivo foi uma parada em Filadélfia, com cerca de 200.000 espectadores. No dia seguinte, os hospitais estavam cheios.
Podíamos então fazer a contrapergunta: se tivessem sido tomadas em 1918-9 as medidas actuais, teria sido possível diminuir drasticamente o número de mortes? E, dada a elevada taxa de mortalidade, não teria então tido mais sentido essa quarentena rigorosa, tanto mais que os conhecimentos científicos da época já eram suficientes para perceber os mecanismos de propagação? A resposta é provavelmente sim, mas sem a militarização generalizada dos países, em particular as cidades, nada de parecido com o que se passa hoje teria sido possível. Estávamos num tempo de grande convulsão social, com revoltas e revoluções em vários países, violência social e política generalizada, que coincidiu com os efeitos devastadores da Primeira Guerra e, depois, da pandemia propriamente dita. Entre 1917 e 1921, a Europa estava a ferro e fogo: levantamentos, greves, motins, assaltos nas ruas, tudo fazia parte da vida colectiva. Mesmo em Portugal, que militarmente sofreu o seu maior abalo nas batalhas do final da guerra, com mortos, feridos, gaseados e prisioneiros, conheceu-se um período impar de convulsões sociais, desde a primeira tentativa de uma greve geral, em 1918, aos assaltos às mercearias e armazéns suspeitos de açambarcamento, aos assassinatos políticos e bombas.
A gripe de 1918 tinha também um efeito traumático de matar mais jovens adultos, enquanto a covid-19 mata os velhos. Na verdade, esse efeito dobrava o da guerra, onde uma parte importante da população de jovens numa aldeia podia desaparecer numas horas nas trincheiras do Somme e depois vir, mais lentamente, a morrer de gripe quando regressava da tropa. Hoje, com a covid-19, verifica-se que muitos lares de idosos são verdadeiras incubadoras do vírus, mas uma sociedade que vive o mito da juventude na arte, na cultura, no desporto, na vida, permanece bastante indiferente à sorte desses alvos preferenciais do vírus.
As grandes diferenças entre 1918 e 2020 são duas: a globalização e o tecido comunicacional, no qual são embebidas todas as acções e decisões. E é esse tecido que muda quase tudo nesses cem anos de diferença. Por um lado, tem um enorme feito positivo de fornecer informação, pois hoje o homem comum nas cidades sabe muito mais sobre o que se está a passar e sobre o que deve ou não fazer, do que em 1918. Por outro lado, dá uma dimensão individual e colectiva ao medo, cria pela “massagem” da comunicação social, pelo monotematismo dos noticiários, pelas reportagens casuísticas e, nalguns casos, pelo alarmismo de jornalistas que não percebem os números, um efeito de favorecer uma pressão para os excessos da quarentena que não é a mesma coisa do que a distanciação social.
Voltaremos ao assunto
COMENTÁRIOS:
pronouncer: EXPERIENTE: Tem-se insinuado na comunicação social um certo espírito, meio desportivo, de cotejo entre a gripe de 1918 e a pandemia actual, no sentido de tentar concluir que há 100 anos é que foi mau, isto agora é quase nada (o artigo, apesar dos vários 'A pergunta não', e equivalentes, cai neste tipo de argumentação). Ora a epidemia de 1918 foi nada menos que um desastre colossal. Fez mais do dobro de mortos da I Guerra Mundial. Arrisco que o mundo em rede que hoje temos entraria em convulsão se perdesse, de súbito, 50 milhões de pessoas, não importando onde estivessem. Querer usar essa epidemia como termo de comparação, para lá de todas as distorções daí decorrentes, é como querer que o inferno seja métrica para os dramas terrenos. Um redondo absurdo. 28.03.2020
manuel.m2 INICIANTE: A diferença fundamental entre a pandemia de 1918/20 e a do covid 19 reside no número de vidas humanas que a Sociedade considera, em dado momento da História, aceitável sacrificar. Fala PP na batalha do Somme: Só no primeiro dia o exército Britânico sofreu 60.000 mortos,(seriam mais de 888.000 no final da guerra).Em Verdun, em apenas 10 meses de combates, morreu 1 milhão de soldados Franceses e Alemães. Para nós, hoje, é impossível perceber como isto aconteceu, quando uns poucos de milhares de vítimas na Europa nos causa tamanho abalo. E o valor que agora damos à vida humana condiciona a resposta dos Governos. E felizmente que assim é. 28.03.2020
