Ao contrário do aforismo de que o futuro
a Deus pertence - muito da nossa prática lusa do deixar correr - o cataclismo
que sobre o mundo desaba impõe medidas enérgicas para a sua reconstrução. Paulo Rangel aconselha, em companheirismo político
de apreciar. Era assim que se devia trabalhar sempre, em harmonia e seriedade.
OPINIÃO CORONAVÍRUS
A presidência portuguesa da UE e a crise
da covid-19
Portugal não pode partir para este
exercício sem uma visão clara do que ambiciona e aspira para a União depois de
um cataclismo de proporções que serão sempre gigantescas.
PAULO RANGEL
PÚBLICO, 24 de Março de 2020
1. É
evidente que toda a prioridade política – e, já agora, não política – tem de
ser dada à frente da saúde pública, à frente do salvamento de vidas e da
prevenção de danos irreversíveis. Todas as
outras frentes são neste momento retaguardas, simplesmente retaguardas. Basta olhar para a catástrofe
que se assenhoreou da Itália e também da Espanha para o compreender.
Mas as retaguardas são isso mesmo: retaguardas. Não podemos nem devemos
desguarnecê-las. São dimensões da vida em sociedade a que teremos de
voltar assim que se conclua a luta na frente ou que temos de cuidar mesmo
enquanto estamos focados na primeira linha. A
circunstância de empenharmos todos os recursos político-administrativos e da
sociedade civil na única frente possível e legítima – o combate à propagação da
covid-19 –, não implica que ignoremos ou descuidemos tudo o resto. Tudo o que
está nas retaguardas.
O
país dispõe de recursos humanos e institucionais mais do que suficientes para,
enquanto se concentra na frente crítica, tratar dos assuntos da retaguarda.
Para não sermos de novo apanhados de surpresa, com pouca preparação e muita
improvisação, impõe-se começar a planear o mundo de frentes a que teremos
de fazer face assim que esta gravíssima crise se dissipe. É fundamental, é mesmo imperioso, que organizemos
uma série de planos sectoriais, concentrados unicamente na preparação das
tarefas que nos ocuparão no “pós-crise” sanitária. Aos olhos de todos, avulta
a área económica; na qual,
como é notório, tem de se começar a laborar desde já. Mas pense-se, por
exemplo, na área da educação, da administração
pública, da justiça. Pense-se também na dimensão da política
europeia, que atingirá em cheio a presidência portuguesa de 2021.
2.
Olhemos, a título de exemplo, para a educação. Como será possível recuperar
o conjunto de matérias que entretanto ficaram por leccionar? Como uniformizar
as aprendizagens, se escolas e turmas tiveram condições estruturalmente diferentes de levar a cabo o
ensino à distância? Como organizar as avaliações, de modo a garantir
justiça relativa e fiabilidade do grau de conhecimento adquirido? Como
assegurar a regularidade e equidade da época de exames? Que lições tirar, já
para o próximo ano lectivo, da experiência de ensino fora do “campus” escolar?
Tudo isto pode ser estudado, debatido e decidido agora. Não temos de aguardar
pelo fim da crise para ver o que fazer.
3. A
dimensão da política europeia é crucial. É
crucial desde logo na gestão contemporânea da crise. O Governo precisa
de uma estratégia urgente para a dimensão europeia, seja na perspectiva
nacional, seja na perspectiva de conjunto. Para tanto deveria constituir uma
task force, tão inclusiva quanto possível, que reunisse especialistas das mais
variadas áreas. Nesse mesmo trabalho deveria envolver a Presidência da
República e os principais partidos da oposição. Essa task force deve organizar
uma estratégia de actuação do Estado português no quadro europeu na fase de
resposta à crise, que, em muitos casos, condicionará fatalmente os
desenvolvimentos futuros. Mas a utilidade deste grupo de missão tem de ser
potenciada, isso sim, na preparação da visão portuguesa para os desafios
gigantescos do pós-crise sanitária.
4.
Dizer que os desafios pós-crise serão avassaladores não é exagerar ou
caricaturar. Já muitos têm dito e escrito – com Mario Monti à cabeça – que
é a própria existência da União Europeia que estará em causa. Julgo que estão
basicamente certos e voltarei a este tema nos próximos artigos. Para já,
chega-nos a consciência de que se joga a sobrevivência da União para
aquilatarmos da importância das decisões pós-crise.
5. Portugal
terá a presidência no primeiro semestre de 2021, logo depois da Alemanha e
antes da Eslovénia, constituindo com estas um trio. A presidência seguinte – primeiro semestre de 2022 – caberá
à França. A presidência lusa ocorrerá pois entre as presidências dos
dois Estados mais poderosos da UE, a Alemanha e a França. Por um lado,
Portugal estará entalado entre os dois motores da UE; por outro lado, não
deixará de estar numa posição de charneira, cabendo-lhe representar a visão dos
países médios (já que à Eslovénia ficará a mediação dos mais pequenos). Portugal não pode partir para este exercício sem
uma visão clara do que ambiciona e aspira para a União depois de um cataclismo
de proporções que serão sempre gigantescas. E, ao mesmo tempo e do mesmo passo,
não pode arrancar sem uma ciência razoável do que é efectivamente possível e
atingível.
6.
Antes de tudo o mais, uma abordagem estratégica realista tem de conceber e
projectar os diferentes cenários, que podem variar de um “salto”
integracionista até à simples dissolução (camuflada ou assumida) da UE. E
de perspectivar qual o posicionamento e qual a resposta de Portugal em cada um
desses cenários. Será preciso avaliar como “sai” a coesão política dos
Estados-membros de uma crise deste alcance e como “sai” a sua “disposição” face
ao futuro (os Estados do Leste podem estar mais reticentes, a Itália
igualmente, a Grécia, com a crise migratória, também). Depois deverá
naturalmente pugnar pelo cenário que melhor defenda os interesses dos
cidadãos nacionais e europeus. Só para tomarmos alguns exemplos.
Será necessário revisitar a posição sobre Schengen e um espaço sem
fronteiras, aí incluído o velho problema das migrações. Será imprescindível ter uma posição
sobre a evolução da união económica e monetária. Será importantíssimo equacionar
como lidar com as questões do Estado de Direito em alguns Estados. Será, por exemplo, conveniente perceber se a UE
deve ter competências no domínio da saúde (ou da saúde pública). Estas são
questões para as quais temos de estar preparados, muitíssimo bem preparados. O estado de emergência em nada impede que, em
simultâneo e sem nenhum prejuízo para a resposta à crise sanitária, cuidemos,
tanto quanto possível, de preparar o mais incógnito dos dias: o dia seguinte.
Positivo/Negativo
Positivo
Sim
Municípios e autarcas. São quem tem
estado à frente da defesa das populações, seja na prevenção (caso dos testes),
seja na solução dos problemas mais críticos. Um exemplo para o Governo central. Negativo
Não
Governo e ajuda europeia. Até ontem
ainda não tinha recorrido à ajuda do Mecanismo Europeu de Protecção Civil para
repatriamento ou equipamento protector. Muita comunicação, pouca capacidade de
resposta.
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