A INICIANTE: Boa reflexão. Infelizmente ainda há lugares no planeta em que é o próprio estado que mata, incluindo os seus cidadãos. 28.03.2020
TMR INICIANTE: Boa reflexão. Na esteira de Ulrich Beck e a sua "Sociedade de Risco Mundial", onde surge trabalhado o conceito de "dramatização do risco", que tem um efeito paralisante de sociedades inteiras. 28.03.2020
jabsantos1709.894864 INICIANTE: Parabéns PP. Faço "meu" o texto de Caetano Brandão 28.03.2020
Jose MODERADOR: A propósito da "A influenza hespanhola" os conselhos da "da Inspectoria de Hygiene" foram genericamente os mesmos dos da actual DGS. "Evitar aglomerações, principalmente à noite" "Tomar cuidados hygienicos...", "Tomar preventivos...", "Evitar toda fadiga ou excesso physico", "O doente aos primeiros symptomas, deve ir para a cama, evitar contágio...", "Evitar as causas de resfriamento é de necessidade tanto para os sãos, como para os doentes e os convalescentes...", "Às pessoas edosas devem applicar-se com mais rigor todos esses cuidados." Passaram 100 anos e as condições de higiene e segurança no trabalho não tomaram em conta a experiência. Daí a necessidade de parar a economia porque o vírus mata ricos e pobres. A consequência vai ser catastrófica. Pode um bolso de notas ser inútil. 28.03.2020
Jose MODERADOR: Há já evidências da propagação do vírus no hemisfério Sul que caminha para o inverno. No hemisfério Norte o regresso ao trabalho está muito longe de ser restabelecido e vem aí o inverno possivelmente com uma recidiva. Esta crise não é estrutural, é conjuntural, mas global e demorada. As economias estão muitíssimo interdependentes e podemos chegar ao ponto de parar no Ocidente por falta de abastecimento do Oriente e parar o Oriente por falta de abastecimentos do Ocidente e igual para Norte e Sul. Se isso acontecesse o planeta ficaria muito mais limpo e o modo de vida actual acabava. Já é garantido que a mobilidade cairá a pique, a globalização será mudada para modo lento. Desemprego massivo fará cair os governos em funções. O que se segue é novo. A intervenção cívica não se fará esperar... 28.03.2020
Caetano Brandão INFLUENTE: Muito bem PP, nada que não esteja habituado em si no que diz respeito à profundidade dos temas, à análise distanciada da carneirada que grassa e que sublinha no seu artigo: a grande diferença é que agora há facebook, instagram e watsapp, para o bem e para o mal. A não ser isso esta pandemia era mais uma, felizmente com efeitos muito menos importantes (na saúde) do qua maioria das outras, conforme os números o mostram: taxa de mortalidade na China, o país mais populoso e com cidades com a maior densidade populacional do mundo, 0,0002%...As redes sociais e media fazem com que a tragédia vá ser imensa pela devastação na economia, esse sim o verdadeiro inferno! 28.03.2020
Pedro Manuel Pacheco INICIANTE: A globalização e a facilidade de comunicação são também, simultaneamente, meios de contágio de ideias (e vírus) e instrumento de controlo sanitário e cultural. É esta ambiguidade tensa que desperta o racismo e a intolerância nas populações. 28.03.2020
Luís F EXPERIENTE: Sempre um prazer ler Pacheco Pereira. Sobre este texto: 1) A realidade é que a gripe já era antes uma pandemia enorme. Em Itália o sistema já estava colapsado, como vários papers (um deles em Nov de 2019) já indicavam. Mas como era uma coisa "conhecida" não era visível para o grande público. E isto, diga-se, com vacinas disponíveis que o Estado não impunha e que tinha taxas de somente 50% 2) Aos governos é muito mais fácil fechar países do que arriscar uma gestão mais ajustada. Por exemplo, se o Algarve e o Alentejo têm taxas muito reduzidas, não faz sentido fechar essas regiões. Se Lisboa recuperar muito mais depressa que o Norte, as restrições deveriam ser ajustadas. Mas essa gestão é difícil, incerta, comporta riscos, e os governos sabem que seriam atacados por não fazerem todo o possível 28.03.2020
Joao INICIANTE: Diz uma verdade o Luís, o que acontece continuamente é a gripe “normal” que é “uma coisa "conhecida" não era visível para o grande público”. O homem habitua-se a tudo e a tudo se adapta. Mas já não concordo com os “ajustes” que refere. Por uma região não ter casos contaminados não é razão para a “abrir”, antes pelo contrário é razão para a “fechar” e isolar para poder continuar a levar a vida normal lá dentro. Em regiões contíguas claro que terá razão. É questão de bom senso o que os especialistas dizem, isolar, isolar, isolar as regiões e países contaminados e isolar as regiões e países não contaminados. Agora estamos a isolar as pessoas em casa, bloqueando a actividade produtiva. E se os sistemas básicos colapsarem, recolha de lixo, abastecimento de água e electricidade, enfim, é o fim  28.03.2020
Ceratioidei EXPERIENTE: Excelente texto. 28.03.2020

domingo, 29 de março de 2020

E o que deveria mudar



Ao seu estilo habilidosamente aprumado, na sequência de argumentos progressivamente amplificados em paralelismos gramaticais e ideológicos, em processo anafórico, vai AB desenvolvendo o seu pensamento político e moralizador que lhe merece ora críticas ora loas. Aos que o criticam de não dizer mais do que evidências, não acho que estas sejam tão banais assim, e servem sempre para ponderarmos e assumirmos comportamentos que poderão ser úteis na sociedade que se prepara e que pede, certamente, mais reflexão, em muitas frentes….
OPINIÃO CORONAVÍRUS
O que sobra e o que resta…
Algumas das coisas que começarem a ser feitas agora ficarão para sempre. A solidariedade europeia, por exemplo. O que de bom ou de mau se fizer agora, ficará para depois. A dimensão do Estado, também.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 29 de Março de 2020
Salvar milhões de pessoas. Tratar dos doentes. Lutar contra o contágio. Conter a propagação. Liquidar o vírus. Impedir o seu regresso. Preparar meios para curar os infectados. Descobrir uma vacina. Fazer tudo isto nas melhores condições de equidade. Tratar todas as pessoas igualmente, sem favorecer classes sociais, raça, etnia, religião, origem, idade, sexo, crença ou partido. Esta é uma prioridade.
A outra prioridade é tratar do que vem a seguir. Da sociedade que se mantém de pé. Mas também daquela que fica de rastos. Ocupar-se das empresas, do emprego, do Estado, da educação, da segurança social e da justiça. Da economia que vai ser necessário reerguer. Das instituições a que vai ser preciso dar vida. Da democracia que vai sair ferida. Dos direitos individuais que vão ser diminuídos. Da tolerância que vai sair magoada. Da compaixão que vai ser pisada por muitos. Da informação que vai ser necessário salvar da morte iminente.
Fazer as duas coisas que parecem ou são contraditórias: este é o grande problema. Fazer com que os cientistas e os técnicos, sem se envolverem em política, encontrem os remédios e tratem de quem necessita. Mas fazer também com que os políticos façam as leis necessárias, sem se envolverem em ciência. Fazer ainda com que os serviços hospitalares e de saúde pública cumpram os seus deveres sem se envolverem em ciência nem em política.
Vivemos tempos muito difíceis, inéditos para a maior parte da população, em que é frequente encontrar quem saiba tudo de tudo. Quem tenha soluções para a ciência, a administração, a economia, o emprego, a educação e tudo o resto. “Há que…”, “É só…”, “Basta…”, “O que é preciso é…” estão entre as expressões mais ouvidas nas televisões e mais lidas nos jornais! E o problema é que todos têm direito a tudo, às suas opiniões e às suas asneiras, mesmo erradas… Como todos têm o direito de viver com ansiedade, de ter medo, de imaginar soluções. Mesmo os tolos que dizem que o vírus é mortal para capitalismo e os idiotas que garantem que o vírus é o golpe de misericórdia no comunismo: todos têm direito à opinião. As asneiras e as parvoíces de muitos são a liberdade de todos. E isso é o que interessa.
É essencial tratar da doença. Encontrar as suas causas. Inventar a sua cura. Descobrir a vacina. O que se dispensa é quem aproveita para fazer contrabando de política, tão grave quanto os que fazem mercado negro de máscaras ou papel higiénico. Já se percebeu que há quem queira aproveitar para liquidar direitos dos trabalhadores, despedir precários, reformar efectivos, baixar salários, reduzir a segurança social, diminuir os impostos, tudo legalmente e de modo definitivo. Mas também já se percebeu que há quem queira liquidar a iniciativa privada, as empresas, as instituições particulares de solidariedade, o mercado, a liberdade de estabelecimento e de iniciativa.
Dar a prioridade às condições sociais e económicas, como muitos fazem, é ridículo. Ouvir um sermão esquerdista sobre a luta de classes e o sector público, a propósito do vírus, com o maior oportunismo sectário que se imagina, é convite a descrer nas capacidades de inteligência. Considerar que tem de se tratar da questão biológica e médica, sem atenção às condições sociais, económicas e políticas, é miopia indesculpável ou intenção eugenista inaceitável.
Quem tem duas assoalhadas, sem aquecimento, para seis pessoas, não tem as menores condições para “ficar em casa” e se salvar. Quem vive em lares miseráveis está condenado. Quem não tem meio de transporte seguro não tem acesso a alimentos frescos. Quem não tem instrução não percebe as recomendações. Quem vive nos arredores ou em isolamento não consegue chegar com segurança às instituições. Quem não tem emprego não consegue comprar pão. Quem é despedido não pode tratar da saúde dos seus. Quem tem pensões mínimas fica sem capacidade de acorrer ao que é necessário. Quem vive no limite da sobrevivência não chega ao que já é mais caro e inacessível. Quem não tem meios não pode contrariar os mercados negros que proliferam. Quem não tem wireless, telefones modernos, telemóveis à altura, iPad capazes, conhecimento informático avançado e assinaturas de redes, não tem meios para ser informado devidamente. Quem vive sozinho e tem problemas de deslocação fica nas margens da sociedade. Quem tem outras doenças e insuficiências vive em pânico.
É tão difícil combater ao mesmo tempo o vírus, a pobreza, o privilégio e o despotismo! É tão difícil tratar das duas coisas, do imediato e do futuro! Da saúde e da sociedade! Da vida e da democracia! É tão difícil tratar de tudo sem demagogia, sem oportunismo, sem aproveitamento político! É tão difícil deixar à ciência o que é da ciência, à política o que é da política, à cultura o que é da cultura e aos indivíduos o que é deles! É tão difícil impedir que a emergência se transforme em regra! Que a eficácia liquide a liberdade! Que a centralização de esforços se transfigure em sistema de vida! Que a vida e a saúde sejam cada vez mais o recurso colectivista e a mercadoria capitalista! Encarar estas dificuldades ou contradições é o princípio de uma sociedade decente.
Algumas das coisas que começarem a ser feitas agora ficarão para sempre. A solidariedade europeia, por exemplo. O que de bom ou de mau se fizer agora, ficará para depois. A dimensão do Estado, também. O necessário reforço do Estado na saúde pública e na ciência médica poderá, depois, transformar-se numa monstruosidade burocrática ou numa máquina lucrativa de mercadoria. Se a força do sistema nacional de saúde não for preservada, fácil será voltar ao seu declínio. Se muitos direitos individuais forem contidos agora, podemos ter a certeza de que, depois, será difícil voltar atrás. Se a comunicação social livre desaparecer agora, é certo e sabido que nunca mais voltará a ser o que foi nem o que deve ser. O que fizermos agora com a autoridade do Estado, a liberdade individual, a cooperação europeia ou o fecho de fronteiras nacionais é o que provavelmente ficará para depois.
Não é o vírus que fará o que quer que seja às sociedades. O destino será o que as pessoas quiserem fazer para lutar contra o vírus, pela saúde e pelo futuro. Haverá mais comunismo e mais despotismo se as pessoas quiserem. Haverá mais mercadoria e mais capitalismo se for isso que as sociedades desejam. Não é por causa do vírus que teremos, a seguir, mais liberdade, mais segurança, mais igualdade e mais decência. Se tivermos, é por causa de nós. Se não tivermos, é por nossa causa.
Sociólogo,

COMENTÁRIOS:
Fowler Fowler INICIANTE: Continuar a rosar-se ao sol dos acontecimentos, explorando os vícios confusos da lente e as dicotomias do costume, em nada acrescenta àquilo que já sabemos. Não é boa altura para subestimar o presente esforço e a inteligência dos seus concidadãos: a emergência não se vai transformar em regra. Com certeza que o futuro dependerá de nós e das nossas circunstâncias.
viana EXPERIENTE: Mais um texto completamente desorientado do António Barreto. Se fosse incomum, ainda se percebia tendo em conta a situação, mas é mais do mesmo com que temos levado desde há algum tempo. Em particular, afirma: que a política deve ser deixada aos políticos, mas que não, estes não podem, fazer política, e afinal a política deve ser feita por todos, porque nós é que temos o poder para decidir para onde vamos. E devo ter saltado mais alguns contorcionismos pelo meio. Uff!...
Sandra MODERADOR: Sinceramente, estou (mais) preocupada é com os mais velhos, os que estão desorientados, os que estão a sofrer em casa com outras patologias, pois entendem que os hospitais agora estão alocados apenas para tratar de doentes suspeitos e/ou com coronavírus. Está muito complicado. Acredito que muita doença não está a ser devidamente tratada, porque as pessoas, a sua maioria, deixaram de ir ao médico, e, muitos precisam mesmo de lá ir.
J Bernard INICIANTE: Parabéns pela lucidez. Vivemos tempos difíceis, propícios a demagogia e totalitarismos vários, por isso, é necessária a existência de lucidez e pensamento claro. Reconhecer e enumerar os desafios e os perigos é um passo fundamental para enfrentar da melhor forma o monstro que temos pela frente.
Mario Coimbra EXPERIENTE: Obrigado. Excelente, excelente.
AndradeQB MODERADOR: Em pequeno, na minha pequena aldeia, ainda ouvia testemunhos da epidemia de finais da primeira guerra mundial, e relatos de haver três e mais enterros num só dia. Do que ouvia, estou convicto de que os mais pobres dessa altura, e nessa aflição, morriam menos isolados do que hoje, não obstante a ausência de Estado ser absoluta. Uma minha esperança, embora irrealista, é de que desta crise, saísse o reconhecimento de que a necessária existência do Estado nunca será, no entanto, capaz de substituir em tudo a necessidade de interajuda familiar e de grupo. Para isso, o Estado também não pode colectar toda a liquidez aos cidadãos, com a perigosa ilusão de que, dessa maneira, lhes vai garantir a segurança. Como se constata, a alguns nem um ventilador lhes empresta.
António Marques EXPERIENTE: Donde se conclui que em 1918-20 as 'famílias' tinham um ventilador em casa... Santa paciência. Procusto, volta, estás perdoado.
AndradeQB MODERADOR: Caro António Marques, nessa altura também não tinham Internet, nem pagavam ao Estado 70% do seu rendimento. Consta que há 10 milhões de anos anda também era diferente. Nesses tempos antigos, era Deus que perdoava aos pobres de espírito, hoje são os tribunais que os declaram inimputáveis. Está perdoado.

Mas foi mesmo um tsunami



Com o susto valente que o Dr. Salles conta desafogadamente, mas que dá para imaginar os muitos mais, em outros locais do globo, em cruzeiros que o coronavírus virou em indesejadas ilhas flutuantes.
POR TORDESILHAS ALÉM… - 10Um Bando de Leprosos
HENRIQUE SALLES DA FONSECA     A BEM DA NAÇÃO, 29.03.20
Ondas como as do Lago de Genève. Fazendo horas para o jantar, a Graça e eu estávamos na varanda do camarote a ver o Sol a caminho da noite e olhávamos para nenhures. O que se espera ver num mar que parece infinito e plano? Um tsunami que nos vire de borco? Não! Talvez se veja uns golfinhos, umas baleias, um navegador solitário ou uns náufragos… Nada disso. A novidade não estava no mar, tinha sido posta num papel por baixo da porta do camarote.
Era uma comunicação formal de alguém colocado na hierarquia determinante do navio a informar que aportaríamos a Colón na manhã seguinte pelas 7 horas e que seríamos todos metidos em autocarros e escoltados até ao aeroporto de Panamá City. Que tratássemos de mudar de vida. E que, como com o bode a ser ordenhado, não haveria mé nem meio mé.
O nosso programa de festas previa desembarcarmos, termos um carro à nossa espera para nos levar ao hotel em Panamá City onde ficaríamos mais dois dias a ver o que por lá houvesse de interessante e, então e só então, voarmos para Cancún, no México. Nada disso, seríamos escoltados até ao aeroporto e dali não poderíamos sair a não ser por uma porta de embarque para um avião que nos tirasse para fora do Panamá. No Panamá é que não podíamos ficar. Escorraçados como um bando de mal-cheirosos. E mais: o problema não era apenas connosco, os quatro portugueses, era com todos os passageiros do navio com desembarque previsto em Colón, «apenas» cerca de 850 pessoas. Se a esta multidão somarmos os tripulantes não panamianos em fim de contrato que também desembarcariam, tratar-se-ia de cerca de mil pessoas à deriva, sem solução muito diferente da de terem (termos) que dormir espojados no chão do aeroporto. Estariam 16 autocarros à nossa espera no cais e seríamos escoltados pela Polícia. E que desamparássemos a loja, neste caso, o navio. À saída, haveria uma equipa médica que nos mediria a temperatura: se apiréticos, tudo bem; se febris, não nos disseram onde estaria a máquina de picar carne para de seguida mandarem os restos para o crematório local.
- E não podemos ir no barco até Cartagena de las Índias e tentar resolver o problema a partir da Colômbia?
- Nem pensar nisso, até porque o problema lá é igual ao daqui. Têm que sair e desenrascarem-se.
No check in, aquele mesmo funcionário tinha sido mais afável e não perdi a oportunidade de chamar Pilatos a quem assim se livrava de nós. Desapareceu e não foi mais visto nas redondezas daquele balcão de «apoio» aos passageiros do nosso deck.
A Graça e o Pepe – os reais organizadores das viagens que fazemos em conjunto – tinham 12 horas para conseguirem antecipar o voo do Panamá para Cancún e para anteciparem dois dias a nossa chegada ao hotel em Playa del Carmen. Como se imagina, as comunicações do barco entupiram de imediato com tanta gente a querer resolver os respectivos problemas equivalentes ao nosso. Valeu-nos a diferença horária entre o Panamá e Portugal, 5 horas, pelo que quem tudo reorganizou com inexcedível dedicação e profissionalismo foi a nossa agência de viagens em Lisboa, a Lusanova, a quem daqui presto merecido aplauso. É que, quando desembarcámos, já sabíamos que voaríamos no voo tal e tal, que no destino teríamos quem nos levasse ao hotel, tudo perfeito.
Formada a coluna de 16 autocarros, fomos escoltados por polícia motorizada e armada de metralhadora como se fôssemos uma leva de criminosos ou um bando de leprosos. E isto era sabendo que estávamos todos apiréticos. O que seria se alguém estivesse com febre por causa de um panarício ou por um ataque de caspa? Chegados à cerca do aeroporto, ordem para parar. E começámos a ser ultrapassados por todos os que não pertenciam à coluna. Assim estivemos cerca de uma hora até que duas dúzias dos nossos, exaltados, fizeram um cordão humano a impedir o trânsito. Foi ver a Polícia a dar ordem para seguirmos. Pensei que esses cívicos armados ou eram cobardes ou não estavam convictos de alguma ordem absurda que estavam contrariadamente a cumprir.
À hora prevista chamaram-nos para o avião. Não nos virámos para trás a fazer um gesto feio até porque os passageiros depois de nós na fila de embarque não tinham culpa nenhuma. Mas dissemos «Adiós Panamá».
Voo de duas horas e aterragem tão suave que só me apercebi que já estávamos no chão porque senti o piloto pôr o reverse e travar.
Bom augúrio, México!              (Continua)  Março de 2020  Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS:
Francisco G. de Amorim 29.03.2020: Tá tudo louco sem saber como lidar com a Covid !